Só o homem primitivo, vivendo na floresta, poderia dar-se ao luxo de viver colhendo frutas nas árvores, pescando e caçando, como fazem ainda algumas tribos indígenas na Amazônia. Na vida moderna, não só os alimentos que comemos passam por uma complexa cadeia de preparações, como também as máquinas que usamos não são lanças e anzóis, mas complicados equipamentos, como geladeiras, televisões, automóveis e uma parafernália de outros produtos.
Para que funcionem são necessários eletricidade e combustíveis. Quase metade de toda a energia que a humanidade consome é usada em transporte e derivados de petróleo (gasolina e óleo diesel) são usados para isso.
Sucede que petróleo é um produto fóssil, herança do passado, que se originou há centenas de milhões de anos a partir de produtos orgânicos como florestas e vida marinha. Só existe em quantidades finitas e apenas em alguns países. Fatalmente, acabaremos por esgotar essa herança e daí a necessidade de procurar substitutos para a gasolina e o óleo diesel, o que a ciência moderna está fazendo com sucesso.
Um dos países em que isso está ocorrendo, hoje, é o Brasil, onde a cana-de-açúcar cresce bem e da qual se pode produzir álcool (etanol), que é um excelente substituto da gasolina. Álcool de cana é produzido no País - e usado como bebida - desde que os portugueses aqui chegaram, há mais de 500 anos. Produzi-lo em grandes quantidades e a um custo que lhe permita competir com a gasolina é outra coisa, mas conseguimos fazê-lo e assumir a liderança mundial nessa área nas últimas décadas.
O etanol é renovável porque cana é um produto agrícola que cresce todos os anos e não é poluente como a gasolina. É como se fosse energia solar transformada num líquido.
Os Estados Unidos, com todo o seu poder econômico e tecnológico, tentaram repetir o sucesso do Brasil nessa área, nos últimos anos, usando milho como matéria-prima (já que cana-de-açúcar não cresce bem em seu território), mas não tiveram grande sucesso.
Qual é, pois, a odisseia do etanol? Isto é, quais são as aventuras e peripécias que ele atravessou, que lembram a lenda clássica sobre as viagens de Ulisses, o herói grego, que duraram dez anos?
A primeira parte da odisseia diz respeito às políticas equivocadas adotadas pelo governo federal nessa área desde 2008. A partir desse ano, a área econômica do governo “congelou” o preço de venda da gasolina no País como um dos instrumentos usados para combater a inflação, com resultados desastrosos para a Petrobrás. Até então, a produção de etanol havia atingido cerca de 25 bilhões de litros por ano no Brasil. E parecia capaz de se expandir, não só nacionalmente, como em vários outros países que são grandes produtores de cana-de-açúcar, na América Central, na África do Sul e na Índia. Poderia tornar-se um produto que seria exportado para a Europa e os Estados Unidos, onde sua produção é mais cara.
Como resultado, a Petrobrás viu-se forçada a importar gasolina a preços internacionais e vendê-la a um preço mais baixo no País, o que causou prejuízos de muitas dezenas de bilhões de reais para a empresa. Uma vítima colateral dessa política foi o etanol, cujo preço é indexado ao da gasolina.
O governo pode controlar o preço da gasolina, mas não consegue evitar o aumento de outros custos, nem a inflação, e com isso tornou inviável a expansão da produção de etanol. Das 450 usinas existentes, cerca de 100 delas enfrentaram sérios problemas e muitas faliram. Em retrospecto, o comportamento do governo nessa questão parece incompreensível e fruto de idiossincrasias pessoais e ideológicas de algumas das autoridades federais envolvidas.
Em suma, o que nos anos iniciais do governo Lula parecia ser um dos carros-chefes do desenvolvimento nacional - a produção de um combustível limpo e que contribuiria para a sustentabilidade do planeta, além de gerar mais de 1 milhão de empregos diretos - teve de lutar duramente para sobreviver.
A segunda parte da odisseia são as barreiras alfandegárias e não alfandegárias que os países da Europa introduziram para evitar que o Brasil conquistasse o seu mercado de etanol. As barreiras não alfandegárias baseiam-se em argumentos que envolvem cientistas e provocaram grandes controvérsias, tais como:
A expansão da produção de etanol no Brasil é, de fato, uma das causas do desmatamento na Amazônia?
A produção de cana reduz a produção de alimentos e contribui para aumentar a fome no mundo?
Substituir gasolina por etanol reduz realmente a emissão de gases que provocam o aquecimento global?
Para esclarecer essas questões a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), em cooperação com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), preparou um estudo envolvendo 137 especialistas de 29 países e 82 instituições científicas, que prepararam um relatório de quase 800 páginas esclarecendo cada uma dessas questões (http://bioenfapesp.org/scopebioenergy/index.php).
O relatório é intitulado Bioenergia e Sustentabilidade e tem sido apresentado em conferências internacionais em vários países (inclusive no Banco Mundial). Esse documento deverá tornar-se a obra de referência mais atualizada nessa área e provavelmente terá papel importante em esclarecer e eliminar as barreiras não alfandegárias que têm sido levantadas contra o programa do etanol brasileiro.
A odisseia do etanol está, portanto, ao que parece, atingindo um fim com boas possibilidades de recuperação. O trabalho dos cientistas que prepararam o relatório da Fapesp é uma importante contribuição para que isso ocorra.
* PROFESSOR EMÉRITO DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO, FOI SECRETÁRIO DE CIÊNCIA E TECNOLOGIA DA PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA
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