José Renato Nalini*
29 de novembro de 2022 | 06h00
Essa fórmula de Heráclito é objeto de inúmeras tergiversações. São apenas três palavras, mas muito densas. Densas de sentido, seja aquele que Heráclito lhes deu, densas do sentido que os pensadores lhes conferiram e potencialmente densas de um sentido que as futuras interpretações ainda lhes vierem a dar.
Quanto a Heráclito, ninguém conseguirá detectar qual sua intenção. Primeiro, porque ele é eminentemente enigmático. A obscuridade é um dos característicos da sabedoria arcaica, a exprimir-se sob a forma de enigmas. Por isso, ficamos com a hermenêutica posterior. A não ser queiramos penetrar no ignoto mundo heraclitiano.
Platão escreveu a respeito: “Direi que as obras ditas da natureza são a obra de uma arte divina, e as que os homens compõem com elas, obras de uma arte humana”. Também Aristóteles encontra uma analogia entre natureza e arte, mas menciona oposições radicais. Primeiro, a natureza é um princípio de movimento interior a cada indivíduo. Cada pessoa concreta tem em si uma natureza própria à sua espécie e que é o princípio de seus movimentos naturais. A arte humana tem uma finalidade externa. Já a natureza tem uma finalidade interna: o processo da natureza não tem outro fim, que não a natureza ela mesma.
Os estoicos personificam a natureza. Ela é identificada com Deus. Tanto que se pode invocá-la como uma deusa, assim conforme fez Plínio: “Salve, Natureza, Mãe de todas as coisas!”. Mais tarde, já no século II, chega-se a compor hinos à Natureza. Assim é que Mesomedes, liberto do Imperador Adriano, escreve: “Princípio e origem de todas as coisas. Mãe antiga do mundo. Noite, luz e silêncio”. O grande Marco Aurélio também contribuiu com a elaboração da ideia: “Para mim, tudo é fruto do que produzem tuas estações, ó Natureza. De ti, em ti, por ti, são todas as coisas”.
Havia, portanto, entre os clássicos, um respeito incontido à natureza. Como foi que a humanidade chegou a esta lamentável era, em que ela é vilipendiada, maltratada, deteriorada e exterminada?
Talvez a primeira explicação venha a ser a ignorância. Não conhecemos a natureza; não procuramos conhecê-la; por isso a desprezamos. Será que esse desconhecimento provém exatamente porque a natureza tem segredos e procura escondê-los? Cícero aborda o tema: “coisas que foram escondidas e envelopadas pela própria natureza”. Lucrécio afirmou: “a Natureza ciumenta nos roubou o espetáculo dos átomos”. Apesar disso, Epicuro “retirou à Natureza todos os véus que a escondiam” pois chegara a arrombar “as portas estreitamente fechadas da Natureza”. A ciência continua a fazer exatamente isso: forçar a blindagem da natureza para tentar descobrir seus mistérios: a cura do câncer, do mal de Alzheimer, do mal de Parkinson e da crueldade humana em geral.
Ovídio conta sobre Pitágoras, que ele “descobriu com os olhos do coração, aquilo que a natureza recusava aos olhares humanos”.
Todavia, quais são esses segredos? Alguns, certamente, decorrem das partes invisíveis da natureza. Invisíveis, porque situadas numa longínqua dimensão de tempo. Outros, inacessíveis por sua extrema pequenez. Pensamos que o átomo seria a menor célula. Só que a ciência vai provando que há partículas infinitamente menores. Tudo foi segredo durante milênios. E a parte invisível da natureza provoca efeitos visíveis.
Espíritos superiores e sensíveis se aperceberam disso e nos legaram ensinamentos que ainda hoje suscitam discussões e inspiram reflexão. Sêneca, por exemplo, afirmou: “Muitos outros seres mantêm-se desconhecidos para nós, ou, talvez, maravilha ainda maior, ao mesmo tempo preenchem nossos olhos e lhes escapam. São assim tão sutis que o olho humano não consegue percebê-los? Ou sua majestade se oculta num refúgio sagado demais para o homem, de onde regem seu domínio, isto é, eles próprios, inacessíveis a tudo, exceto ao espírito. Quantos animais viemos a conhecer apenas em nossos tempos! Quantos objetos dos quais mesmo o nosso século não tem sequer ideia!”.
O drama brasileiro é que a natureza está sendo exterminada, antes mesmo de ser suficientemente conhecida. A exuberante biodiversidade da floresta amazônica, da Mata Atlântica e dos demais biomas pátrios asseguraria a redenção econômica do Brasil, contasse ele com Estado e sociedade menos ignorante. A busca desenfreada do vil metal, acima de todas as outras coisas, é a causa primeira da devastação. A natureza morre. Mas leva com ela as outras espécies de vida. Esse o seu segredo mais oculto.
*José Renato Nalini é reitor da Uniregistral, docente da pós-graduação da Uninove e presidente da Academia Paulista de Letras – 2021-2022