sexta-feira, 30 de junho de 2023

Ex-presidente do Patriota apresenta projeto para anistiar Bolsonaro, FSP

 Juliana Braga

BRASÍLIA

Ex-presidente do Patriota, o deputado federal Adilson Barroso (PL-SP) protocolou logo após o fim do julgamento no TSE (Tribunal Superior Eleitoral) um projeto de lei para anistiar o ex-presidente Jair Bolsonaro (PL).

Barroso foi um aliado de primeira hora de Bolsonaro e quase o filiou para disputar as eleições em 2018. De última hora, o então postulante preferiu o PSL. Depois, já em 2021, tentou abrigá-lo novamente após Bolsonaro romper com o antigo partido. Os esforços renderam a expulsão dele da legenda e a determinação de afastamento da presidência pelo TSE.

Adilson Barroso, ex-presidente do Patriota, com o então presidente Jair Bolsonaro (Foto: Marcos Corrêa/PR)

O projeto de lei perdoa todos aqueles que, nas eleições de 2022, tenham praticados atos posteriormente investigados ou processados sob forma de crimes de natureza política e eleitoral, "tal como aos que sejam praticados por motivação politica, incluindo condutas inseridas no âmbito da liberdade de expressão, manifestação e crença". A proposta descarta anistia a condenações por crimes hediondos, contra a vida ou ao patrimônio público e privado.

Para não restar dúvidas, um artigo ainda esclarecer que ficam assegurados os direitos políticos de quem se beneficiar da lei.

Na justificativa, Barroso destaca que estamos vivendo "momentos de tensão", "não importando para que lado se estivesse torcendo ou militando".

"A busca de uma solução pacificadora para as controvérsias decorrentes desse processo nos impele a apresentar esse projeto de lei que visa construir pontes de maneira que possamos enfrentar os desafios da fase que virá com serenidade e desassombro", argumenta.

PUBLICIDADE

Essa não deve ser a única iniciativa. O presidente da Comissão de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, deputado Sanderson (PL-RS), prometeu proposta similar, mas ainda não a protocolou. As iniciativas, no entanto, não devem prosperar.

O TSE decidiu nesta sexta-feira (30) por 5 votos a 2 tornar Bolsonaro inelegível por oito anos. O ex-presidente, 68, somente estará apto a se candidatar novamente em 2030, aos 75 anos, ficando afastado portanto de três eleições até lá (sendo uma delas a nacional de 2026).


Antônia confessou bigamia para se livrar de violência doméstica em Salvador, Matria, FSP

 Emily Machado

Doutoranda em história pela Universidade Federal da Bahia (UFBA)

SALVADOR

Em agosto de 1591, século 16Antônia de Barros foi ao visitador da Inquisição em Salvador fazer uma confissão surpreendente: era bígama. No processo aberto contra ela, ficou registrada a história extraordinária das desventuras matrimoniais de uma mulher comum: portuguesa, trabalhadora, 60 anos –30 deles vividos em terras baianas.

Quando se casou pela primeira vez, Antônia vivia em Portugal. O marido escolhido para ela foi o barqueiro Álvaro.

Ilustração de Mariana Waechter, em tons de marrom e azul, mostra, ao centro da cena, uma mulher olhando para o lado direito. Ela aparece das pernas para cima, usa uma camisa branca de manga longa com babados e uma saia preta com uma faixa com detalhes de bolinhas brancas. Os cabelos são brancos e longos e estão presos num coque atrás da cabeça. Uma mexa enrolada sai da testa até o pescoço. A expressão é de uma idosa serena. Ao fundo, contruções um pouco desfocadas e palmeiras completam o cenário.
A portuguesa Antônia de Barros foi processada por bigamia, mas livrou-se da acusação quando denunciou o segundo marido por violência doméstica em 1556, na Bahia - Mariana Waechter

Juridicamente, os homens eram responsáveis por todas as decisões da família, em especial aquelas importantes, como o matrimônio. Para muitas mulheres pertencentes às camadas populares, conseguir guiar os rumos da própria vida significava aceitar que fariam isso quebrando regras.

Foi o que Antônia fez: tornou-se esposa do homem que sua família arranjou e amante do homem que ela escolheu, Henrique Barbas.

Ao trair o marido, Antônia arriscou a vida. Crime e pecado, o adultério era considerado causa legítima para que o marido matasse a esposa. Antônia não foi assassinada, mas foi denunciada pelo marido à Justiça civil e condenada a ser expulsa de Portugal e enviada para o Brasil por cinco anos.

PUBLICIDADE

Ela veio para cá com o amante e nunca mais voltou. Desembarcou em Porto Seguro em 1559 e, em seguida, fingindo ser viúva, casou-se com Henrique.

Hoje em dia, a bigamia –ato de estar casado simultaneamente com duas pessoas– é classificada como crime na maioria dos países do Ocidente. No século 16, era um delito julgado pela Inquisição e punível com açoites, prisão, multas e degredo. Ao cometer bigamia, Antônia assumiu o risco a fim de revestir seu relacionamento com Henrique de suposta legitimidade e honra.

No Brasil colônia, mulheres honradas eram as que estavam sob a tutela do pai, do marido ou da Igreja e, por essa razão, tinham direitos e eram consideradas dignas de respeito. Durante 15 anos, Antônia viveu em Porto Seguro e era tida por todos como uma senhora honrada, esposa de Henrique. Isso mudou em 1574, quando ela decidiu deixá-lo por ter se tornado vítima de violência doméstica.

Inserida em uma sociedade que entendia o matrimônio como sacramento, um vínculo vitalício e inquebrável, conseguir a autorização da Igreja para um divórcio era um evento raríssimo. Cabe lembrar que, apesar de a violência contra as mulheres –dentro e fora do lar– ser recorrente desde o início da colonização do Brasil, a inclusão do termo "violência doméstica" no vocabulário jurídico nacional é extremamente recente, só foi implementada em 2006.

No Brasil colonial, as agressões físicas ocorriam abertamente nas relações conjugais, e Antônia encontrou uma maneira inusitada de se livrar da violência: entrou na igreja da vila e contou a todos que era bígama. A revelação do pecado lhe garantiu a anulação do casamento ilegítimo e a obrigação legal de se separar de Henrique.

Antes mesmo de finalizar o processo de anulação, Antônia o deixou e se mudou para Salvador. Ela já vivia sozinha na cidade havia 17 anos quando chegou a Inquisição exigindo de todos a confissão e denúncia dos pecados mais graves, o que a fez revelar outra vez sua história.

Na confissão que fez ao visitador, Antônia narrou todas as suas escolhas. Estrategicamente, ao justificar seus atos, ela afirmou que suas decisões foram fruto da ignorância, que era apenas uma mulher enganada pelas tentações do mal. E o visitador, por sua vez, só enxergou em Antônia exatamente aquilo que sua formação eclesiástica, masculina e de elite estava preparada para ver: uma mulher, logo, alguém sem instrução e sem ação.

Em suma, ela disse que pecou "sem querer". Ele acreditou. Antônia saiu praticamente impune, recebeu penitências espirituais e uma multa.

As ações de Antônia não foram uma excentricidade perdida no tempo e na história. Agindo nas margens do que era considerado socialmente aceitável, milhares de outras mulheres encontraram maneiras perigosas, pecaminosas, criativas, de controlarem suas vidas e concretizarem suas vontades ainda que as instituições religiosas e jurídicas da época afirmassem que esse controle não deveria lhes pertencer.

No Brasil, as leis contra a violência doméstica e de gênero são conquistas recentes, mas casos como os da Antônia revelam que a resistência feminina frente a uma sociedade opressora tem uma história tão antiga quanto a do próprio país.

PROJETO RETRATA MULHERES AO LONGO DA HISTÓRIA DO BRASIL

O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.

A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.