Em agosto de 1591, século 16, Antônia de Barros foi ao visitador da Inquisição em Salvador fazer uma confissão surpreendente: era bígama. No processo aberto contra ela, ficou registrada a história extraordinária das desventuras matrimoniais de uma mulher comum: portuguesa, trabalhadora, 60 anos –30 deles vividos em terras baianas.
Quando se casou pela primeira vez, Antônia vivia em Portugal. O marido escolhido para ela foi o barqueiro Álvaro.
Juridicamente, os homens eram responsáveis por todas as decisões da família, em especial aquelas importantes, como o matrimônio. Para muitas mulheres pertencentes às camadas populares, conseguir guiar os rumos da própria vida significava aceitar que fariam isso quebrando regras.
Foi o que Antônia fez: tornou-se esposa do homem que sua família arranjou e amante do homem que ela escolheu, Henrique Barbas.
Ao trair o marido, Antônia arriscou a vida. Crime e pecado, o adultério era considerado causa legítima para que o marido matasse a esposa. Antônia não foi assassinada, mas foi denunciada pelo marido à Justiça civil e condenada a ser expulsa de Portugal e enviada para o Brasil por cinco anos.
Ela veio para cá com o amante e nunca mais voltou. Desembarcou em Porto Seguro em 1559 e, em seguida, fingindo ser viúva, casou-se com Henrique.
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Hoje em dia, a bigamia –ato de estar casado simultaneamente com duas pessoas– é classificada como crime na maioria dos países do Ocidente. No século 16, era um delito julgado pela Inquisição e punível com açoites, prisão, multas e degredo. Ao cometer bigamia, Antônia assumiu o risco a fim de revestir seu relacionamento com Henrique de suposta legitimidade e honra.
No Brasil colônia, mulheres honradas eram as que estavam sob a tutela do pai, do marido ou da Igreja e, por essa razão, tinham direitos e eram consideradas dignas de respeito. Durante 15 anos, Antônia viveu em Porto Seguro e era tida por todos como uma senhora honrada, esposa de Henrique. Isso mudou em 1574, quando ela decidiu deixá-lo por ter se tornado vítima de violência doméstica.
Inserida em uma sociedade que entendia o matrimônio como sacramento, um vínculo vitalício e inquebrável, conseguir a autorização da Igreja para um divórcio era um evento raríssimo. Cabe lembrar que, apesar de a violência contra as mulheres –dentro e fora do lar– ser recorrente desde o início da colonização do Brasil, a inclusão do termo "violência doméstica" no vocabulário jurídico nacional é extremamente recente, só foi implementada em 2006.
No Brasil colonial, as agressões físicas ocorriam abertamente nas relações conjugais, e Antônia encontrou uma maneira inusitada de se livrar da violência: entrou na igreja da vila e contou a todos que era bígama. A revelação do pecado lhe garantiu a anulação do casamento ilegítimo e a obrigação legal de se separar de Henrique.
Antes mesmo de finalizar o processo de anulação, Antônia o deixou e se mudou para Salvador. Ela já vivia sozinha na cidade havia 17 anos quando chegou a Inquisição exigindo de todos a confissão e denúncia dos pecados mais graves, o que a fez revelar outra vez sua história.
Na confissão que fez ao visitador, Antônia narrou todas as suas escolhas. Estrategicamente, ao justificar seus atos, ela afirmou que suas decisões foram fruto da ignorância, que era apenas uma mulher enganada pelas tentações do mal. E o visitador, por sua vez, só enxergou em Antônia exatamente aquilo que sua formação eclesiástica, masculina e de elite estava preparada para ver: uma mulher, logo, alguém sem instrução e sem ação.
Em suma, ela disse que pecou "sem querer". Ele acreditou. Antônia saiu praticamente impune, recebeu penitências espirituais e uma multa.
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As ações de Antônia não foram uma excentricidade perdida no tempo e na história. Agindo nas margens do que era considerado socialmente aceitável, milhares de outras mulheres encontraram maneiras perigosas, pecaminosas, criativas, de controlarem suas vidas e concretizarem suas vontades ainda que as instituições religiosas e jurídicas da época afirmassem que esse controle não deveria lhes pertencer.
No Brasil, as leis contra a violência doméstica e de gênero são conquistas recentes, mas casos como os da Antônia revelam que a resistência feminina frente a uma sociedade opressora tem uma história tão antiga quanto a do próprio país.
PROJETO RETRATA MULHERES AO LONGO DA HISTÓRIA DO BRASIL
O projeto Mátria Brasil apresenta mulheres relevantes ao longo da história do país, desde a invasão portuguesa até os dias de hoje. Os textos são assinados por historiadoras e historiadores de diversas regiões brasileiras, e terão publicação semanal ao longo de seis meses.
A série foi idealizada pela professora do departamento de história da Universidade Federal da Bahia (UFBA) Patrícia Valim, que também é uma das coordenadoras do projeto.