quarta-feira, 2 de julho de 2025

Rui Tavares - Direita global tem sido mais eficaz para captar e manter a atenção, FSP (definitivo)

 Para responder à pergunta que todo o mundo faz —como pode a esquerda enfrentar a vaga das direitas— precisamos de uma teoria da atenção, uma teoria da mobilização, uma teoria da mudança e uma teoria da memória. Todas juntas, chamo-lhe de teoria dos objetos de desejo político.

É nela que penso ao olhar para os últimos eventos desta luta global, das primárias que levaram à eleição de Zohran Mamdani como candidato democrata à Prefeitura de Nova York às brigas pela reforma do Imposto de Renda que Fernando Haddad vem travando no Brasil. A ocasião para coligir alguns desses pensamentos soltos foi o convite para fazer um discurso de abertura numa reunião da Fundação Verde Europeia, mas a validade deles é transversal a geografias (e talvez até a épocas) diferentes.

Um homem em um palanque fala para uma multidão em um evento político. Ele está vestido com um terno escuro e sorrindo, com a mão sobre o coração. Atrás dele, há um banner grande que diz 'AFFORD to LIVE & AFFORD to DREAM'. Na frente, há um cartaz azul com o nome 'ZOHRAN for NEW YORK CITY'. A multidão parece animada, com algumas pessoas segurando celulares.
O candidato democrata à Prefeitura de Nova York, Zohran Mamdani, durante evento em junho - David Delgado - 25.jun.25/Reuters

Comecemos pela atenção. As direitas globais têm, nos últimos anos, sido incomparavelmente melhores do que as esquerdas a captar e manter a atenção do público. E essa vantagem é decisiva porque, se queremos o voto, o dinheiro, a mobilização, ou a opinião de alguém, primeiro temos de ter a sua atenção.

O primeiro problema é então convencer a esquerda de que precisa de uma teoria da atenção. O segundo problema é explicar-lhe que não pode ser a mesma teoria da direita.

A direita é extraordinariamente eficaz em captar e manter a atenção por meio da indignação, do escândalo, do rumor e do rancor. A esquerda pode tentar o mesmo, mas não só as pessoas esperam coisas diferentes dela como a atenção captada por meio da indignação e do escândalo muitas vezes não serve para fazer as coisas que a esquerda quer fazer. É mais fácil usar o escândalo para impedir qualquer coisa de se fazer; se quisermos explicar o plano para qualquer coisa que queremos fazer, a atenção se perde.

É aqui que entram os objetos de desejo político. Eles devem ser concretos como objetos, coletivamente conquistados para serem políticos, e devem ser desejáveis.

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Muito se falou do projeto de Mamdani para fazer mercearias públicas em Nova York, uma mera experiência de meia dúzia de lojas, que não chega nem de longe à complexidade de uma reforma do Imposto de Renda. Mas são objetos de desejo político. A reforma de um Imposto de Renda é um meio para atingir o fim. Por que não falar logo daquilo para que se quer usar o dinheiro?

Com objetos é mais fácil conseguir o tipo de mobilização de que a esquerda precisa. Um exemplo histórico é a jornada de oito horas conquistada pela luta dos trabalhadores ou o voto para as mulheres conquistado pelo movimento feminista. Ninguém se juntou aos sindicatos ou às sufragistas por gostar de fazer greve ou apanhar da polícia, mas antes por desejar aquele objeto.

Depois da atenção e da mobilização, é preciso garantir que a mudança aconteça mesmo, para não se cair num ciclo de frustração, ressentimento e rancor. E depois, finalmente, a memória: se não ficar gravado como foi conseguida aquela vitória, e por quem, perde-se a capacidade de fazer novas mobilizações por novos objetos.

A polarização com a direita é assimétrica. A esquerda tem de se lembrar como polarizar generosamente, voltando a ser o partido do futuro entusiasmante.

Lula preferiu um jogo de perde-perde, Elio Gaspari, FSP

 Existe um mau espírito em Brasília e ele às vezes captura o presidente, fazendo com que exacerbe as crises que entram no Palácio do Planalto. Com Bolsonaro, o mau espírito fez a festa, levando-o a falar em "meu Exército", louvar a cloroquina e demonizar as vacinas. Lá se foi o tempo de Fernando Henrique Cardoso, quando as crises entravam gordas no Planalto e saíam magras.

Lula decidiu levar ao Supremo Tribunal Federal a questão do aumento do Imposto sobre Operações Financeiras. Seja qual for a decisão do STF, o governo de Lula perde. Se perder, perdeu, se ganhar terá que lidar com um Congresso ferido. Tudo isso por causa de um aumento de imposto incentivado na sanduicheria do Ministério da Fazenda, sem que fossem ouvidos o Banco Central e ministros que cuidam da imagem do governo. Se os çábios da Fazenda tivessem mais humildade, teriam tirado o combo do escurinho de Brasília, ouvindo colegas do governo buscariam outras ideias.

A imagem mostra um grupo de pessoas em um evento. Em primeiro plano, um homem de cabelo grisalho e barba branca, vestindo uma camisa clara e um paletó escuro, parece pensativo. Ao fundo, outras pessoas estão visíveis, algumas com expressões neutras, e outras em conversação. A iluminação é suave e o ambiente parece ser interno.
O presidente Lula (PT) no lançamento do Plano Safra, em Brasília - Evaristo Sá - 30.jun.2025/AFP

O aumento do IOF foi um "combo" (nas palavras do ministro Fernando Haddad), para compensar uma perda de arrecadação na busca de equilíbrio das contas públicas. No sanduíche viria também um corte de gastos. O "combo" desandou, e o governo tentou, sem sucesso, negociar uma gambiarra. Não conseguiu e resolveu ir para o tudo ou nada no plenário. Na realidade tratava-se de um nada ou nada, pois o presidente da Câmara tinha avisado que não havia votos suficientes para aprová-lo. Batido, o mau espírito convenceu Lula a zangar-se com Hugo Motta e a levar a crise para o Supremo.

Ao escalar Motta para bode expiatório, a turma da Fazenda e uma parte do Planalto resolveram ampliar a crise. Terão de lidar com um aliado ferido.

Na retórica oficial, a ida ao STF pretende defender uma prerrogativa constitucional do Poder Executivo. No recheio de um novo combo, enfiaram também uma hipotética defesa do andar de baixo.

Contem outra, doutores. Apesar da promessa de Lula na sua posse, a fila dos segurados do INSS chegou a 3,9 milhões. Desde 2019 (governo Bolsonaro) milhares de aposentados vinham reclamando das tungas que tomavam de entidades fraudulentas. Até a metade deste ano os larápios tiveram mão livre e roubaram bilhões de reais de milhões de segurados.

Uma medida provisória publicada no último dia 11 mexeu no prazo do auxílio-doença concedido a partir de uma análise documental. O segurado podia receber seu benefício por 180 dias. Agora, só o receberá por 30 dias. Passado esse prazo, deverá conseguir uma perícia médica presencial ou ser atendido por um serviço de telemedicina.

Antes mesmo da sua vitória no segundo turno, Lula sabia que os eleitores haviam escolhido um Congresso conservador, com uma banda feroz. Ele prometia amortecer essa desdita conversando com parlamentares, mas jogou as palavras ao vento.

No perde-perde em que se meteu, o melhor resultado para a encrenca seria perder no tribunal. Ganhando, levará água para a banda feroz, às vésperas de um ano eleitoral, com um governo em viés de baixa junto à opinião pública. Uma receita para novos desastres.

terça-feira, 1 de julho de 2025

O ressentimento é a raiz de toda e qualquer violência revolucionária, Pondé. FSP

 Luiz Felipe Pondé

Vivemos na era do reconhecimento. O vínculo entre esta e o ressentimento é significativo. Todos querem ser reconhecidos em sua condição, ainda que banal. "Sigo comedores de tortas roxas no Instagram e exijo meus direitos!"

A era do ressentimento é algo conhecido há algum tempo. Nietzsche, no século 19, já identificara o ressentimento como uma condição do rebanho humano indignado com a indiferença do universo para com ele —preste atenção: indiferença é igual a não reconhecimento.

Alexis de Tocqueville, também no século 19, nas suas memórias ("Souvenirs") da revolução de 1848 na França, se refere ao ressentimento, ainda que como um detalhe que pode escapar ao leitor apressado, como matériaprima do motor revolucionário.

A imagem apresenta um gráfico abstrato com três grandes círculos pretos dispostos horizontalmente no topo. Abaixo, há uma série de círculos menores em tons de cinza, dispostos em uma linha. Linhas pretas conectam os círculos grandes aos círculos menores, criando uma rede visual. O fundo é branco e há uma assinatura no canto inferior direito com o nome 'Cammarota'.
Ilustração de Ricardo Cammarota para a coluna de Luiz Felipe Pondé de 2.jun.2025 - Ricardo Cammarota

Tocqueville, aristocrata da Normandia, famoso pelo seu volume "Democracia na América", era deputado constituinte na assembleia de 1848. Nesse momento, estoura mais uma tentativa revolucionária em Paris —e noutros lugares da Europa—, desta feita identificada com trabalhadores com intenções democráticas, cujo objetivo era incendiar a assembleia constituinte. O movimento derrubou o rei burguês Luís Felipe de Orleans e restaurou a república.

Nesse interim, Tocqueville é avisado que alguém próximo a ele tentaria matá-lo. Descoberto o potencial assassino, o aristocrata intelectual se refere a ele como um ressentido, portanto, potencialmente, um socialista.

Hoje, a publicidade começa a refletir sobre a era do ressentimento. A publicidade já foi um espaço sofisticado de análise do comportamento contemporâneo, mas os seus praticantes ficaram mais lentos desde que decidiram acreditar que deveriam fazer um mundo melhor. Passaram a crer que poderiam melhorar o mundo com propaganda de bancos e marketing de causa.

O resultado é que perderam a acuidade analítica, típico de quem é movido por causas. Toda militância implica redução cognitiva e epistêmica —trocando em miúdos, redução da inteligência aplicada.

E a era do reconhecimento? De partida, ela é, em alguma medida, decorrente do ressentimento de quem se julga pouco reconhecido por algum agente que tem poder no mundo e no cosmo —como bem viu Nietzsche. A busca por reconhecimento implica, quase sempre, a tentativa de destruir aquele de quem buscamos nosso reconhecimento. Tocqueville compreendeu bem essa dinâmica que trai a raiz ressentida de quem busca reconhecimento.

Para Axel Honeth, "herdeiro" da chamada Escola de Frankfurt, o reconhecimento é passo intrínseco da justiça. Através dele, um ator social pode construir sua identidade participante da cidadania. De certa forma, sem ela não há propriamente existência social.

Reconhecimento hoje é parte do marketing existencial, isto é, do marketing que vende significado. Mais do que "simplesmente" parte da construção de uma identidade cidadã, ele é um produto vendido para consumidores de identidades e de reconhecimento em geral e visa gerar relevância social, política e psicológica ali onde não há.

O romance "O Leopardo" de Giuseppe Tomasi di Lampedusa —que começou a ser escrito em 1954—, adaptado para o cinema, e mais recentemente, para uma série da Netflix, demonstra de forma sofisticada e clara o processo em que identidades psicológicas e sociais são entidades entrelaçadas de modo indissolúvel. E mais: como processos históricos disruptivos do tecido social e da hierarquia política põem em movimento criação e destruição de subjetividades.

A "revolução italiana" que unificou a península chega à Sicília em 1860, onde se passa o romance, e atinge a família do príncipe dom Fabrizio Salina. O príncipe, junto com seu sobrinho Tancredi Falconeri, no filme interpretado por Alain Delon, e a belíssima Angelica, uma burguesa nova rica de moral duvidosa no filme interpretada por Claudia Cardinale, uma deusa devassa, são os protagonistas.

A "hipótese de Tocqueville" parece ser comprovada pela narrativa ficcional do "Leopardo". Como diz o príncipe, num dado momento, os leões e os leopardos —a aristocracia— serão substituídos pelas hienas e pelos chacais —aqueles que buscam o poder, os burgueses e o "povo". A paixão política essencial aqui é o ressentimento de quem não tem o poder para com quem o detém.

O príncipe se reconhece como uma geração desgraçada que nem se identifica com o mundo que está a morrer, nem com o novo mundo que está a nascer. Portanto, não repousa social nem politicamente em lugar algum, daí sua subjetividade caminha para o aniquilamento. A era do reconhecimento é a era do ressentimento, raiz de toda violência revolucionária.