segunda-feira, 6 de agosto de 2018

Questões de ordem: no debate sobre aborto, dúvidas crescem e se multiplicam, Marcelo Coelho FSP


Cerca de trinta expositores, representando principalmente grupos religiosos e centros de pesquisa universitária em direitos humanos, devem se pronunciar nesta segunda (6) no STF (Supremo Tribunal Federal) sobre o aborto.
É a segunda sessão das audiências públicas convocadas pela ministra Rosa Weber, relatora de um processo em que o PSOL questiona a constitucionalidade dos artigos 124 e 126 do Código Penal, que criminalizam a interrupção da gravidez.
Pelo que ocorreu na sexta-feira passada (3) —quando diversos especialistas em medicina e direitos reprodutivos se pronunciaram ao longo de 12 horas, com pequeno intervalo para almoço—, o debate irá muito além da mera questão jurídica suscitada pelo PSOL.
Há argumentos de diversos níveis, e de modo geral foram expostos com clareza e objetividade na primeira parte da audiência.
Parte importante das considerações a favor da descriminalização do aborto se baseia no conhecido tema de que, acima de convicções religiosas, cabe pensar no problema de saúde pública.
A representante do Ministério da Saúde contou, assim, o caso de uma mulher de 26 anos do Espírito Santo, que morreu por septicemia, depois de curetagem mal-feita. Escondia a gravidez, e o aborto, dos seus familiares. Como a prática é criminosa, só veio a procurar cuidados médicos quando era tarde demais.
São 250 mil hospitalizações por ano, com 5 mil casos de quase óbito (o "near miss") e 203 mortes anuais.
Os números são muito questionáveis, retrucou Rafael Medeiros Parente, do Instituto Liberal. O número real de mortes anuais é 20% disso; estimativas incorretas são frequentes na imprensa, disse ele.
Confunde-se o número de abortos provocados com o de espontâneos. É daí, provavelmente, que se tirou a estatística segundo a qual uma em cada cinco brasileiras já fez aborto, acrescentou.
Convidada a esclarecer sobre esse ponto, a pesquisadora Debora Diniz, do Instituto de Bioética, frisou que a pesquisa sobre esse último ponto foi cuidadosa: as respostas eram por escrito, e colocadas numa urna, de modo a não forçar confissões constrangedoras.
As entrevistadoras eram todas mulheres. E a pergunta, centrada na expressão "fazer aborto", evitaria, segundo ela, a confusão com casos de perda natural de bebê, quando se fala em "passar por aborto" ou "ter abortado".
Os números continuam, de todo modo, expostos a muitas contestações. Defensores da descriminalização citam casos como o da Romênia, em que o número de abortos diminuiu, em vez de aumentar, depois da legalização.
Isso por uma razão simples: mulheres que fizeram seu primeiro aborto se sentem estigmatizadas e com medo, deixando de procurar assistência médica daí em diante. Sem ajuda para outros métodos contraceptivos, abre-se caminho para um segundo, um terceiro, um quarto aborto clandestino...
O raciocínio é errado, rebate Rafael Parente. O que acontece é que, depois da descriminalização, há um aumento enorme de abortos se comparados aos anos imediatamente anteriores. Mais adiante, a taxa diminui, dado o acesso facilitado ao aconselhamento médico. Mas nunca, diz ele, esse número fica abaixo daquele registrado quando o aborto era proibido...
A confusão das estatísticas e das interpretações é uma parte pequena do debate. Uma representante antiaborto apelou para o impacto visual. Mostrou um lindo fetozinho de borracha. "Ele não está sendo ouvido", afirmou. "Para ele, não existe aborto seguro".
Mas "ele" é pessoa? Está protegido pela Constituição? O STF já disse que não, no caso dos fetos anencéfalos. O debate prossegue.
Marcelo Coelho

Pró-vida de quem?, Antonia Pellegrino e Manoela Miklos, (sobre aborto) FSP

Debate sobre aborto no STF desmonta tese de quem diz defender a vida

Família. Vida. Essas foram as noções articuladas pelos grupos autointitulados pró-vida, contrários à descriminalização do aborto, na última sexta-feira (3) —primeiro dia da audiência pública no Supremo Tribunal Federal para debater a ADPF 442 (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 442). 
A ação argumenta pela inconstitucionalidade da aplicação dos artigos 124 e 126 do Código Penal para casos de aborto até a 12ª semana de gestação. Vivemos uma oportunidade histórica de debater a criminalização do aborto no país.
Especialistas com diferentes formações foram ao Supremo Tribunal Federal. Toda ciência confiável produzida na contemporaneidade foi oferecida às ministras e ministros, nos conduzindo na contramão das teorias absurdas de conspiração repetidas pelos grupos contrários à ADPF 442.
Todo o conhecimento sobre as consequências perversas da criminalização do aborto no Brasil foi apresentado, contrastando com a narrativa vazia de defesa dos direitos dos embriões nas quais insistiam os grupos supostamente pró-vida.
Mas a fala mais contundente e perturbadora do dia talvez tenha sido a do pediatra Sérgio Tavares de Almeida Rego. Ele e a esposa Marisa tiveram trigêmeos em 1985. Prematuras, as crianças nasceram com 25 semanas e apenas um bebê —Pedro— sobreviveu.
Diagnosticado com uma complexa síndrome neurológica, Pedro convive com deficiências e supera a cada dia infinitos limites porque tem garra, amor e a dedicação sem limites de seus pais. Sérgio e Marisa doam diariamente tudo o que são e têm ao filho e sabem que é por isso que Pedro vive e é feliz. 
Esse pai ainda dividiu a história do aborto clandestino que ele e a esposa decidiram realizar quando Pedro tinha cerca de 1 ano. Seria impossível dar a atenção que Pedro necessitava com mais uma criança para criar naquele momento e Marisa, após longa reflexão, decidiu adiar o seu sonho de uma família grande.
O médico comoveu a todos e foi às lágrimas dizendo: "... falar em justiça é ver como nossa história reflete a desigualdade desse país. Queríamos ser pais melhores para Pedro, por isso resolvemos abortar aquela gestação. Marisa recebeu cuidado médico, não correu riscos à saúde, e quando estivemos novamente preparados, cinco anos depois, ela engravidou de nossa filha caçula, hoje com 28 anos".
Essa sim é uma história de defesa da vida, valorização da família, cuidado e amor. Mas, infelizmente, é, como disse o dr. Rego, a história de poucas.
Lembremos dos dados que a Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro divulgou na última semana.
Pesquisa coordenada pela jurista Carolina Haber confirma: criminalizar o aborto não diminui a prática, que está presente em todo o país e é realizada por todos os grupos socioeconômicos.
Pior. Na realidade, a criminalização não existe para todas. A minoria sem recursos é que sofre as consequências da criminalização. Um milhão de mulheres interrompe gestações por ano no país. Nos últimos 12 anos, o estado do Rio fez 42 mulheres responderem na Justiça pela realização de abortos clandestinos. A maioria delas negras e pobres, claro.
Nesta segunda (6) a audiência pública será retomada. Estamos fazendo história. Participemos desse debate. Vamos ouvir as percepções distintas que serão apresentadas. Mas não esqueçamos: o reducionismo dos grupos pró-vida que chamam as feministas de assassinas é, em si, mais agressivo que o exercício de escolha. É um discurso de ódio. É o oposto de tudo o que dizem defender.
Antonia Pellegrino e Manoela Miklos
Antonia é escritora e roteirista. Manoela é assistente especial do Programa para a América Latina da Open Society Foundations. Feministas, editam o blog #AgoraÉQueSãoElas.