domingo, 17 de abril de 2016

O homem que não sabia morrer


GILBERTO AMENDOLA - O ESTADO DE S.PAULO
19 Dezembro 2015 | 16h 00 - Atualizado: 19 Dezembro 2015 | 16h 00

Execução na floresta, casamento arranjado, passeata de mulheres nuas, fuga para o Brasil e outras histórias do professor Omana Ngandu


O professor Omana vai morrer. Ele será executado em uma floresta, quase na fronteira da República Democrática do Congo com Uganda. Com ele, outros 20 homens também vão morrer. A maioria já não se aguenta em pé, apanhou demais e apenas aguarda o desfecho inevitável daquela última viagem.
O professor Omana, que vai morrer, pensa na filha de cinco dias, na filha que acabou de nascer. Talvez ela seja poupada. Talvez. Pelo menos ela. O resto da família, não. Eles já devem ter sido encontrados. Encontrados e mortos.
O professor Omana, que já sente a alma escorregando para fora do corpo, ouve dois soldados discutirem. A briga tem a ver com dinheiro e com a possibilidade de deixá-los vivos em troca de alguma quantia. O soldado mais velho se sente insultado pelo parceiro mais jovem. “Como assim? Deixá-los viver?” Os dois sobem o tom. O soldado mais velho acerta um tiro na testa do companheiro de farda. Silêncio. Omana, instintivamente, dá um passo para trás.
Sem dizer mais nada, o soldado se vira para o grupo de homens perfilados. Berra qualquer coisa indecifrável. Sádico, ensaia um sorriso e pronto. Dispara. Disparos aleatórios. Os alvejados vão caindo em uma cova que já havia sido aberta antes mesmo de o grupo chegar, vão caindo uns sobre os outros, formando uma montanha irregular. Omana foi um dos primeiros a tombar. Um tiro ou dois na barriga. Agora, está soterrado, afogado pelos outros corpos.
Já é madrugada na floresta e o professor deve estar morto.
Cerveja. Estamos nos anos 70, na província de Kisangani, no leste da região hoje conhecida como República Democrática do Congo (na época, chamava-se Zaire). Omana acaba de perder o pai em um acidente de carro. Sua mãe, Omoy Edjo, se vê abandonada pela família do marido – tendo que se virar sozinha em uma sociedade machista.
Omoy encontra na produção de uma cerveja caseira a forma de pagar os estudos dos dois filhos. Sim, o curso de Letras, Ciências e Cultura Africana na Universite Nationale Pedagogique, em Kinshasa, é custeado por uma bem-sucedida produção de cerveja caseira.
Antes de terminar o mestrado, Omana se casa com Tiba Hamadi Bibigue. Não houve namoro, primeiro encontro ou idas e vindas. Tiba foi uma escolha da mãe de Omana. Ela simplesmente sentenciou que os dois deveriam ficar juntos.
Casado, vai morar na província de Nord-Kivu – região que se torna o epicentro da guerra civil que se espalhava pelo país. Entre 1993 e 2003, a disputa entre rebeldes, o exército da vizinha Ruanda e o próprio governo deixa cerca de 6 milhões de mortos – principalmente mulheres e crianças.
E o “principalmente mulheres e crianças” não sai da cabeça de Omana. Mesmo depois do fim “oficial” do conflito, a região continua uma zona de guerra. O país é então considerado o pior lugar do mundo para se nascer mulher, segundo estudo da ONU. Fala-se em 1.152 mulheres estupradas por dia. Ou 48 estupros por hora.
Em 2008, Omana funda a ONG Actions Urgentes D ‘Utilité Publique. No início, a ONG promove debates sobre a condição da mulher na África. Embora inofensivas, as reuniões causam desconforto no governo, que começa a prender, sistematicamente, o responsável por elas.
Nuas. Foram mais de 20 prisões, todas para averiguação, todas calcadas no terror psicológico e no que poderia acontecer caso Omana continuasse “colocando coisas na cabeça das mulheres”. Em 2010, ele chega a promover três dias de greve geral de mulheres. Nesses três dias, quase nenhuma moradora de Nord-Kivu foi trabalhar.
Em janeiro de 2013, grupos rebeldes vindos de Uganda invadem regiões próximas à fronteira. Estima-se que mais de 30 mulheres de Nord-Kivu tenham sido violentadas e mortas. O governo da República Democrática do Congo pouco faz para evitar o feminicídio. Contra os invasores e o imobilismo do governo, Omana organiza uma espécie de levante popular.
Omana é preso outra vez. Ele, que tinha acabado de ser pai pela sexta vez, toma tapas na cara de um brutamontes na delegacia da cidade. A ameaça agora é que ele seria transferido para uma prisão da capital: “Lá, a conversa é diferente...”
Mas, de dentro da pequena delegacia, é possível ouvir o barulho das ruas. Um som incomum, que vem ganhando corpo, que parece cada vez mais forte e definitivo. Os covardes, como de praxe, espiam pela janela. E o que acontece lá fora, do ponto de vista deles, da polícia, tem o poder de uma maldição: são centenas de mulheres nuas dançando ao redor da delegacia. Mulheres nuas que cercam um prédio do governo e exigem a liberação de Omana.
A ordem veio de cima. Da temida capital. Aquele desfile de mulheres nuas tinha que acabar. O delegado engole o orgulho e pede para um policial comprar uma camiseta nova para Omana – aquela estava empapada de sangue. Ele seria solto uma hora depois do início da manifestação.
Floresta. Ao chegar em casa, reúne a mulher e os seis... cinco filhos. Cinco. A filha mais velha, Omoy Edjo Julibunê (batizada com o mesmo nome da avó) está na igreja. Não é seguro buscá-la agora. Se a polícia ou o exército tentar alguma coisa, a mulher e as crianças devem fugir pelos fundos, em uma saída secreta que já tinha sido preparada havia alguns meses.
Perto das 23h, o exército chegou. Batidas na porta. Gritos. Como ensaiado, a família escapa pelos fundos – e a imagem da filha de cinco dias, Steevana Omana, enrolada em um paninho branco foi a última coisa que ficou daqueles segundos que antecederam a entrada dos soldados.
Os homens invadem a sala de Omana. O professor é detido por dois soldados. Um terceiro acerta um soco no rosto dele; um quarto, chuta o peito dele; um quinto, derruba o professor no chão. Um círculo se fecha ao redor do seu corpo indefeso. Ele poderia morrer ali. Mas o plano é outro. Omana é posto de pé e levado para um caminhão já carregado de outros condenados.
São 90 quilômetros até a floresta, localizada quase na fronteira com Uganda. Os soldados dividem os condenados em dois grupos de vinte. Cada grupo segue uma trilha. São caminhos paralelos – mas distantes um do outro. No trajeto, o professor é surpreendido por um soldado, um jovem de 23 anos, chamado Bandu, que quase sussurrando diz que vai ajudá-lo. “Eu sei quem é o senhor. Você já deu aula para a minha irmã mais velha. Vou dar um jeito de o senhor escapar.”
O grupo de Omana é levado para uma área com poucas árvores, local em que uma cova coletiva já havia sido aberta, uma cova que já esperava, com sua boca escancarada, receber os homens que seriam mortos dentro de instantes.
Para facilitar o trabalho dos soldados, os homens são perfilados quase que na beirada da cova. Assim, ao serem alvejados, o impacto da bala faria com que caíssem dentro do buraco.
Mas, quando a morte já tinha cheiro, uma coisa aconteceu. O outro grupo de condenados tinha se rebelado. Gritos e tiros foram ouvidos do lado em que eles estavam. De pronto, seis soldados do grupo de Omana foram descolados para o lugar da balbúrdia. Bandu, o soldado que queria ajudar, precisou acompanhar os outros homens.
Com o grupo de Omana, ficaram dois soldados. A diferença de idade entre eles era escandalosa. Omana sente a alma deslizando para fora do corpo. Pensa na filha de cinco dias. Talvez ela seja poupada. O resto da família, sem chance. Os soldados começam uma discussão sobre dinheiro. “Como assim? Deixá-los vivos?”. O soldado mais velho acerta um tiro na testa do seu companheiro de farda. Omana, instintivamente, dá um passo para trás. O soldado mais velho berra qualquer coisa. Ele dispara. Omana é alvejado na barriga. Cai na cova. Outros corpos caem por cima dele.
Céu. Omana não soube morrer. Primeiro foi um líquido quente escorrendo pelo rosto. Um líquido que era sangue e que fez o professor acordar. E o professor acorda sem distinguir quem era ele, acorda soterrado por braços e pernas que pareciam peças soltas de manequins descartados, defeituosos. Ele ouve gemidos, pedidos de socorro, tenta responder, mas a voz não sai.
Afundado naquele espetáculo bizarro de vísceras e sangue, Omana pensa salvar uma vida, empurrando o intestino de um homem para dentro de uma barriga. O que o professor não sabe, por enquanto, é que aquele intestino era dele.
“Professor, professor”, grita o soldado Bandu.
“Aqui, aqui, eu ainda estou na vida, eu estou na vida”, repete o professor Omana.
Bandu, o bom soldado, ajuda-o a sair do meio dos corpos, de dentro da cova. “Não estamos longe da fronteira. Vamos escapar por Uganda”, diz Bandu. Os dois homens caminham por algum tempo até que Bandu pergunta sobre o ferimento na barriga de Omana. “Que ferimento?”, responde. Quando se dá conta do que fez com o próprio intestino, apaga. Desmaia.
Omana só vai acordar em um hospital de Uganda. Diz que sua primeira percepção foi sonora – como se saísse do silêncio absoluto para o meio de uma orquestra. Depois, hesitou em abrir os olhos. Tinha medo de acordar no inferno. Mas, ao abrir as pálpebras e se deparar com o branco do uniforme médico, repete: “É o céu. É o céu.”
Fuga. A estada no hospital de Uganda dura pouco. Ali, ele ainda corria sério risco de ser morto por algum agente do governo do Congo ou mesmo por rebeldes locais. Por isso, é levado para um hospital no Quênia.
Lá, teve a ajuda de médicos que atuavam na região, inclusive um casal de brasileiros, para organizar a logística da fuga, arrumar dinheiro e documentos falsos. “Quando eles me perguntaram para onde eu queria fugir, respondi Brasil. Sempre senti uma ligação com esse País...”
Então, ele voou para a Argentina; na sequência, seguiu de carro para o Paraguai. Depois, alcançou a fronteira com o Brasil. Pronto. Era julho de 2013 e ele estava vivo. Em São Paulo, foi instruído a procurar ajuda da Cáritas, ONG associada ao Adus (Instituto de Reintegração do Refugiado).
Reencontro. Faz calor em São Paulo, o professor Omana Ngandu conta sua história em uma pequena sala de um prédio de dois andares no centro da cidade. No local, dá aula de francês e swahiri (dialeto africano). Lá, também funciona a ONG criada por ele, a LFCAB ( Langue Française Et La Culture Africaine au Bresil), que tem como objetivo disseminar a cultura africana.
Enquanto fala, o professor vai reagindo à sua própria história com expressões de dor ou alegria. Parece reviver cada segundo daquilo que conta. Tem algo enérgico ali, uma autoridade adormecida, algo que tem mais a ver com aquilo que ele já foi do que com aquilo que ele é.
Omana não tem muitas provas materiais da história que acaba de contar. Impossível saber se o que aconteceu na floresta foi exatamente como relata, se ele realmente foi ajudado por um soldado chamado Bandu ou se, por exemplo, médicos brasileiros de fato ajudaram-no com a logística da fuga. Mas Omana transmite convicção, tem as marcas no próprio corpo para mostrar e a história recente da República Democrática do Congo como factível pano de fundo. Mais que isso: Omana tem sua família como testemunha.
Neste ano, por meio de amigos na África, conseguiu localizar sua esposa e cinco filhos. Cinco. A filha mais velha, aquela que não fugiu com a família porque estava na igreja, teria sido violentada e morta na mesma noite em que o pai foi levado para morrer na floresta.
Tiba e o filho Kevin confirmam a história de Omana. “Nós achamos que o nosso pai estava morto. Para nós ele é um herói. Não vejo a hora de reencontrá-lo”, diz Kevin. Desejo também da menorzinha, Steevana, a menina que só tinha cinco dias quando o pai desapareceu.
  
Omana está tratando dos trâmites e autorizações legais para que a família seja aceita no País. Tem separado o dinheiro das aulas de francês para pagar as seis passagens aéreas da família. Para ajudar, amigos também fizeram um crowdfunding (uma espécie de vaquinha virtual) para ajudar no montante.

O professor não sabe morrer. Ainda sente a alma deslizando para fora do próprio corpo, ainda acha que chegou no céu. Só que agora, acredita ser o céu algo muito parecido com essa expectativa doce de reencontrar Tiba e as crianças.

A conversa com Boni, na íntegra, Oesp

CRISTINA PADIGLIONE
16 Dezembro 2015 | 18:54
HR6887 SÃO PAULO/SP 25/11/2015 BONI LIVRO CADERNO 2 EMBARGADO ATÉ DIA 28  - Entrevista com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que está lançando o livro "Unidos de outro mundo - dialogando com os mortos" FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO
José Bonifácio de Oliveira Sobrinho em seu apartamento, em São Paulo. FOTOS: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO
Ex-vice-presidente de Operações da Globo, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, resolveu “morrer”, em um novo livro (Unidos do Outro Mundo, Dialogando com os Mortos, Ed. Sextante), para se reencontrar com gente por quem nutre o mais absoluto respeito e muita saudade. Nem todos se despediram dele em paz, sem pendências, e o caso mais conhecido talvez seja o de Walter Clark, que o acusou de ser o principal responsável por sua demissão do cargo de diretor-geral da Globo, ainda na década de 70, pelo menos 20 anos antes de Boni deixar a emissora.
Boni conversa com Clark, jurando que não leu sua autobiografia (O Campeão de Audiência), mas, de certa forma, respondendo a tudo que lhe diz respeito naquelas páginas. Embora Clark tenha lançado seu livro pelo menos seis anos antes de morrer, só agora, por ocasião de um encontro ficcional, Boni retoma os pontos apontados pelo ex-parceiro de Globo na obra recentemente relançada por Gabriel Priolli, que ouviu e colocou no papel os longos depoimentos de Clark paraO Campeão de Audiência. 
E, ainda que tenha acertado algumas pendências no livro, Boni volta a cutucar Clark sobre as diferenças entre os dois na nossa conversa.
Também dialoga com Roberto Marinho, de quem preferia ter ganhado ações da TV Globo, em troca de lindos elogios verbais.
Reencontra Chacrinha, a quem lembra que quis filtrar as baixarias de seu programa, já que não queria que o Velho Guerreiro se igualasse a Flávio Cavalcante.
E, claro, reencontra Tim Maia, a quem faz os elogios mais rasgados por tanto talento, sem negar que proibiu sua presença nos programas da Rede Globo, em razão de tantos canos dados pelo cantor a compromissos por lá agendados.
Reproduzo a seguir minha conversa com Boni sobre o livro, na íntegra.
HR6870 SÃO PAULO/SP 25/11/2015 BONI LIVRO CADERNO 2 EMBARGADO ATÉ DIA 28  - Entrevista com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que está lançando o livro "Unidos de outro mundo - dialogando com os mortos" FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO
Como surgiu a ideia de simular diálogos com amigos mortos?
Boni – É um livro de saudade. Eu passei três experiências de UTI violentíssimas. Primeiro foi o Luiz Eduardo Borgeth, que era muito meu amigo. Quando ele foi se internar pra fazer a operação do coração, ele falou: ‘olha, se acontecer alguma coisa comigo, não demorem muito. Venham logo que eu não consigo esperar’. Ficou aquela coisa de um amigo que foi embora.
Depois, minha mãe faleceu, com 99 anos de idade e ela era uma criatura fantástica e me pediu desculpas pra morrer, sabe? Ela falou: ‘olha, meu filho, eu queria chegar aos 100 anos, mas não vai dar, eu vou ter que morrer’. Eu falei: ‘quando?’  E ela: ‘é hoje’. E foi. Depois teve o Vizeu (Carlos Alberto). Eu estava lá em Paris e o médico dele falou que ele tinha morrido, morte absoluta, não tem mais nada, E a gente fez esse renascimento do Vizeu (No livro, Boni narra que escalou um médico de sua confiança para cuidar do amigo, e esse médico acabou deixando o caso com o filho, jovem que trouxe Vizeu de volta).  Eu fiquei de plantão nesses três períodos, dentro da UTI. Então me vi lá na UTI mortinho. O livro nasceu dessa experiência de acompanhamento dos amigos, e de uma saudade imensa de todos eles.
Você se permite ser mais passional nessa obra, dita de ficção, do que no outro livro (o ‘Livro do Boni’).
Boni – Ali, o outro livro é um livro sobre televisão. Esse é um livro sobre afeto, coisas diferentes. Resolvi fazer essa brincadeira porque eu queria me imaginar mais próximo deles.
Mesmo que os diálogos sejam fictícios, você cria esses diálogos sabendo o que e como cada um daqueles personagens pensava. Quando você cria aquela conversa com Janete Clair e Dias Gomes, imagina que eles diriam aquilo e então isso passa a não ser tão fictício…
Boni – Não. Aquilo é o pensamento deles. A Janete sempre dizia que a novela não tinha que ser a verdade, mas tinha que ser verossímil. E ela tinha essa paixão por personagens, foi o que inspirou um pouco o livro. Ela falava: não tem que ter só uma boa história, tem que ter personagens apaixonantes, porque as pessoas vão conviver com eles durante seis meses. O que nem sempre acontece ultimamente.
Mas o livro não é sobre televisão, é sobre a parte afetiva.
Quando eu trato de televisão nesse livro aí, falo de uma forma acadêmica. Em vez de ser de uma forma crítica, eu falo como poderia ser, em vez de reclamar do que está sendo feito. Depois de muito tempo, depois dos 80, é puramente acadêmico. Eu, por exemplo, não gostaria que futebol fosse às quartas-feiras, o Cassiano é que gostava muito de futebol, ele achava que tinha que ter um pouco mais, mas ele também reclamava quando atrapalhava a novela dele.
O livro é de matar saudade mesmo porque eu comecei muito cedo, mais ou menos todos os meus amigos têm de 10 a 15 anos mais do que eu, então eles se foram, me deixaram sozinho. Fica aquela vontade de reencontrar. O Armando Nogueira era aquele sujeito que gostava muito de música, com aquela gaitinha dele mal tocada, ele pegava todos os jornais e levantava todos os espetáculos que tinha de música popular brasileira, de jazz, música clássica. Me ligava e dizia: ‘já tô com os nossos ingressos’. Toda noite eu tinha um programa de música com o Armando Nogueira. De repente, o cara foi embora e eu fiquei sozinho. É realmente um pouco de solidão que tem no livro. Eu resolvi morrer pra encontrar com eles.
HR6882 SÃO PAULO/SP 25/11/2015 BONI LIVRO CADERNO 2 EMBARGADO ATÉ DIA 28  - Entrevista com José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, que está lançando o livro "Unidos de outro mundo - dialogando com os mortos" FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADÃO

E tem os desafetos… Você jura que não leu o livro do Walter Clark nem por curiosidade? 
Boni –  Nem por curiosidade. Eu li a entrevista que ele deu à revista ‘Veja’, na época. Depois, aquilo (tributo no ‘Domingão do Faustão’, na véspera da morte de Clark, seis anos após o lançamento do livro) foi uma coisa horrível, essa homenagem que me fizeram, eu não sabia que ia acontecer, eu vi no ar e fiquei passado, porque eu sou muito low profile, aquilo foi uma coisa exagerada, eu não sei de quem partiu, de dentro da empresa. O Roberto Irineu também queria fazer um carinho, aquilo me chocou muito, eu não gostei nada. Mas o Elio (Gaspari) tinha falado pra eu não ler o livro – ‘não leia, eu sei que você vai se aborrecer e a história não foi bem assim’. Em cima dessa matéria da ‘Veja’ é que eu respondo ao Walter, mas eu tenho muito carinho por ele. Nós tínhamos 30 anos de idade, pra tocar a TV Globo, quer dizer, nossos conflitos eram de pessoas muito jovens, com enorme responsabilidade, não tinha essa possibilidade de fazer uma análise crítica do que o outro estava fazendo, cada um queria fazer mais depressa que o outro. Ou às vezes ele queria segurar minha rapidez, eu sou muito rapidinho, havia um certo receio.
Outra coisa: eu enfrentava o doutor Roberto de uma maneira esportiva. Conversava com ele, numa boa, eu não brigava com ele. Mas o Walter brigava com o doutor Roberto. Ele era muito tímido, se magoava muito, quando ele não dizia o que ele pensava ele ia embora e ia tomar uma caninha, ele fugia da raia, isso fazia um mal pra ele muito grande. Ele não dizia por questões de delicadeza, de gentileza, mas eu não, eu não engolia sapo. Se tinha que discutir o assunto, vamos discutir, terminava sempre numa boa. Isso ajudava muito com que as minhas decisões fossem mais rápidas. Importante nesse período foi também o Joe Wallach (executivo que chegou à Globo como representante do grupo Time Life, inicialmente sócio da Globo: Wallach acabou ficando na emissora brasileira depois que a Globo conseguiu acertar as contas com os americanos). O Joe Wallach mora em Los Angeles, eu fui para lá agora, quando a Globo fez o seu aniversário de 50 anos. Ninguém deu uma palavra pra ele, não mandaram uma carta, um telegrama, então eu fui lá, fazer uma homenagem a ele, jantar com ele, ele ficou muito comovido, porque ele foi muito importante na condução dessa linha tênue de conflitos, na Globo, com Dr. Roberto, ele era o administrador de conflitos, com Dr. Roberto. Sem ele, a gente não faria a TV Globo. Sem ele, teria acontecido alguma explosão tipo Oriente Médio lá. Eu e o Wallach nunca brigamos. Ele tinha uma experiência muito grande de televisão americana, eu tinha um treinamento de televisão nos Estados Unidos. Então, a gente sabia o que estava falando. Minha linguagem e a do Joe era a mesma. A das outras pessoas era uma linguagem meio empírica, muito criativa e tal, mas uma linguagem que não tinha a ver com o profissionalismo. Nós conhecíamos teoria e prática. Os outros, ou conheciam prática ou conheciam teoria, mas nós fizemos uma dobradinha, essa dobradinha é que infernizava a vida do Walter.
Como não se deixar trair pela vaidade, tendo aquele poder todo que vocês tinham? Imagino que era algo bem difícil de administrar.
Boni – Eu nunca gostei disso, gostei sempre do poder no sentido de tocar pra frente, de realizar coisas, minha sala era aberta. Na semana passada, 65 atores me convidaram pra ir na casa do Fagundes, tava lá Fernanda (Montenegro), minha amiga. Eu fiz de todo esse pessoal da televisão a minha família. Eu esmaguei casamentos, vida pessoal, joguei tudo fora, porque eu estava ali envolvido. Enquanto o pessoal comemorava… o Walter gostava muito de comemorar, eu gostava de trabalhar, a minha equipe era toda voltada para o trabalho, a gente comemorava o dia a dia, não como um sucesso. O Walter conseguiu achar que a televisão estava pronta muito antes de ela ficar pronta. Mas a gente era muito amigo e os maus entendidos foram nos separando. Então, eu achei que seria bom, no livro, fazer essas pazes.
É verdade aquela história de que o Roberto Marinho lhe ofereceu 50% da TV Globo de Sorocaba de presente, como está no livro, na conversa entre vocês?
Boni – É verdade.
(No livro, Boni relata que desistiu de assinar toda a papelada, com a documentação já pronta, porque, na hora de fechar o negócio, o patrão lhe disse que não mais o pressionasse a lhe dar qualquer coisa; Boni se chateou com a acusação de tê-lo pressionado e afirmou que não queria mais o “presente”).
Existe uma mágoa de não ter recebido nada?
Boni – Não é mágoa, mas eu acho o que eu fiz pela TV Globo foi muito mal remunerado. Não há mágoa, porque não havia condição de eu ficar lá. Eu seria engolido pela tragédia da Globo. Se eu tivesse as ações eu não teria como sair. Estando lá dentro, eu teria que brigar por aquilo, mas eu resolvi, não valia mais a pena brigar porque os donos queriam daquele jeito. Não era minha linha de trabalho
A gente pode dizer que houve uma gota d’água?
Boni – A gota d’água, a gente podia dizer, foi a mexida do Jornalismo. Quando o Evandro (Carlos de Andrade) assumiu, ele veio pra trabalhar comigo, mas logo em seguida ele começou a tomar decisões direto com o Roberto Irineu, ele fez besteiras imensas, quando colocou lá a Lillian Witte Fibe com o William Bonner no jornal, o jornal caiu 30% de audiência num dia só. Mas o problema não é isso, eu me dava muito bem com o Evandro. O problema é que ele resolveu se juntar com o Roberto Irineu e tomar decisões que pertenciam à minha área.
Mas você não acha que era hora de trocar locutores por jornalistas na bancada?
Boni – Tinha sentido, mas o que devia ter acontecido naquela época é o que acontece ao redor do mundo. O Chapelin é jornalista. Então era o seguinte: tira o Cid e põe o Bonner, deixa os dois (Chapelin e Bonner) juntos e, mais tarde, tira o Chapelin. Essa era minha proposta. Eu achava que devia ser feito em duas etapas. Tirava um e no ano seguinte, tiraria o outro. E nós fizemos uma pesquisa. A pesquisa não indicava aqueles apresentadores que foram colocados no ar. A Lillian não estava na pesquisa, eu gosto muito dela, mas ela tinha um grau de rejeição imenso, o pessoal achava ela muito empertigada, coisa assim, nós já tínhamos testado ela no Jornal da Globo e tinha ido mal. Não dava mais.
Mas o livro, a minha preocupação é afetiva e carinhosa com a Globo, quando faço alguns comentários. São todos acadêmicos, não são críticas.
Você também aponta, por meio do diálogo com Janete e Dias Gomes, que há um exagero de favelas nas novelas que estão no ar.
Boni – Há, há um exagero de violência em cima de violência. Quando você faz uma novela, tem a obrigação de contrapor. Se uma novela é muito violenta, a outra tem que ser mais tranquila., mais romântica, mais pro lado da comédia, senão o cara não aguenta. A vida imita a arte, mas quando a arte começa a imitar a vida, fica meio pesado. As pessoas saem de uma situação de estresse,  de uma violência danada, e violência gratuita, porque quando tem alguma justificativa, o sujeito até entende, o vilão pode ser glamurizado quando a guerra dele é justa, mas quando não tem causa nenhuma e o cara sai matando as pessoas a troco de nada, se você repete isso na novela seguinte, a rejeição continua. Quando se comete um erro, tem que recuperar esse erro e fazer uma coisa completamente diferente. A novela não é um produto de uma novela só, ela se trabalha em conjunto.
Você acredita que há um fenômeno de escapismo que explique o sucesso de ‘Dez Mandamentos’, na Record, ou seja, as pessoas estariam exaustas de tanta corrupção e violência nos noticiários e, por isso, buscariam algo mais fantasioso?
Boni – A questão da novela bíblica é que Moisés é um grande personagem, essas coisas acontecem  esporadicamente. O difícil é a emissora concorrente da Globo manter esse padrão, é ela fazer um outro Dez Mandamentos, um terceiro, um quarto, é difícil. A Globo tem essa continuidade, que a segura nesse processo de liderança. Tanto é que Dez Mandamentos incomodou muito. Agora, tem erros estratégicos da empresa, como fazer o jornal competir com a novela, esticar o jornal pra competir com a novela, sacrificar o jornal pra salvar a novela da casa. Hoje, com essa velocidade de internet, você não pode ficar segurando o cara (telespectador).
Os detalhes que você descreve para o seu funeral me fizeram pensar em A Falecida, do Nelson Rodrigues, um meio de dizer como quer que seja seu rito de despedida, mas com mais requinte. No seu além, as pessoas bebem champagne, bons vinhos (risos)
Boni – São dois medos: você morre e deixa tudo o que tinha de ruim pra trás, não faz acerto de contas e deveria fazer. E outra coisa preocupante é encontrar todas as pessoas (no outro mundo) fazendo as mesmas coisas. Se tivesse a reencarnação, o risco seria dar de cara com todos os chatos de novo. Com todos aqueles aborrecimentos. Uma vida eterna convivendo com as mesmas pessoas seria uma aporrinhação total.
E não tem receio em ser saudosista, o que é necessário, de alguma forma.
Estou muito saudoso desses amigos. É muito importante ser saudosista, sem perspectiva histórica, você não consegue ter vida. Senão você não consegue olhar pra frente. Só a experiência do passado permite que você olhe para o futuro. Senão, fica um vegetal. O dia a dia fica te manipulando.
Faltou falar com algumas pessoas, mas essas tinham importância linear. Eu era muito amigo do Reali (Junior), fiz o capítulo, mas ficou inteiro sobre política europeia, porque nós conversávamos muito sobre política, acabamos depois eliminando personagens que não eram populares.
Hebe também, mas eu não trabalhei com ela nunca, embora tivesse o episódio da Rádio Nacional, que a única pessoa que dava bola pra mim era a Hebe. Resolvi fazer as conversas com as pessoas que tinham mais tempo de convivência comigo.
Você é conhecido por ser muito rigoroso com as pessoas. No livro, tem um mea culpa com sua mãe, que escrevia bem e que até poderia ter escrito novelas, não fosse por suas restrições…
Boni – Minha mãe escrevia muito bem. Janete queria que minha mãe fosse escrever novela. Existe essa tentativa de resolver um pouquinho esses laços afetivos que fazem o coração da gente ficar menor. A gente precisa expandir o coração.  Botar pra fora essas tristezas.
No livro, a minha morte é uma imaginação muito próxima da realidade.
Também dei o azar de não morrer no sábado e ter que aguentar o Fantástico no domingo.
Sua queixa a isso no livro também evidencia que você não está satisfeito com o momento atual do ‘Fantástico’, programa criado por você.
Boni – O Fantástico  hoje é uma colcha de retalhos, em vez de ser um mosaico. São coisas parecidas, mas a colha de retalhos não tem conexão entre uma coisa e outra. Na minha época, o Fantástico não tinha apresentador. Quando eu saí (da Globo), já tinha. Tinha que ter a grande matériaa, a matéria de capa. Hoje é tudo soltinho, e quando as matérias são grandes, são policiais. E o Fantástico tinha uma coisa importante pra mim: o tema chama-se esperança, quero mostrar esperança de uma vida melhor, as relações entre pais e filhos, a cura da doença, a tônica do Fantástico era a esperança, eles jogaram isso no lixo. O ‘Show da Vida’ agora é dizer que a vida não tem solução, eu não gosto disso.
BONI LIVRO

Na conversa com Armando Nogueira, você reprova a informalidade do Jornal Nacional. Concorda com isso de fato?
Boni – Concordo. Os jornais locais americanos são bastante informais, mas o jornal de rede americano é um apresentador só, não tem três. Hoje, mais do que nunca, o cara quando vê o Jornal Nacional, já viu aquilo em outro lugar. Então, o que o cara precisa ver ali? Se aquilo é verdade, que seja uma coisa oficial. O cara senta lá e faz sério. Agora, o cara levantar, botar apelido na mulher, chama a mulher de Maju, não tem sentido. O Brasil é um país informal, mas o Jornal Nacional é um boletim de hard news, informação, é preciso impor a percepção de que se deu no Jornal Nacional, aquilo é verdade.
A informalidade dos telejornais de rede nos outros canais é atraente, o Ricardo Boechat já atende até whatsapp na bancada do ‘Jornal da Band’.

Boni – Mas o cara que tá fazendo 30 (pontos de audiência) não pode se preocupar com quem tá fazendo 4. Mais do que nunca, ainda mais com essa linguagem dinâmica da internet, o jornal deveria ser mais dinâmico, com notícias mais curtas, mais informativas. O Armando sempre dizia que o jornal tem que ser cool. Os outros programas – o Globo Repórter, o Fantático, o jornal da noite vão discutir a notícia, de modo interpretativo. Esse jornal (Nacional), não, é um boletim. O Armando, eu dizia pra ele: ‘você tem 30 minutos’. Hoje tá com 50. E eu dizia: se faltar uma notícia em 30 minutos, eu vou te matar. Discute política em outro horário.

A soma das tempestades, por Miriam Leitão, no OGlobo


POR MÍRIAM LEITÃO
17/04/2016 09:00
O que nos trouxe até aqui foi a economia. A luta contra a corrupção não explica o que se passa, já que dos dois lados que se enfrentam no plenário da Câmara há envolvidos na Lava-Jato. Não há na lei do impeachment nada que puna a má gestão econômica, mas nenhum governo resiste ao trio inflação alta, recessão profunda e colapso fiscal.
Collor não caiu porque mentiu na campanha, nem pelo plano que aprisionou as finanças das empresas e famílias, mas sim porque essa violência extrema não entregou inflação baixa e produziu recessão severa. As denúncias naquela época de desvio de dinheiro, inclusive para proveito pessoal do presidente, deram o motivo final para o impeachment.
Este domingo, em que a presidente Dilma estará sob o ataque político de adversários e antigos aliados, começou no primeiro trimestre do segundo mandato. O tarifaço de energia fez a inflação dar um salto, e a popularidade despencar. Ao final de março de 2015, o percentual de ruim e péssimo pelo CNI Ibope havia atingido 64% e já se igualava ao pior momento do governo Sarney. Em dezembro, já havia batido o recorde de rejeição entre todos os presidentes da era democrática, com 70%. Em março deste ano, manteve o mesmo patamar porque o PIB continuou afundando e impediu a recuperação.
As pedaladas aconteceram principalmente no primeiro mandato. Elas foram um atentado à Lei de Responsabilidade Fiscal e explicam a desordem econômica em que o país está. Dilma desrespeitou, com seu ministro da Fazenda e secretário do Tesouro do primeiro mandato, inúmeras regras contábeis. A crônica econômica está repleta de decisões que atentaram contra o ordenamento monetário e fiscal do país. É justo que ela tenha que responder pelos abusos e absurdos que cometeu. Foram tantos, que transbordaram para o segundo mandato. Foram tantos que ameaçaram a estabilidade.
A crise econômica produzida pela gestão de Dilma levou ao enfraquecimento político da presidente. Ela foi inábil ao gerir esta crise, mas no primeiro mandato já havia demonstrado a mesma inabilidade de administrar a coalizão. O que a atingiu agora foi a soma de tudo: a crise econômica corroeu o apoio popular ao governo, os políticos começaram a se afastar, ela não teve sabedoria para agir. O fator externo que acelerou a dinâmica da crise foi a Lava-Jato. Nas investigações, não há indícios de proveito pessoal da presidente Dilma – apesar de haver contra vários do seu grupo, inclusive o ex-presidente Lula – mas sobram indícios de que houve dinheiro dos contratos da Petrobras no financiamento da campanha presidencial, que, é bom lembrar, elegeu Dilma Rousseff e Michel Temer. O fator Eduardo Cunha foi o gatilho. Atingido diretamente pelas denúncias de corrupção, ele preferiu atirar. Se Cunha sobreviver a tudo isso, o país estará encrencado.
O Brasil vive neste domingo um dia dramático sobre o qual será preciso continuar pensando. Estamos no tempo da traição, o que nunca é um espetáculo bonito de se ver, mas é fácil de explicar. Quando os políticos começam a fugir de um líder impopular, há um momento em que o movimento se acelera. Foi o que se viu nos últimos dias. Na época de Collor, até seu amigo de primeira hora, Renan Calheiros, o traiu. Todos tentam escapar do navio que afunda e mandam mensagens para as suas bases. Ainda mais em ano de eleição municipal, quando se formam as alianças e apoios para a renovação dos mandatos federais.
É tempo de complexidades. Nada é simples. Qualquer que seja o resultado da votação de hoje, o preço que o país pagará será alto. Se a presidente vencer, ela terá perdido a capacidade de governar; se o processo for adiante, serão meses de sofrimento em que a família brasileira permanecerá dolorosamente fraturada.

(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)