segunda-feira, 8 de setembro de 2025

Edição de Sábado: O crime sem autor, MEIO

 Por Giullia Chechia

Filho de um general quatro estrelas, é tenente-coronel com mais de trinta anos de Exército. Serviu na Brigada de Infantaria Paraquedista e nas Operações Especiais do Exército Brasileiro, foi instrutor na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman), observador militar e oficial de ligação das Operações das Nações Unidas no Chile, e comandante do curso de artilharia da Aman. Ainda participou do planejamento e envio de militares brasileiros para a Força Interina das Nações Unidas do Líbano, pós-graduou-se em Relações Internacionais, tornou-se doutor em Ciências Políticas Militares, mestre em Operações Militares, e bacharel em Ciências Militares, especialista em Guerra Irregular e Ações de Comando, escreveu livros, recebeu mais de 15 medalhas de honra. “E, por último, foi ajudante de ordens do ex-presidente da República Jair Bolsonaro”.

Não por último. Após acoitar seu cliente sob as tecnicidades do currículo militar, o advogado Jair Alves Pereira recorreu ainda às credenciais parentais. “Filho de um general quatro estrelas, pai de três meninas e um esposo que eu venho aqui fazer a defesa”, proferiu na tribuna da Primeira Turma do Supremo Tribunal Federal (STF). Em seguida, respirou fundo. Procurava revelar o homem por trás de um dos personagens centrais da trama golpista – que, por um fio, não rasgou de ponta a ponta o tecido democrático brasileiro. O delator.

Àquela altura, no último 2 de setembro, Mauro Cid já era velho conhecido dos brasileiros. Estampara revistas impressas e eletrônicas aos montes desde 2022, quando o escândalo das jóias sauditas ganhou destaque no noticiário. Foi apenas o primeiro. Seu nome passou a figurar no esquema de fraude nos cartões de vacina para Bolsonaro e familiares e, finalmente, em meio às reuniões e minutas golpistas ligadas ao entorno do ex-presidente. Com medo, medo mesmo, de assumir a bronca e amargar, sozinho, anos de vida na prisão, aceitou o acordo de delação premiada. Assim, em 2023, tornou-se o primeiro a apontar dedos a quem fosse necessário, inclusive ao chefe do Executivo de quem fora braço direito.

Contou que Bolsonaro pressionou militares para angariar apoio em sua intentona, chegando a se reunir com a cúpula das Forças Armadas para discutir maneiras de barrar a transição de poder após a derrota nas urnas. Citou até a ex-primeira-dama Michelle Bolsonaro e o Zero Três, o deputado licenciado Eduardo Bolsonaro (PL), como entusiastas dos planos golpistas. Lançou à fogueira um colega de caserna, o general Walter Braga Netto, ex-ministro da Casa Civil e da Defesa e candidato a vice na chapa de Bolsonaro no pleito de 2022.

O trato com a Justiça pode lhe render uma diminuição de até um terço da pena. As chances de alcançar a redução máxima, no entanto, caíram quase na mesma proporção após a veiculação de uma reportagem da Veja, que tornou público áudios nos quais Cid relata possíveis coações por parte da Polícia Federal e do relator do caso na Corte, Alexandre de Moraes — e que ele garante que foram nada mais que um desabafo. Além disso, existem indícios de que o ex-ajudante de ordens trocava mensagens sobre a delação em uma rede social através de uma conta com o nome de sua esposa, o que violaria o acordo. Há também controvérsias envolvendo as várias versões do caso que relatou às autoridades. Em algum grau, todas as outras defesas exploraram estes gargalos. Daí, a aflição de Pereira.

“Esses mesmos áudios vazados na Veja falam mal de vossa excelência, ministro Alexandre de Moraes. É, vossa excelência deve estar acostumado com isso”, afirma o advogado em sua sustentação oral, a primeira entre as manifestações das defesas. A fala é atravessada por risos – dele próprio, de quem acompanhava a sessão e do julgador. Moraes abre o sorriso, assente com a cabeça e gira a cadeira marsala pra lá e pra cá. Troca olhares com a ministra Cármen Lúcia, que retribui o gesto irônico, como quem sabe: apenas mais uma terça-feira na vida de seu colega.

“Mas, em nenhum momento, esse áudio vaza qualquer coisa em relação à colaboração premiada. Ele confronta as ideias e a investigação, o que é normal e muito legítimo dentro do Estado Democrático de Direito em que o devido processo legal tem que ser preservado. Qual é o indiciado, aquele que é preso, o investigado que concorda com o delegado e o juiz?”, indagou Pereira nos minutos iniciais na tribuna.

Seguiu, então, se contrapondo à acusação apresentada pelo procurador-Geral da República, Paulo Gonet, que alega que Cid teria resistido a confessar os delitos. “Ele falou tudo que sabia. Entre falar tudo que sabe e praticar tudo que viu tem uma diferença muito grande.” As sustentações orais das defesas no STF costumam ser profícuas em frases de efeito. “Eu não posso imaginar que Cid tenha tentado dar um golpe de Estado quando ele já estava, em março, nomeado para assumir o batalhão de Goiânia, com casa alugada e os filhos matriculados no colégio. A vida dele seguia fora da ajudância de ordem. E, na verdade, a ajudância de ordem só atrapalhou a vida do Cid, para ser bem sincero”, desabafou. O crime estava ali, confesso. Ele viu tudo, segundo o advogado, mas não participou de nada.

Assumir a existência do delito, mas eximir-se da culpa – transferindo-a para ombros alheios e bem conhecidos – é praxe no direito criminal, garante a advogada criminalista Maria Tereza Grassi Novaes. “Isso acontece porque uma das teses que a gente tem de defesa é a negativa de autoria. O crime existiu, não dá para negar. Mas quem o praticou? Então, terceirizam a responsabilidade para negar a autoria do delito. E é o que tem acontecido neste caso”, explica. A cena se repete em tribunais por todo o país.

Curiosamente, um dos raros casos de grande repercussão em que esse empurra jurídico não ocorreu foi o de Alexandre Nardoni e Anna Jatobá — que reataram, inclusive, a parceria amorosa e seguem juntos. Apesar de corriqueiros, o desfile de dedos em riste e a cisão de confiança ganham, desta vez, relevo distinto. Protagonizam o julgamento do século. Tiram o corpo fora justamente aqueles que se colocaram, corpo e alma, à disposição do autoritarismo. A esquiva dá-se até mesmo fisicamente. No primeiro dia de julgamento, apenas o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira compareceu. No segundo dia, nem ele. Não é pouca coisa.

Mas, se Cid não tentou dar o golpe, quem tentou? Braga Netto, apontado pelo ex-ajudante de ordens como o financiador das ações que culminariam na ruptura? Esse que é o general acusado de orquestrar ataques virtuais contra os então comandantes das Forças Armadas, na tentativa de pressioná-los a aderir ao golpe?

“Preciso dizer, com todas as letras, já no início dessa fala: Walter Souza Braga Netto é inocente.” Assim começou a sustentação de José Luís Mendes de Oliveira Lima, o Juca. Criminalista experiente, defendeu o ex-ministro-chefe da Casa Civil José Dirceu no processo do mensalão e atuou como defensor de Leo Pinheiro, presidente da OAS, na Lava Jato. Sua trajetória em casos complexos é agora essencial. Como defender alguém acusado de fornecer apoio financeiro – numa sacola de vinho lacrada – aos “kids pretos”, que segundo a PGR, planejavam assassinatos do então presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva (PT), do vice-presidente, Geraldo Alckmin (PSB), e do próprio relator do caso no STF?

“Eu não estou pedindo a absolvição do General Braga Netto pelos serviços prestados ao país. Evidentemente, ele é um homem de passado, mas não é por isso que estou pedindo a absolvição. Peço porque ele não cometeu crime nenhum. Menciono isso porque ouvi o eminente advogado trazendo o currículo do Mauro Cid. Tem currículo, mas tem que dizer a verdade. Não pode mentir”, alfinetou Oliveira Lima.

Foi o último a sustentar oralmente a defesa. Argumentou que a delação de Cid deveria ser anulada, já que demorou 15 meses para revelar a entrega do dinheiro e alterou informações sobre local e data da entrega. Colocou em xeque também a suposta coordenação dos ataques virtuais: como Cid teria organizado o “ataque violento ao Alto Comando se os oito prints que sustentam a tese mostram mensagens trocadas em apenas quatro dias com um interlocutor? Essa é a suposta periculosidade de Braga Netto?”, questionou.

O general é ainda suspeito de incitar os ataques de 8 de janeiro. Na acusação, Gonet destaca: “Mauro César Barbosa Cid ressaltou a relevante participação de Braga Netto na incitação dos movimentos populares, afirmando que ele mantinha contato entre os manifestantes acampados em frente aos quartéis e o Presidente da República”. Oliveira Lima até caracteriza os ataques como “criminosos”, mas dissocia o cliente. “Evidentemente, ninguém pode achar que aquilo foi um passeio no parque. Mas também tenho obrigação de dizer: Braga Netto não teve nada a ver com aquilo”. Segundo ele, durante os ataques, o general estava numa praia debaixo do sol carioca, jogando vôlei.

A bola, portanto, quica para quais mãos? Nas de outro militar da mas alta patente, as do almirante de esquadra Almir Garnier. É provável que ele tenha alguma conexão com a insurreição e o clima golpista que pairava sobre o Brasil. À época, comandava a Marinha e, como expõe a PGR, teria colocado sua tropa à disposição de Bolsonaro. “Repare-se bem que a reunião não se deu para que os comandantes tivessem ciência do grave ato, a fim de que a ele resistissem energicamente. Não! Foram convocados para aderirem ao movimento golpista estruturado. Basicamente, fixava-se que o então Presidente da República prosseguiria à frente do governo do país e se impediria a posse e o exercício do cargo pelo candidato que a população escolheu. O comandante da Marinha chegou a assentir ao convite para a intervenção no processo constitucional de sucessão”, discursou Paulo Gonet, na primeira sessão do julgamento, referindo-se à reunião de 7 de dezembro, quando Bolsonaro teria discutido a minuta de decreto golpista com comandantes do Exército e da Marinha, além do ministro da Defesa, Paulo Sérgio Nogueira.

Diferente dos demais advogados, Demóstenes Torres usufruiu de menos tempo para a defesa. Não por alteração do rito, longe disso. Todos tinham direito a uma hora no microfone. Ele, porém, decidiu gastar 22 minutos rasgando elogios aos cinco ministros à sua frente. Ao relator do caso, declarou ser um dos poucos brasileiros que gostam dele (fã ou hater?) e, ao mesmo tempo, de Bolsonaro. Ao presidente da Turma, Cristiano Zanin, ressaltou sua “cintilância” e eficácia ao defender Lula na Operação Lava Jato. Enquanto Demóstenes, ex-senador que foi de relator da Lei da Ficha Limpa a cassado por envolvimento com o bicheiro Carlinhos Cachoeira, se dirigia à ministra Cármen Lúcia, lembrando palestras que acompanharam em Goiás, Moraes abaixava a cabeça, segurava o riso e ajeitava a toga cobrindo o sorriso com o braço.

Depois, veio a louvação ao ministro Luiz Fux, cuja atenção é a mais solicitada neste julgamento. Os réus e suas respectivas representações apostam suas fichas nele para, se não chegar a pedir vistas e ganhar tempo, divergir veementemente de Moraes. “Dizem que vossa excelência passou em primeiro lugar no concurso para o Ministério Público. E isso é um grande feito. Uma pessoa que já começa de forma qualificada e que tem demonstrado isso durante sua carreira”, disparou Demóstenes. O próximo alvo, Flávio Dino. Ponderou que o ministro recém-chegado à Corte ainda poderia ser presidente da República, dada sua juventude. Só então percebeu que o elogio a Fux podia ter saído pela culatra.

Em uma das poucas intervenções dos magistrados, Fux interrompeu: “Passei de carreira para o Ministério Público porque me envolvi mais com a tarefa da judicatura. Achava que o Ministério Público opinava e o juiz decidia. E essa é uma vocação melhor. Biografia a gente tem que defender. Biografia a gente tem que defender”, repetiu, afastando abruptamente o microfone.

Uma pausa toma conta do ambiente. O clima pesa. Demóstenes retomou as homenagens… até chegar à defesa de Almir Garnier. Justificou que não há envolvimento do militar na tentativa de golpe. Se tentaram — no plural — desistiram, disse. E repensou: na verdade, não houve sequer a tentativa. Pediu a absolvição, ou, se não for possível, a redução da pena.

A pergunta permanece: tentaram quem? Qual é a graça do sujeito que atentou contra a democracia? A culpa recairia, então, sobre alguém próximo a Bolsonaro, apontado como cabeça do esquema? Ainda bem que o general Augusto Heleno já não era mais tão íntimo assim do mandatário, já não tinha tanta influência no governo. Ao menos é o que coloca na mesa sua defesa. O advogado Matheus Milanez, aquele que tem fome, assegura que Heleno perdeu relevância junto a Bolsonaro com a aproximação do ex-presidente do Centrão. Para a PGR, o argumento não cola. Gonet cita a reunião ministerial de 5 de julho, quando Heleno afirmou que “se tiver que virar a mesa, é antes das eleições”.

Bom, então resta alguém para encampar a culpa? Anderson Torres, o ex-ministro da Justiça. Ele é apontado por integrar reuniões com intenção golpista, desacreditar as urnas, e omitir-se, já após a derrota — como secretário de Segurança do Distrito Federal, das providências para evitar a invasão às sedes dos Três Poderes. Em vez disso, embarcou para os Estados Unidos para férias em família. E o mais grave: teve sua participação nas articulações materializada em forma de minuta golpista, encontrada pela PF em sua residência. Documento classificado por seu advogado, Eumar Novacki, como apócrifo. Sem qualquer valor jurídico. Mesmo que tivesse algum peso, aduz, já estava praticamente esquecido no fundo de um armário. Em suas alegações, Novacki pinçou até uma perícia constatando ausência de digitais no papel. Papel que existia na casa de todo mundo, assume.

Que mundo todo é esse? Afinal de contas, o ex-ministro da Defesa Paulo Sérgio Nogueira nasceu longe do golpismo e conduziu seu caminho na paz, como defendeu o advogado Andrew Fernandes e suas muitas citações literárias. “Sua história começa lá atrás, no dia 28 de agosto de 1958, no interior do meu querido estado do Ceará. Em Iguatu, terra bonita, terra do algodão, ornada e banhada pelo rio Jaguaribe, que, em Tupi, significa Rio das Onças, que curiosamente era a paixão do general Paulo Sérgio, Guerra na Selva, representado por uma Onça”.

Adapta, então, na tribuna, o poema I-Juca-Pirama, de Gonçalves Dias: “‘Guerreiro nasci, sou brabo, sou forte, e digo eu, sou filho do Nordeste’ e o general Paulo Sérgio é um brabo guerreiro do nordeste” porque deixou “o aconchego da família”, a “rede branca” e o “cachorro ligeiro” para estudar em um internado em Fortaleza, aos 11 anos. Ali, conta Fernandes, “começaria a crescer seu espírito pacificador”. “Mal sabia que a vida estava lhe forjando e aperfeiçoando e preparando para um momento decisivo da história nacional”. Acusado de apoiar a narrativa de fraude nas urnas eletrônicas e instigar a intervenção militar. Para a defesa, todavia, Nogueira atuou no sentido oposto, chegando a redigir um discurso no qual Bolsonaro reconheceria o resultado das eleições e trabalhando para “demover” o ex-presidente.

Bolsonaro, Bolsonaro, Bolsonaro. O nome ecoa entre todos os defensores. "Eu copiei aqui cinco vezes. Disse que o réu, neste caso, o cliente de vossa senhoria, ‘estava atuando para demover o presidente da República’. Demover de quê?”, interveio a ministra Cármen Lúcia. Sem pestanejar, Andrew Fernandes respondeu: “de qualquer medida de exceção”. Teria, então, finalmente, a culpa encontrado colo para repousar?

Na trincheira jurídica pelo ex-chefe de Estado, os advogados Celso Vilardi e Paulo Cunha Bueno negam — negam tudo. Cada qual a sua maneira. O primeiro incumbiu-se da defesa técnica. Entre os principais pontos criticados estavam, novamente, a delação de Cid e o cerceamento ao acesso à totalidade das provas. “A delação, da forma como está sendo proposto nas alegações finais do Ministério Público, não é uma jabuticaba. É algo que não existe nem aqui, nem em nenhum lugar do mundo”, defendeu. E continuou já desenhando o destino que se aproxima. “O que está se pretendendo aqui é reconhecer uma parcial falsidade da delação e, ainda assim, fazer um aproveitamento dela diminuindo a pena. Mas não é, na verdade, uma parte da pena em função de ela ter uma parte de omissões ou contradições. Omissão ou contradição é algo que deve anular a colaboração, ela não pode ser aproveitada.”

Sobre o material coletado pela PF, relatou que recebeu 70 terabytes (TB) de documentos, folhas de cadernos e mensagens trocadas no Whatsapp. Tudo para ser analisado em pouco mais de 10 dias. A título de comparação, um filme em qualidade Full HD ocupa, em média, de quatro a cinco gigabytes. Ou seja, 70 TB equivalem ao espaço tomado por 17.500 filmes em 1080p. Esse argumento reaparece em quase todas as sustentações. E mesmo assim, com tanto documento, reclamou de não ter contato com uma papelada cara à defesa: a prova referente ao general Mário Fernandes e ao Punhal Verde e Amarelo. “Eu quero dizer, vossas excelências, que em 34 anos é a primeira vez que venho à tribuna, com toda humildade, para dizer o seguinte: eu não conheço a integra deste processo. Eu não conheço. São bilhões de documentos”.

Moraes nega que tenha havido cerceamento. Na fala que abriu o julgamento, além de mandar variados recados sobre coragem e independência do Judiciário, na leitura do relatório do processo ele afirmou: “As defesas tiveram acesso a todos os autos e elementos probatórios. Os mesmos elementos em que se baseia a denúncia. Cerceamento de defesa é inexistente”.

Cunha Bueno, por outro lado, questionou o mérito das acusações — numa abordagem muito mais agressiva, e que chegou longe. Chegou à União Soviética. “Vejam, vossas excelências, temos aí o crime de golpe de Estado — tentar depor, mediante violência ou grave ameaça o governo legitimamente constituído. Se nós subtrairmos essa oração explicativa onde é colocada a violência ou grave ameaça como conduta pré-estabelecida, teríamos um tipo penal redigido da seguinte forma: tentar depor o governo legitimamente constituído. Ou seja, teríamos um tipo penal extremamente aberto e com uma perigosa amplitude, notadamente em delitos políticos.” Ao passo em que defende o acusado, os tec-tecs dos teclados ocupam a Primeira Turma, quase como uma orquestra uníssona. Fux olha fixamente nos olhos de Bueno. Moraes grampeia papéis e digita no celular repetidas vezes, como quem já se deixou perder a linha de raciocínio, o feixe de atenção. E Cunha Bueno continua, colocando que o Código Penal Soviético previa um tipo penal exatamente dessa forma: atentar contra o Estado Soviético. Por isso, um indivíduo teria sido processado e condenado sobre essa acusação por, simplesmente, urinar na parede do Kremlin.

O advogado ainda viajou para a França, comparando Bolsonaro a Alfred Dreyfus, militar francês julgado e condenado a prisão perpétua em 1894 por traição e, anos depois, inocentado. Um dos argumentos centrais da defesa de Bolsonaro é um que, não à toa, ressoa fortemente com quem ainda não compreende onde começa o planejamento e a tentativa de golpe de Estado — spoiler: começa quando o aspirante a ditador deixa de delirar na privacidade de seu banho ou de sua alcova e passa a conspirar com outros atores, especialmente os militares. Mas Cunha Bueno insistiu na tese de que, se é que houve algum, Bolsonaro não ultrapassou os limites dos “atos preparatórios”.

O que afirmam ambos os advogados é que não há provas de que seu cliente tenha atentado contra o Estado Democrático de Direito, participado de planos golpistas ou incentivado os atos de 8 de janeiro. Alegam que se trata de uma “sucessão inacreditável de fatos” com o intuito de “tragá-lo” para a trama. Vilardi tentou formular da seguinte maneira sua defesa: “Não tem um e-mail, não tem uma comunicação. Não tem nada. A denúncia está baseada num general que imprime. Que imprime uma minuta no Palácio e no mesmo dia vai ao Palácio do Alvorada. Essa é a prova? Não existe absolutamente nada”.

Mas Cunha Bueno quis dar um passo além, num tom intimidatório, enquanto do outro lado da Praça dos Três Poderes já se articula uma anistia ampla, geral e irrestrita a seu cliente. “Esta Suprema Corte não lida hoje com um caso trivial. Não. Estamos diante de um caso que, como todos e mais do que qualquer um, exigirá a credibilidade da decisão desta Corte. E essa credibilidade terá de ser exteriorizada pelo respeito ao devido processo legal, à ampla defesa, ao princípio do juiz natural, à imparcialidade objetiva, e principalmente em uma decisão calcada em provas contundentes, evidentes, e não simplesmente em narrativas ou suposições. De outra forma, se se prescindir desse mecanismo, teremos um julgamento que será inacabado. Porque ele estará sempre submetido ao irrequieto tribunal do povo.” É uma fala que conta com a mobilização popular anti-Supremo — convocada mais uma vez para ir às ruas neste domingo, em mais um 7 de Setembro sequestrado pelo ex-presidente.

Mas é preciso se agarrar à alguma tábua de salvação a essa altura, diante de uma acusação tão robusta, que chega a sua fase final. De um caso tão grave, como sustenta precisamente o procurador Paulo Gonet. “Os atos que compõem o panorama espantoso e tenebroso da denúncia são fenômenos de atentado, com relevância criminal, contra as instituições democráticas. Não podem ser tratados como atos de importância menor, como devaneios utópicos anódinos, como aventuras inconsideradas, nem como precipitações a serem reduzidas, com o passar dos dias, ao plano bonachão das curiosidades tão-só irreverentes da vida nacional. O que está em julgamento são atos que hão de ser considerados graves enquanto quisermos manter a vivência de um Estado democrático de Direito.”

São essas duas versões que os juízes, agora, avaliam. O julgamento do século chega a seu ápice.

silêncio dos evangélicos sobre o julgamento é ruim para o PT, Juliano Spyer, FSP

 Por que os evangélicos estão em silêncio durante o julgamento de Jair Bolsonaro no STF? O que teria feito a política se tornar um não assunto dentro de igrejas e entre cristãos que foram apoiadores fiéis e constantes do ex-presidente?

Hoje, nas igrejas, há um silêncio notável e cheio de significados —tanto nos encontros presenciais como nas conversas online. Falamos aqui dos cerca de 70% de evangélicos que, no segundo turno das eleições de 2018 e 2022, votaram em Bolsonaro ou optaram pelo voto útil contra o PT.

Esse silêncio tem duas motivações principais, que se aplicam a grupos distintos dentro das comunidades de fé: os bolsonaristas "raiz" e os que apoiaram Bolsonaro de forma envergonhada, por vê-lo como o "menos pior". A seguir, examino o que constrange e cala cada um desses grupos.

O silêncio dos bolsonaristas raiz pode ser descrito com uma metáfora futebolística, adequada nestes tempos de Fla-Flu ideológico. Eles estão calados como torcedores de um time prestes a ser rebaixado à segunda divisão.

Bolsonaro em culto evangélico no auditório Nereu Ramos, na Câmara dos Deputados - Pedro Ladeira - 3.ago.22/Folhapress

Esse sentimento tem camadas. A mais evidente é a sensação de derrota, que leva esse "torcedor" a se isolar e silenciar para evitar a zoação da torcida adversária. Mas há também a percepção de terem sido "roubados pela arbitragem" —um sentimento agravado pelo medo de que, se falarem, se tornarão alvo de novas retaliações.

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"Esse é um jogo de cartas marcadas", resumiu um pastor, pedindo anonimato. Para ele, a mobilização cedeu lugar ao desânimo porque a condenação já estaria definida. O julgamento seria uma farsa, fruto não de equilíbrio, mas de ódio.

O segundo grupo é formado por evangélicos que votaram em Bolsonaro de maneira discreta, sem engajamento público. Rejeitaram Lula e o PT influenciados pela Operação Lava Jato, mas hoje se sentem decepcionados. Embora também vejam viés nas decisões do STF, reprovam a tentativa de Bolsonaro de permanecer no poder após a derrota em 2022.

Esse sentimento também tem camadas. Muitos percebem agora que pagam um preço alto por terem colocado a disputa ideológica acima dos relacionamentos. "Eles abraçaram cegamente essa disputa. Misturaram torcida de futebol e fanatismo religioso e viram o quanto perderam", contou outro pastor, também de forma anônima.

Seu silêncio também revela uma decepção com a postura de políticos evangélicos. Sentem que, por causa dessa disputa, sua bancada se revelou movida pela busca de poder, não pela conquista de almas.

Essa situação poderia parecer favorável à esquerda às vésperas de um ano eleitoral, mas talvez não seja.
Os mais radicalizados guardam um ressentimento adormecido que deve impulsionar a militância a repensar os erros e corrigir o curso. Se vencerem, promoverão uma caça às bruxas contra quem não os apoiou.

Os decepcionados provavelmente terão, no segundo turno, que escolher entre Lula e um nome novo. E devem se inclinar a votar pela novidade —movidos pelo desejo de virar a página e superar a polarização, que, em sua visão, desviou energia demais do país em um momento de tantos desafios, internos e externos.

Interesse da Petrobras consolida etanol de milho frente ao de cana,fSP

 Pedro Lovisi

SÃO PAULO

O interesse da Petrobras em entrar para o mercado de etanol de milho consolida o crescimento de um setor que cresceu de forma exponencial nos últimos quatro anos. A estatal ainda não tomou sua decisão final de investimento, mas a mera cogitação em detrimento da tradicional rota de cana-de-açúcar aponta quão atrativo esse novo produto se tornou para os investidores.

O etanol de milho já corresponde a 17% da produção anual de etanol no Brasil, contra 8% de quatro anos atrás –e a expectativa é de que essa proporção continue subindo nos próximos anos, à medida que investimentos já anunciados sejam operacionalizados e o etanol de cana cresça a passos lentos. A EPE (Empresa de Pesquisa Energética) estima que o grão será em 2034 responsável por 23% da produção brasileira do combustível, e o setor estima números ainda maiores.

A imagem mostra grãos de milho sendo despejados de um recipiente, com um fundo de céu azul e algumas árvores ao longe. Os grãos caem em um padrão que cria uma nuvem de poeira ao seu redor, refletindo a luz do sol.
Colheita de milho na fazenda Maria Julia, na cidade de Paragominas, no sul do Pará - Danilo Verpa/Folhapress

De acordo com a UNEM, associação que representa os grandes produtores de etanol de milho do Brasil, há hoje no país 24 biorrefinarias operando. Outras 16 já têm autorização da ANP (Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis) para serem construídas e mais 16 estão programadas para construção. Na semana passada, por exemplo, a maior empresa do setor, a Inpasa, anunciou uma joint venture com a gigante do agro Amaggi para construir três plantas no Mato Grosso.

O boom se explica sobretudo pela rentabilidade do negócio. Ao contrário do etanol de cana-de-açúcar, o combustível feito de milho gera um subproduto de alto valor agregado: o DDG, que serve de ração para gados. Segundo a consultoria Datagro, uma das maiores do setor, o subproduto pode cobrir até 40% dos custos que as usinas têm com a compra de milho –o que se soma aos já altos preços do etanol. Há também a possibilidade de se fazer óleo com o grão.

Além disso, o mercado viu o preço do milho saltar nos últimos anos, o que aumentou a margem dos fornecedores do grão, que também arrecadam com a venda de soja, já que a maior parte do plantio de milho do Brasil é feita após a colheita da oleaginosa.

Segundo um importante empresário do setor, a rentabilidade do negócio sobe também porque o aumento da demanda interna por etanol de milho faz com que o produtor gaste menos com os custos para exportar o grão –hoje, grande parte da produção vai para o Oriente Médio e a Ásia. Assim, os ganhos de rentabilidade se dividem para todas as empresas da cadeia.

"Para se ter uma ideia, não há neste momento nenhum projeto de nova usina de cana no Brasil", afirma Plinio Nastari, consultor da Datagro.

Dados da Unica, a associação que representa os usineiros de cana, apontam grande diminuição da quantidade de cana destinada à produção do etanol, enquanto o preço do açúcar atingiu altas históricas no ano passado. Na safra de 2019 e 2020, por exemplo, 65% da colheita de cana foi para a produção de etanol, enquanto na última safra (terminada em março deste ano) foram 52%.

"Nos últimos anos o etanol de milho tem sido mais rentável. O produtor de cana-de-açúcar tem ido mais para o açúcar, porque ele tem visto uma rentabilidade maior nos últimos anos", diz Ricardo Mussa, ex-CEO da Raízen, a maior empresa de etanol de cana do Brasil.

Mussa, no entanto, não enxerga um cenário em que o etanol de milho abocanhe o mercado que hoje pertence aos usineiros de cana. Isso porque, na visão dele, o aumento da produção de etanol de milho tende a se expandir para o Norte e o Nordeste, regiões brasileiras que ainda vivem com pouca oferta de etanol. Das 32 plantas de etanol de milho em construção ou em espera de autorização, por exemplo, dez estão nas duas regiões, próximas ao Matopiba (que reúne MA, TO, PI e BA), onde o agronegócio mais cresce no Brasil.

"Até pouco tempo atrás, você não encontrava etanol na bomba do posto de gasolina do Mato Grosso ou de algum estado do Norte ou Nordeste, porque como o etanol era produzido em SP ele chegava caro nesses locais. Mas, com o etanol de milho sendo produzido de forma mais descentralizada, se começa a ter um mercado novo para o etanol, que é o consumidor do carro flex no Norte e no Nordeste ", diz Mussa. "Então, houve um aumento da demanda e isso significa que o etanol de milho não está tirando o mercado do etanol de cana-de-açúcar e, sim, da gasolina."

Rafael Borges, analista de inteligência de mercado da StoneX, diz que a maior oferta de etanol tende a reduzir o preço do combustível, o que aumenta sua competitividade frente à gasolina.

Pode estar aí uma outra razão para o interesse da Petrobras por esse setor, que também viu o governo aumentar, em junho, a adição de etanol à gasolina para 30% –podendo chegar até a 35%, conforme a lei Combustível do Futuro, sancionada no ano passado.

Questionada pela Folha, a Petrobras disse que o etanol é um vetor estratégico de baixo carbono na carteira de investimentos da empresa e que a estatal estuda parcerias, preferencialmente em participação minoritária ou com controle compartilhado, com empresas relevantes do setor. "Não há, no momento, definição quanto ao prazo ou à matéria-prima a ser utilizada nos projetos", afirmou.

Um especialista no setor que preferiu não se identificar, no entanto, apontou que a petrolífera pode ter dificuldades em adentrar em um mercado que já tem suas campeãs, como a Inpasa e a FS. Segundo essa fonte, apenas seria rentável para essas empresas se unirem à estatal caso ela entrasse como distribuidora –o que a Petrobras está proibida de fazer até 2029, devido a um contrato com a Vibra.

MERCADOS FUTUROS

Joga a favor ainda do etanol de milho uma possível aceitação maior por parte da comunidade internacional.

O etanol –independentemente da matéria-prima– pode dar origem aos combustíveis sustentáveis para aviões e navios, além do hidrogênio verde. Mas a União Europeia, que tende a ser o primeiro mercado para esses combustíveis, é reticente em aceitar rotas que envolvam biocombustíveis, sob alegações de que eles ameaçam a segurança alimentar e contribuem para o desmatamento de florestas. Essa é uma das maiores discussões em fóruns de energia dos quais o Brasil faz parte.

Mas, de acordo com Pedro Guedes, analista de transição energética para biocombustíveis do Instituto E+ Transição Energética, o agronegócio brasileiro tem esperanças de que o milho, por ser cultivado em áreas já destinadas à soja, seja visto com melhores olhos pelos europeus.

"O europeu acredita que há impactos adversos dos biocombustíveis para além da plantação em si que podem levar a aumento de desmatamento e, consequentemente, de emissões de carbono. Mas o milho, por utilizar uma terra que já estava sendo produtiva por causa da soja, não teria esse impacto secundário, pois não acarretaria numa expansão da fronteira agrícola", afirma.

Em julho, a Organização de Aviação Civil Internacional aprovou o uso do etanol de milho como rota para a fabricação de combustível sustentável de aviação.

Do lado do etanol de cana, por outro lado, o setor aposta no etanol de segunda geração, hoje já produzido pela Raízen, que tem três usinas em operação para produzir o produto –ainda 2% de toda a produção da empresa. Nessa rota, o combustível é feito a partir do bagaço da cana e, por isso, não competiria com a produção de açúcar.