quinta-feira, 28 de fevereiro de 2019

Os Brasis da nova Previdência, FSP


Reforma teria os idosos mais ricos na capitalização e os mais pobres na renda básica


O texto da Nova Previdência tem pontos positivos e negativos. A despeito da gravidade de nossos problemas fiscais atuais e das iniquidades remanescentes no sistema previdenciário em vigor, a proposta deve ser analisada sobretudo naquilo que supõe e que constrói para o futuro do país.
Nesse sentido, a pergunta a ser feita é menos "qual a economia gerada nos próximos anos", e mais, "quais tendências socioeconômicas o sistema previdenciário desenhado na proposta permitiria acomodar"?
A resposta mais óbvia é o envelhecimento populacional: quanto maior é a expectativa de sobrevida das pessoas após a aposentadoria, maior é o total de benefícios recebidos em relação às contribuições de quem está na ativa.
Para acomodar essa mudança demográfica, os sistemas ao redor do mundo têm sido reformados em três direções: adiar a idade de aposentadoria, reduzir o valor dos benefícios e/ou aumentar a contribuição de quem está na ativa.
Nos casos do aumento da idade mínima, com regra automática atrelada à expectativa de sobrevida, e das alíquotas progressivas de contribuição dos servidores, por exemplo, esse objetivo é cumprido sem prejudicar tanto os mais pobres.
Afinal, a criação de uma idade mínima atinge sobretudo quem hoje se aposenta por tempo de contribuição, ou seja, os trabalhadores que ficaram muito tempo em empregos formais.
Dado o enorme dualismo de nosso mercado de trabalho, os mais pobres já costumam se aposentar por idade (aos 65 anos para homens e 60 para mulheres), pois não conseguem acumular tempo de contribuição suficiente.
O problema é que diversos elementos da proposta não atuam apenas no sentido de se adaptar a mudanças demográficas, e sim a outras tendências —não desejáveis e tampouco inexoráveis— observadas em nossa economia nos últimos tempos, como o desemprego, a queda no grau de formalização das relações de trabalho e um dualismo cada vez maior na relação dos indivíduos com o Estado (educação e saúde privadas versus públicas, etc).
Ao aumentar o tempo mínimo de contribuição de 15 para 20 anos, o novo sistema impediria a aposentadoria de uma massa de trabalhadores pobres, sobretudo mulheres, que, além de passar muito tempo no mercado informal de trabalho, também costumam parar de trabalhar por alguns anos para cuidar dos filhos. Hoje as mulheres que se aposentam com um salário mínimo têm, em média, 15 anos de contribuição apenas.
Mas a aparente contradição entre exigir mais tempo de contribuição quando há queda no grau de formalização é denunciada em outro ponto do texto: a ideia é transferir uma massa cada vez maior de trabalhadores com menor tempo de vínculo formal de trabalho da atual aposentadoria por idade (com benefício de um salário mínimo) para o BPC (Benefício de Prestação Continuada), com valor de R$ 400 até os 70 anos e de um salário mínimo depois.
Do outro lado do abismo, a reforma abre espaço para que os mais ricos optem por poupar exclusivamente para a sua própria aposentadoria por meio de um sistema de capitalização de caráter obrigatório para quem aderir (em vez de apenas complementar), reduzindo assim a base de arrecadação do sistema de repartição e, eventualmente, o valor dos benefícios.
No dualismo abissal do Brasil previsto e estimulado pela nova Previdência, conviveriam, de um lado, os idosos mais ricos, que conseguirem poupar no regime de capitalização, e os mais pobres, que passariam a depender de uma espécie de renda básica não universal.
Laura Carvalho
Professora da Faculdade de Economia, Administração e Contabilidade da USP, autora de "Valsa Brasileira: do Boom ao Caos Econômico".
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Confissões de Sérgio Cabral são espetáculo do Brasil corrupto, FSP

Um dos episódios mais sublimes da psicopatia nacional dedicada à corrupção tem sido protagonizado pelo ex-governador Sérgio Cabraldiante de autoridades da Lava Jato no Rio.
A pedido de seus advogados, Cabral foi ao Ministério Público Federal e ao juiz Marcelo Bretas nesta semana para confessar crimes.
Mostrando-se bem disposto, finalmente reconheceu ter sido beneficiado pela corrupção. “Era propina direta e indireta. Muito dinheiro”, disse. Ao se abrir, também entregou ex-colaboradores, inclusive o seu então vice, Pezão, que está preso.
Cabral não é um Raskólnikov de Fiódor Dostoiévski (1821-1881), que em "Crime e Castigo” confessa espontaneamente roubo e assassinato ao se ver atormentado por arrependimento e angústia.
O ex-governador negou por mais de dois anos ter recebido propina e dizia que o dinheiro para luxos como vasos sanitários hi-tec e peças de kobe beef era sobra de caixa dois.
É possível que após nova condenação em dezembro e muita reflexão nas horas vagas o ex-governador finalmente se veja como um homem acabado, execrado nacionalmente e condenado a 197 anos e 11 meses de prisão.
Mas depois de confessar seus crimes, diz o que todos buscam nessas horas: “Hoje sou um homem muito mais aliviado”.
A “cura pela fala (ou palavra)” que parece ter acometido Cabral é a base do método psicanalítico descoberto em Viena a partir de 1880 e que ajudou a retirar dos confessionários da igreja um certo monopólio nessa área.
Foi no chamado Caso Anna O. que o médico Josef Breuer (1842-1925) usou a expressão pela primeira vez a partir de comentários de sua paciente Bertha Pappenheim. Nas consultas, ela comparava a uma “limpeza de chaminé” as associações livres que fazia e que acabavam por aliviar seus sintomas.
O método de falar, sobretudo a verdade, tem aplicações que vão das DRs dos namorados aos grupos de AA.
Mas parece muito otimismo acreditar que Cabral esteja nesse caminho, jamais trilhado no Brasil por gente do ramo e desprovida de superego como Paulo Maluf e Eduardo Cunha.
É notável que as confissões de alívio de Cabral tenham sido feitas ao mesmo juiz Marcelo Bretas que já condenou sua mulher, Adriana Ancelmo, na primeira instância. Segundo Cabral, que agora diz não esconder nada, Adriana ignorava seus esquemas e foi enganada o tempo todo por ele.
Dá até pena imaginar o sofrimento psíquico do ex-governador nessa íntima convivência com a mulher, que usufruía de tudo sem que ele lhe dissesse nada.
Fernando Canzian
Jornalista, autor de "Desastre Global - Um Ano na Pior Crise desde 1929". Vencedor de quatro prêmios Esso.