terça-feira, 30 de abril de 2024

A cultura do cancelamento embrutece a nossa sociedade, Wilson Gomes, SFP

 Quando acusada de um delito na antiguidade clássica, a pessoa tinha o direito de compor e fazer um discurso de autodefesa que seria apresentado diante de uma assembleia e perante seus acusadores.

Esse discurso, a apologia, era reconhecido como o exercício do sagrado direito de se defender diante de acusações públicas. Os gregos, que deram origem à prática, davam grande valor à honra e à integridade do indivíduo, não abriam mão das normas que garantiam o direito de autodefesa e davam ao acusado a oportunidade de se valer de todos os meios de persuasão.

No período medieval, a combinação entre religião e política mudou o sentido da apologia, que já não dava ao orador uma oportunidade de absolvição. A maioria dos acusados já havia sido condenada antes de sua defesa, de forma que a apologia era basicamente uma chance de aceitar o próprio destino, acolher a morte, mostrar por que se merecia ao menos o perdão de Deus. A persuasão por argumentos não tinha qualquer papel nesse processo, pois de nada valem a razão contra crença e a lógica contra o dogma.

Mudanças sociais importantes nas sociedades modernas e contemporâneas mudaram de forma radical o papel da defesa diante de acusações públicas. A democracia trouxe de volta a ideia de deliberação pública e o direito de ser ouvido e considerado, o pensamento liberal moldou a ideia de uma sociedade de direitos e o devido processo legal. A apologia já não precisa ser um discurso de sobrevivência, como na Antiguidade, ou de desespero, como na Idade Média, mas principalmente uma defesa da própria imagem e reputação diante da opinião pública.

Hoje, com a cultura do cancelamento, a impressão que se tem é a de uma brutal regressão às formas religiosas, dogmáticas e irracionais que haviam sido abandonadas com o advento da democracia e do Estado de Direito. Quando alguém é acusado publicamente, a sentença já está lavrada. A diferença legal entre acusado e culpado desapareceu, o devido processo é inaceitável.

Na ilustração, há duas cabeças frente a frente. A cabeça da esquerda em preto e branco é um perfil formado por  diversas impressões digitais que esboçam o perfil de Ludmilla. A cabeça da direita em tons de azul e preto está formada de um emaranhado de fios e cabos. Da boca desse emaranhado sai uma seta também feita de fios que entrando pela boca, atravessa a cabeça da esquerda.
Ilustração de Ariel Severino para coluna de Wilson Gomes de 30 de abril de 2024 - Ariel Severino/Folhapress

Se estudantes de uma universidade acusam um professor de assédio moral, como aconteceu na UFBA na semana passada, ele é automaticamente um assediador e deve ser tratado como tal, arcando com todas as consequências da sua condição: impedido de dar aula, insultado, quando não imediatamente afastado e demitido. Não importa se a acusação tiver sido objeto de um processo administrativo que não lhe deu provimento. Em um mundo de direitos, uma acusação pode ser falsa, precipitada, sem fundamento, maliciosa ou desproporcional. Na cultura do cancelamento, não há hipótese de os acusadores estarem errados.

Em um videoclipe de Ludmilla que é quase um manifesto de correção política, havia um plano, com duração de uma fração de segundo, em que se via uma pichação típica das disputas no mercado religioso das periferias. "Só Jesus expulsa o Tranca Rua das pessoas", dizia. O plano anterior mostrava um cartaz de defesa do feminismo e denúncia do feminicídio. Mas o olhar patrulheiro conseguiu detectar e isolar apenas este plano, que lhe pareceu justificar a pesada acusação de que o clipe, logo Ludmilla, "incentivou", "reforçou" e "difundiu" racismo religioso e "instigou" a violência contra templos de religiões de matrizes africanas.

Em um universo de direitos, toda acusação pode ser desafiada a apresentar provas e argumentos e deve ser testada em sua solidez com base em razões e fatos. Na cultura do cancelamento, bastam as convicções dogmatizadas pelo grupo.

Ludmilla se tornou responsável pela violência a que estão sujeitas as religiões de matrizes africanas no Brasil, não importa o resto do vídeo, o manifesto que está na sua abertura, quem é a cantora ou qualquer discurso de autodefesa que ela apresente. Como na apologia medieval, nenhuma explicação será considerada, a sentença já foi expedida, a única coisa que lhe caberia é implorar perdão, apagar o vídeo e prometer não pecar mais.

Ludmilla não pode negar ter errado, alegar outra intenção, reivindicar outra interpretação, declarar que foi sem querer ou mostrar por sua história que é uma boa pessoa. Só a mortificação é aceitável: pequei e me arrependo, mereço todas as punições, nunca mais faço de novo.

Ai de quem se recusar a aceitar que todo acusado é culpado; pobre do incauto que repudiar a bruta covardia dos coletivos de linchadores e justiceiros. Quem está contra a sagrada fúria da multidão que ataca o assediador e a racista, o que mais poderia ser além de cúmplice das injustiças do mundo?

A cultura do cancelamento nos embruteceu como sociedade.

EUA devem reclassificar maconha como droga menos perigosa, diz agência, FSP

 A DEA (a agência de combate às drogas dos Estados Unidos) tomará medidas para reclassificar a maconha como uma droga menos perigosa do que ela é considerada atualmente, segundo informações da agência de notícias Associated Press.

A proposta da DEA, que deve ser revista pelo órgão de gestão e orçamento da Casa Branca, poderá marcar a maior mudança na política federal sobre a cânabis em 40 anos, com amplo efeito sobre a forma como o país regulamenta a droga.

Empresária fuma maconha em seu escritório utilizando produtos que ela produz na cidade de Denver, estado do Colorado, nos Estados Unidos - Danilo Verpa - 18.fev.20/Folhapress

A mudança não legalizaria totalmente a maconha para uso recreativo, mas reconheceria que ela tem menos potencial para abuso do que algumas das drogas mais perigosas.

Com a medida, espera-se que a DEA recomende a reclassificação da cânabis , retirando-a do nível de drogas com maior risco potencial para abusos, como heroína e LSD, e passando para o nível 3 (schedule III, em inglês), junto a substâncias como esteróides anabolizantes e testosterona.

De acordo com o governo americano, as substâncias da classificação 3 têm "potencial moderado a baixo de dependência física e psicológica". Ainda assim, são substâncias controladas e sujeitas a regras e regulamentos, e as pessoas que as vendem sem permissão podem enfrentar processos criminais federais.

A decisão da DEA deve ser tornada oficial pouco mais de um ano depois de o presidente Joe Biden pedir uma revisão da lei federal sobre a maconha, em outubro de 2022, quando decidiu perdoar milhares de americanos condenados por porte da droga.

O movimento pode ser visto como associado à corrida contra Donald Trump nas eleições presidenciais deste ano. O presidente, que no passado apoiou a guerra às drogas, vê o afrouxamento da regulação federal da cânabis como uma oportunidade de recuperar a simpatia dos jovens. O grupo foi essencial para a vitória em 2020, mas que vem se distanciando de Biden por seu apoio a Israel na guerra contra o Hamas na Faixa de Gaza.

Pesquisas indicam que 70% dos americanos afirmam que o uso de maconha deve ser legalizado. O percentual é praticamente o dobro do registrado em 2003 (34%) e sobe para 79% na faixa etária de 18 a 34 anos.

O uso recreativo da maconha já é legal em 24 estados, e o medicinal, em outros 12. Embora os estados tenham autonomia para regular a droga, ela ainda é banida a nível federal –mudar isso exige aprovação do Congresso, algo ainda considerado improvável.

Negociações sobre plástico terminam sem acordo para redução da produção, FSP

 

Valerie Volcovici
REUTERS

As negociações de um futuro tratado global da ONU (Organização das Nações Unidas) para combater a crescente poluição plástica se estenderam até a manhã desta terça-feira (30) no Canadá, em meio a debates tensos sobre se o mundo deve buscar limitar a quantidade de plástico produzido.

As discussões duraram, ao todo, uma semana em Ottawa. Como as conversas finais dessa rodada atravessaram a madrugada, os países concordaram em continuar os debates em reuniões específicas até a cúpula final, que começará em 25 de novembro em Busan, na Coreia do Sul.

Inclinado, homem junta pedaços de plástico imerso em uma poluição que vai até os seus joelhos
Poluição de plásticos na praia de Kedonganan, em Bali, na Indonésia - Sonny Tumbelaka - 19.mar.2024/AFP

O trabalho até lá deverá incluir a busca de fontes de financiamento para ajudar os países em desenvolvimento a implementar o tratado. Os países também concordaram em elaborar um processo para identificar produtos químicos plásticos que são perigosos à saúde, além de itens que promovem desperdício, como os recipientes de uso único.

Os países não conseguiram estabelecer em Ottawa um processo formal para avaliar quanto plástico virgem é produzido ou determinar a quantidade que deveria ser considerada insustentável.

O tratado que deve ser fechado em Busan tem o objetivo de ser o de maior peso em relação às emissões que causam o aquecimento global e à proteção ambiental desde o Acordo de Paris, assinado em 2015.

"Este é um pequeno passo em um caminho muito longo", disse Sivendra Michael, principal negociador de Fiji, nação insular do Pacífico. "Literalmente, temos sete meses restantes para cumprir essa promessa [de conter a poluição plástica]."

Mais de 50 países apoiaram uma proposta de Ruanda e Peru para avaliar qual seria um nível sustentável para a produção de plástico.

A produção de plástico se encaminha para triplicar até 2050, e os níveis atuais já "são insustentáveis e excedem em muito nossas capacidades de reciclagem e gestão de resíduos", disse a principal negociadora de Ruanda, Juliet Kabera.

Enquanto algumas partes se opuseram a limitar a produção de plástico, um grupo de 28 países emitiu um compromisso de levar adiante o esforço do tratado de incluir limites para a produção.

"A ciência é clara: devemos primeiro abordar os níveis insustentáveis de produção de plástico se quisermos acabar com a poluição plástica globalmente", disse Christophe Bechu, ministro da transição ecológica da França.

Os esforços contra a produção enfrentaram forte oposição de alguns países produtores de petroquímicos, como Arábia Saudita e China, bem como de grupos industriais que fizeram lobby em Ottawa.

Eles argumentaram que, com a cúpula final dentro de apenas sete meses, os países deveriam se concentrar em tópicos menos controversos, como gestão de resíduos plásticos e design de produtos.

O principal negociador da China em Ottawa, Yang Xiaoling, disse que os países deveriam reduzir suas ambições para chegar a um consenso sobre um tratado ainda neste ano.

COMPROMISSOS

Grupos ambientalistas que acompanharam as discussões alertaram que muitos compromissos políticos tendem a diminuir a eficácia de um eventual tratado.

"Os tópicos acordados [para discussão futura] não abrangem toda a gama de questões em pauta", disse Christina Dixon, ativista da área de oceanos da ONG Environmental Investigation Agency.

Mas outros viram de forma positiva o foco em questões como os riscos à saúde de substâncias químicas ligadas aos plásticos.

"Plásticos e produtos químicos plásticos tóxicos atravessam nossas fronteiras com pouco ou nenhum controle ou proteção para nossa saúde", disse Griffins Ochieng, diretor-executivo do Centro de Justiça Ambiental e Desenvolvimento no Quênia.

Enquanto as reuniões eram realizadas em Ottawa, a Primeira Nação Aamjiwnaang, comunidade indígena localizada na mesma província no Canadá (a de Ontario), declarou estado de emergência devido a um vazamento industrial de benzeno, produto que pode causar câncer.

Membro do Conselho de Aamjiwnaang, Janelle Nahmabin chamou o incidente de um "exemplo infeliz" do "que essas negociações realmente estão falando".