THIAGO DOS SANTOS ACCA, (, THIAGO DOS SANTOS ACCA É DOUTOR PELA , FACULDADE DE DIREITO DA USP, PESQUISADOR DO CENTRO DE PESQUISA JURÍDICA APLICADA (CPJA) DA DIREITO GV EM SÃO PAULO - O Estado de S.Paulo
Quando uma demanda é levada ao Poder Judiciário, o que a sociedade espera dele? O que se deseja é uma decisão célere que, sobretudo, não apenas encerre o processo, mas que pela garantia de direitos ponha fim ao conflito.
Os recentes casos de reintegração de posse mostram justamente o contrário, ou seja, que o Judiciário está contribuindo para a intensificação desses conflitos. A ordem de desocupação em áreas como o Pinheirinho (cumprida em 22 de janeiro de 2012 em São José dos Campos), abaixo da Ponte Estaiadinha (cumprida em 16 de novembro de 2013 em São Paulo) e, mais recentemente, o prédio da Oi (cumprida em 11 de abril de 2014 no Rio de Janeiro) é concretizada sem que circunstâncias relevantes sejam devidamente consideradas, bem como ignorando parte substancial das normas jurídicas existentes. O Judiciário analisa o conflito exclusivamente pela ótica da garantia da posse e propriedade e com isso deixa de oferecer uma solução adequada para as partes envolvidas.
Certamente, os problemas dos centros urbanos como falta de moradia e precariedade de infraestrutura nos impõem dificuldades que não podem ser superadas exclusivamente pelo direito. Por outro lado, a complexidade do tema não minimiza a importância de se discutir o papel a ser desempenhando pelo Judiciário quando se trata da atribuição de sentido ao direito à moradia e à função social da propriedade e de como implementá-los. Essa relevância existe até mesmo porque outros casos semelhantes voltarão a cena. As ocupações residem em um problema estrutural e não conjuntural. Em pesquisa realizada pelo Centro de Pesquisa Jurídica Aplicada CPJA) verificou-se, com base na análise de ações reivindicatórias, que 38% dos conflitos ocorrem em razão de ocupações de casas ou terrenos. Há, de um lado, muitos imóveis que não cumprem sua função social e, de outro, famílias que não gozam de uma habitação digna.
Em casos como os mencionados acima é preciso investigar se o imóvel cumpria sua função social ou estava abandonado e se as pessoas que o ocuparam faziam jus a uma política de moradia. Diante da complexidade fática e jurídica, o que faz o Judiciário? As carências sociais são lidas por um registro jurídico equivocado, o que o leva a envidar por um caminho em que, em última instância, tudo acaba por ser resolvido como "caso de polícia". Assim, há uma solução a curtíssimo prazo, porém essas famílias continuam sem moradia e permanecem à margem da sociedade. Nos casos do Pinheirinho e da Ponte Estaiadinha, as famílias foram simplesmente deslocadas das áreas, mas muitos, por não terem para onde ir, voltaram às ruas. Ora, o Judiciário deveria se preocupar com as consequências de sua decisão e o destino dessas famílias, já que seu dever é solucionar o caso e não simplesmente pôr fim ao processo. Provavelmente, destino semelhante será selado para as famílias que foram desalojadas do prédio da OI.
O Judiciário pronuncia uma decisão, contudo não é capaz de funcionar como uma instituição que auxilie na resolução efetiva do conflito. O caso Pinheirinho é um exemplo disso. Em primeiro lugar, a decisão colocou em contraposição o direito à moradia e o de propriedade de um modo irreconciliável ao afirmar que os esbulhadores "querem ver declarado (seu direito de moradia) às custas da propriedade particular da autora". Sem dúvida, em virtude da garantia do direito de propriedade não se está a esperar que as pessoas ocupem imóveis e vejam, com base na força, seu direito de moradia contemplado. Entretanto, o direito à moradia impõe que o conflito seja visto em outros moldes, como, por exemplo, atribuindo ao Judiciário o dever de tentar uma conciliação inclusive com a participação de órgãos políticos. A própria decisão admite haver um projeto de lei que pretendia desapropriar a área. Por que, então, não ouvir o município para uma tentativa de solucionar o problema? Em segundo lugar, havia um protocolo de intenções assinado por diversos atores políticos com o objetivo de regularizar a situação dos moradores e, assim, atender aos interesses do proprietário e dos ocupantes. Entretanto, tal protocolo foi ignorado pelo Judiciário, que não suspendeu a ordem de reintegração e com isso deixou de dar oportunidade para que houvesse uma conciliação.
A resolução do conflito jurídico com base exclusiva em uma leitura voltada para posse e propriedade e desconsiderando as peculiaridades dos fatos mostra-se não apenas deficiente do ponto de vista social, ao intensificar as possibilidades de violência, mas também jurídico. Ao se fortalecer esse viés privatista do sistema jurídico brasileiro em detrimento de normas constitucionais como o direito à moradia, as decisões de reintegração de posse tornam-se criticáveis não por parâmetros estruturados em torno de um ideal de justiça, mas por não levar em conta o ponto de partida básico em qualquer decisão: os fatos, o direito e sua necessidade de trazer paz social.
No domingo passado, o governador Luiz Fernando Pezão (PMDB-RJ) afirmou que cobrará a Oi pelos gastos com a desocupação do prédio da companhia no Engenho Novo, zona norte do Rio. Marcada por confrontos, a ação da PM e do Bope deixou 5 mil desalojados.