quinta-feira, 12 de setembro de 2024

Ruy Castro - Flauta, piolho e filhos, FSP

 Leitores discordaram de coluna recente (6/9) em que, ao me referir aos hippies, escrevi que se dedicavam a levar a vida na flauta, ao cultivo de piolhos e ao fabrico de filhos. Consideraram-na afirmação preconceituosa, careta. Entendo essa discordância. Cinquenta anos depois do fato, os hippies ganharam uma imagem positiva, de pacifismo, desapego e harmonia com a natureza. Mas os que viveram a época sabem que não foi bem assim.

Os hippies não eram pacifistas. Eram alienados, desinteressados de tudo. Pacifistas eram os rapazes e moças americanos que saíam às ruas contra a Guerra no Vietnã, enfrentavam a polícia, apanhavam e iam presos. Enquanto isso, em suas comunidades, os hippies dedicavam-se a olhar para o céu, decifrando os significados que o ácido ou o fumo emprestava às nuvens. Essa alienação revoltava os jovens de esquerda, que desafiavam as ditaduras na América do Sul. E vamos supor que não fosse simples alienação. Nas décadas seguintes, soube-se de muitos mais ex-hippies que aderiram à extrema direita que a outras correntes políticas.

Os hippies eram contra o trabalho burguês, mas não se opunham a que os burgueses trabalhassem por eles. Há uma ideia romântica de que viviam em comunidades solidárias, valendo-se do que produziam. Sim, houve isso, mas não só. Muitos hippies moravam nas cidades, à custa de alguém em quem se encostassem e lhes desse casa e comida —e, se esse alguém protestasse por ver um deles abusando de sua generosidade e saindo com suas calças e camisas, ouvia o deboche: "Ainda tá nessa de posse, xará?".

Nem sempre a relação dos hippies com a natureza era de harmonia. Seus acampamentos rurais eram depósitos de lixo e assim eram deixados quando eles se mudavam. E talvez tivessem mais filhos do que pudessem dar conta. Não eram crianças saudáveis. Não iam à escola, não aprendiam a ler e suas alergias e crises de asma eram tratadas com curandeirismos.

Quanto aos piolhos, estavam erradicados nas grandes cidades em 1970. Um novo "estilo de vida" os trouxe de volta. A afirmação não é minha. É da OMS, a Organização Mundial da Saúde.

O pior de São Paulo é o eleitor paulistano, Douglas Nascimento, FSP

 Sei que minha coluna é focada em falar sobre a história e curiosidades de São Paulo, mas não tem como dissociar a história que contamos com a história que iremos escrever nos livros do futuro, razão essa que me impele a ir adiante com o texto desta semana. Muitos dos que me leem não estão preparados para o que eu vou dizer, mas, infelizmente, é a pura verdade: o pior de São Paulo é o próprio eleitor paulistano.

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Mulher passa diante de cartaz da campanha eleitoral de Jânio Quadros, em 1985. O candidato da vassourinha foi o primeiro prefeito paulistano a ser eleito por voto direto após a redemocratização. - José Nascimento/Folhapress

Não é de hoje que o paulistano parece odiar a própria cidade em que vive quando o assunto é a escolha do prefeito de São Paulo. A história recente mostra que São Paulo já elegeu pessoas que sequer deveriam ter tido carreira política, mas que ou são ótimos na oratória para convencer o povão ou tem um padrinho muito forte.

Recordando o passado recente, desde o desastre inesquecível da gestão de Celso Pitta (1997-2001) até a fatídica reeleição do então mortiço Bruno Covas, parece que o eleitor paulistano tem o dedo podre na urna e, suspeito, que isso venha a acontecer novamente.

Em foto tirada durante a campanha eleitoral de 1996, o então prefeito Paulo Maluf (à direita) e Celso Pitta, que viria a sucedê-lo no cargo. - Otavio Dias de Oliveira/Folhapress

Afinal, quem não se lembra de prefeitos que declararam juras de amor e fidelidade aos paulistanos mas abandonaram o barco na primeira oportunidade, pensando unicamente na sua carreira política? José Serra largou a prefeitura para ser governador paulista e Doria, anos mais tarde faria o mesmo. O primeiro deixou na administração da maior cidade do Brasil um obscuro e até então desconhecido vice, Gilberto Kassab, que tratou de apoiar-se nos factoides para se popularizar. Afinal quem não se lembra das "cruzadas" de Kassab contra o Bahamas e a boate Kilt em prol da moral e dos bons costumes? De legado mesmo o vice que virou titular só teve um: a lei Cidade Limpa.

Anos mais tarde o paulistano, sempre ele, cairia novamente na lábia de um candidato: João Doria Jr. posando como outsider, milionário que não precisa nem do salário do cargo, Doria surfou na onda de insatisfação do eleitor paulistano com a esquerda e elegeu-se ainda no primeiro turno, em derrota para lá de humilhante de Fernando Haddad, que buscava a reeleição.

O que se viu após a posse foi a gestão de um homem pouco afeito aos problemas reais da cidade, mas obcecado pelo próprio projeto de poder, que visava um salto rumo à presidência do Brasil. Cansou de criar factoides pela cidade, a vestir-se de gari a jardineiro e alardear ter acabado com a cracolândia, quando na verdade a dispersou por toda a capital paulista. Figura egoísta, atropelou desde o paulistano até o próprio partido para tentar a presidência, mas contentou-se com o governo paulista.

Na foto o "gari" João Doria fazendo a varrição em calçada de São Paulo. Factoides marcaram sua passagem pela prefeitura paulistana. - Ronny Santos/Folhapress

Deixou em seu lugar na prefeitura o vice Bruno Covas que, embora não fosse tão obscuro quanto Kassab, era pouco conhecido do paulistano. Fez uma gestão bastante razoável, o que o cacifou para disputar a reeleição, mas com um pequeno inconveniente: estava muito doente.

Mesmo moribundo Covas não foi bacana com o povo de São Paulo e manteve-se na disputa pela reeleição, levando consigo um vice absolutamente desconhecido, repetindo o padrão de outros que o antecederam. Era óbvio por parte do eleitorado que Covas não iria longe e a prefeitura cairia novamente nas mãos do vice, mesmo assim o eleitor, sempre ele, o reelegeu.

Meses depois de reeleito Bruno Covas partia desse plano para deixar aos paulistanos o presente de grego por nele terem acreditado: Ricardo Nunes. Um obscuro vereador da zona sul paulistana alçado a prefeito da maior cidade do país. Até então seu maior feito era negativo: agredir a própria esposa.

Boletim de ocorrência de Regina Carnovale contra Ricardo Nunes, registrado em 2011
Boletim de ocorrência de Regina Carnovale contra Ricardo Nunes, registrado em 2011 - Reprodução

Quase quatro anos se passaram e São Paulo pagou duramente por ter reeleito um prefeito que estava morrendo. Ricardo Nunes, seu vice, completamente despreparado para cargo tão importante mergulhou a cidade naquele que foi seu período mais sombrio, com o centro às moscas, violência e furtos fora de controle, empresas de ônibus suspeitas de envolvimento com PCC e lixo por toda a parte.

Paulistano, acredite, você é o culpado. E parece que não aprendeu a lição

Estando novamente em tempo de eleição, a disputa infelicita o cidadão com diversos candidatos que se mostram absolutamente incapazes de gerir a cidade, alguns deles, inclusive, já deixando no ar que largarão a cidade no meio do mandato para alçar voos maiores.

Ou você duvida que Nunes deixará o cargo em algum momento para o vice indicado a dedo pelo ex-presidente Jair Bolsonaro? Outro vice, aliás, completamente obscuro e desconhecido do paulistano.

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Se você não conhece nenhuma das pessoas na foto é melhor ir pesquisar, é possível que um deles venha a ser prefeito(a) de São Paulo daqui a dois anos - Divulgação

Ou você crê que Pablo Marçal que – fosse o Brasil um país sério estaria ou atrás das grades ou, no mínimo, impedido de concorrer – vai se contentar em ficar no cargo de prefeito, quando ele mesmo já deixou claro que anseia a presidência da República em 2026? Você conhece sua vice? Sua trajetória? Com o crescimento dele nas intenções de voto procure saber quem é sua parceira de chapa pois ela pode vir a ser sua prefeita por pelo menos dois anos, mesmo eventualmente sendo incapaz para isso.

De todos os candidatos e candidatas que postulam o cargo de prefeito paulistano arrisco a dizer que Boulos, Tabata e Marina Helena parecem ser honestos com o paulistano no que diz respeito a ficar até o final do mandato. Já os demais, inclusive o errante Datena, mais parecem usar a cidade como um trampolim para algo maior em suas carreiras, mesmo que signifique manter São Paulo em um lamaçal de incompetência.

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Os ossos do padre José de Anchieta, Vicente Vilardaga - FSP

 

São Paulo

Não foi por acaso que o Padre José de Anchieta recebeu o título de "apóstolo do Brasil". Nascido em 1534 em Tenerife, nas Ilhas Canárias, Anchieta foi um jesuíta incansável e um homem cordial. Seu papel na fundação de São Paulo foi decisivo: era um eficiente catequizador, dava aulas de latim, circulava por vastas regiões e mantinha uma relação amistosa com os indígenas.

Foi poeta e escreveu peças de teatro e uma gramática tupi-guarani. Além disso, confeccionava roupas e alpargatas, construía casas e atendia como boticário. Outra de suas qualidades era pensar estrategicamente a colonização. Anchieta foi beatificado em 1980 e há dez anos aconteceu sua canonização pelo papa Francisco. A ele eram atribuídos milagres, como estar em vários lugares ao mesmo tempo e levitar.

Úmero de José de Anchieta
Museu do Pateo do Collegio tem úmero e manto que pertenceram a José de Anchieta

Quando morreu, em 1597, aos 63 anos, o santo foi enterrado na igreja de São Tiago, no Espírito Santo, lugar onde passou seus últimos anos. Anchieta estava descansando em paz até que em 1609 foi feita a exumação dos seus restos mortais, levados para a catedral de Salvador (BA) por ordem do superior geral da Companhia de Jesus, padre Cláudio Acquaviva.

A partir daí se abriu uma caixa de relíquias e os ossos do jesuíta se espalharam pelo Brasil e por outras partes do mundo, como Portugal e Itália. Para os católicos, as relíquias são uma forma de ter proximidade física com alguém que alcançou o ápice espiritual.

Ossos de Anchieta foram repartidos entre pessoas seculares e religiosas, que os pediam na esperança de milagres. O padre Fernão Cardim chegou a declarar que com a água abençoada com um desses ossos, Deus fez maravilhas para vários necessitados.

Anchieta e o curumim
Quadro "O Poema de Anchieta", de Benedito Calixto: padre foi o primeiro literato do Brasil

Um dos fêmures do jesuíta, antes exposto na igreja de São Tiago, hoje sede do governo capixaba, foi transferido para Roma. Ficou lá por três séculos e meio. Em 1759, com a expulsão dos jesuítas do Brasil pelo Marquês de Pombal, um baú de jacarandá que estava na Bahia com parte dos restos mortais do santo e com um manto marrom que seria dele, foram mandados para Portugal. O baú só foi encontrado em 1964 na Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa.

Em 1971, o governo de São Paulo e os jesuítas pediram à Portugal a devolução do baú com os ossos e o manto, o que só ocorreu na década de 1980, mais ou menos na mesma época em que o Vaticano devolveu o fêmur. O manto passou a ficar exposto no Pateo do Collegio.

Pateo do Collegio
Pateo do Collegio: marco da fundação da cidade e centro de operações dos jesuítas

Além dele, há pelo menos outras sete relíquias oficiais de Anchieta no Brasil: duas no Pateo do Collegio, um osso do braço chamado úmero no Museu Anchieta e um fragmento de fêmur na Igreja São José de Anchieta. Também há um pedaço de fêmur na igreja São Miguel Arcanjo, na zona leste de São Paulo. O tamanho dos ossos indica que Anchieta deveria ter cerca de 1,65 metro de altura

Existe um pedaço de osso no município de Anchieta (ES), antes chamado Reritiba, onde o padre morreu, e outra relíquia em Itaici, em Indaiatuba (SP), onde a CNBB (Confederação Nacional dos Bispos do Brasil) faz seus encontros. O mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro, também abriga um pedaço de osso em uma urna na capela dedicada ao santo.

Imagem de José de Anchieta: processo de beatificação do padre demorou 360 anos

Fora do Brasil, há uma relíquia na igreja de São Roque, em Lisboa, lugar de devoção a Anchieta, e também na igreja do Gesù, em Roma, primeiro templo da Companhia de Jesus na cidade.

A campanha para a beatificação de Anchieta foi iniciada na Capitania da Bahia vinte anos após sua morte, em 1617. Mas ele só foi beatificado em 1980 pelo papa João Paulo 2º. Atribui-se esse grande lapso de tempo inicialmente ao Marquês de Pombal, que perseguia os jesuítas e pode ter impedido o trâmite do processo.

A canonização foi mais rápida. Mesmo sem milagres comprovados, o papa Francisco considerou, em 2014, o trabalho de Anchieta, pioneiro na introdução do cristianismo no Brasil e fundador de São Paulo. Também se levou em conta que antes de ser professor dos indígenas tratou de aprender suas línguas, costumes e de entender sua cosmovisão. Anchieta foi um conciliador.