Por que a dor de perder R$ 100 é um sentimento muito maior do que o prazer de ganhar o mesmo valor? Foi a questões como essa, que exploram temas como a aversão à perda, que o psicólogo Daniel Kahneman, ganhador do Nobel de ciências econômicas, se dedicou ao longo de sua carreira como professor e escritor. Ele morreu na última quarta-feira, 27, aos 90 anos.
Conhecido como o pai da economia comportamental, Kahneman nunca fez um curso de economia, mas mesmo assim revolucionou a área, como conta Claudia Yoshinaga, coordenadora do Centro de Estudos em Finanças da Fundação Getulio Vargas (FGV).
O trabalho de Kahneman, realizado em grande parte na década de 1970 e por muito tempo em colaboração com o também psicólogo Amos Tversky, demonstrou até que ponto as pessoas abandonam a lógica e tiram conclusões precipitadas. A pesquisa desenvolvida pelos dois teve impacto em outros campos que vão do esporte à saúde pública e foi creditada como responsável por mudar como os olheiros de beisebol avaliam novos talentos, os governos elaboram políticas públicas e os médicos chegam a diagnósticos médicos.
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Kahneman dedicou-se a desmascarar a noção do “homo economicus”, ou “homem econômico”, que desde a época de Adam Smith era considerado um ser racional que age por interesse próprio. Em vez disso, descobriu que as pessoas confiam em atalhos intelectuais que levam muitas vezes a decisões equivocadas que vão contra seus próprios interesses.
Essas decisões equivocadas ocorrem porque os seres humanos “são muito influenciados por eventos recentes”, disse Kahneman. “Eles são rápidos demais para tirar conclusões precipitadas em algumas condições e, em outras, são lentos demais para mudar.”
“Pode parecer absurdo dizer isso, mas a economia comportamental, na qual Kahneman foi pioneiro, se baseia na premissa de que nós somos humanos”, diz Claudia. “Inicialmente, a economia clássica parte do princípio que todo mundo é racional, pensa da mesma forma e terá escolhas semelhantes. Mas, no mundo real, as pessoas não são necessariamente racionais o tempo inteiro, elas não pensam exatamente igual e fazem escolhas diferentes”, explica.
Segundo ela, as contribuições de Kahneman tiveram grande impacto. “Basta lembrar que ele é psicólogo e ganhou um prêmio Nobel de economia. Foi um reconhecimento muito grande da ciência como um todo de que, para discutir economia, era importante levar em consideração os aspectos psicológicos, o aspecto humano”, diz.
O pesquisador ganhou o Nobel em 2002, “por ter integrado conhecimentos da pesquisa psicológica na ciência econômica, especialmente no que diz respeito ao julgamento humano e à tomada de decisões sob incerteza”, afirmou na época a organização. O prêmio foi dividido com Vernon L. Smith, pioneiro no uso de experimentos de laboratório na economia. Kahneman afirmou que seu parceiro de trabalho Amos Tversky merecia grande parte do crédito pela pesquisa ― Tversky havia morrido anos antes, em 1996, e o Nobel não é concedido postumamente.
Intuição e vieses
Kahneman tinha uma visão negativa da capacidade das pessoas de pensar para resolver um problema. Suas ideias aparecem em seu livro Rápido e devagar: duas formas de pensar, lançado em 2012 no Brasil, onde ele afirma que “muitas pessoas são excessivamente confiantes, propensas a depositar muita fé nas suas intuições”. “Elas aparentemente consideram o esforço cognitivo pelo menos um pouco desagradável e o evitam tanto quanto possível”, escreve.
No livro, ele explica os dois modos de operação da mente ― que ele não criou, mas organizou e desenvolveu: o sistema 1, no qual a mente, agindo rapidamente, depende da intuição, de impressões imediatas e de reações emocionais; e o sistema 2, no qual a mente, desacelerando, funciona de forma mais racional e analítica e consegue corrigir os erros cometidos pelo sistema 1. Kahneman argumenta que, na maior parte do tempo, a mente trabalha no sistema 1 e tira conclusões com base em intuição, vieses cognitivos e qualquer outra coisa que acelere o processo de julgamento.
Outros autores personificaram esses modos mentais como econs (pessoas racionais e analíticas) e humans (emocionais, impulsivas e propensas a exibir vieses mentais inconscientes e uma confiança insensata em regras de ouro duvidosas).
Com Tversky, Kahneman realizou diversos experimentos para demonstrar esses vieses cognitivos. Um deles, por exemplo, apontou que muito mais pessoas estavam dispostas a fazer uma viagem de 20 minutos para economizar US$ 5 no preço de um produto que custava US$ 15, do que a fazer a mesma viagem para economizar a mesma quantia de dinheiro em um produto de US$ 125 ― o que se relaciona com o efeito de enquadramento (framing effect), ou seja, a forma como um problema se apresenta, que, segundo eles, pode alterar a tomada de decisão.
“Essa questão do framing effect também se relaciona com a teoria da perspectiva, proposta pelos dois, que diz que a dor de perder R$ 100, por exemplo, é maior que a alegria de ganhar de R$ 100. Então, mesmo que as situações sejam equivalentes, você enquadra a questão para a pessoa de modo que ela entenda que é um ganho ou que é uma perda e a tomada de decisão será diferente”, explica Claudia Yoshinaga, da FGV. “Essa ideia de que somos mais do que avessos a risco, nós somos avessos a perdas, foi uma grande contribuição do Kahneman e do Tversky”, acrescenta.
A teoria da aversão à perda sugere que é tolice verificar a carteira de ações com frequência, pois a predominância da dor sentida no mercado de ações provavelmente levará a uma cautela excessiva e possivelmente autodestrutiva.
Em outros experimentos, Kahneman e Tversky demonstraram outras tendências mentais que influenciam o julgamento das pessoas. Eles apresentaram a estudantes uma personagem fictícia, Linda, de 31 anos, como alguém que era ativista na faculdade, preocupada com discriminação e justiça social e participante de manifestações antinucleares.
Então perguntaram o que era mais provável: que Linda fosse caixa de banco ou que Linda fosse caixa de banco e ativa no movimento feminista. A grande maioria optou pela segunda opção, que seria a escolha menos provável porque a probabilidade de duas condições será sempre menor do que a probabilidade de qualquer uma delas. O experimento apontou a chamada falácia da conjunção, outra forma pela qual as pessoas às vezes tiram conclusões precipitadas.
Kahneman também se debruçou sobre a distorção psicológica entre o bem-estar “experimentado” e “lembrado” e sua conclusão foi de que a experiência lembrada é, em grande parte, determinada por seu “pico” (momento mais intenso) e pelo seu fim: se o final de um período de férias for agradável, as pessoas tendem a lembrar de todo o período de forma positiva; se houver menos dor no fim de um procedimento médico, as pessoas lembrarão de toda a experiência como menos dolorosa. Suas descobertas apontam que, às vezes, a experiência lembrada é mais importante do que a experiência em si.
“Mesmo que as ideias de Kahneman remontem à década de 1970, elas continuam superatuais e relevantes”, afirma Claudia.
O psicólogo e autor de Harvard Steven Pinker afirmou ao The Guardian, em 2014, que a mensagem central de Kahneman não poderia ser mais importante: que a razão humana deixada por conta própria está apta a se envolver em uma série de falácias e erros sistemáticos. “Portanto, se quisermos tomar melhores decisões em nossas vidas pessoais e como sociedade, devemos estar cientes desses vieses e buscar soluções alternativas. Essa é uma descoberta poderosa e importante”, disse.
O colunista do The New York Times David Brooks escreveu em 2011 que, antes de Kahneman e Tversky, as pessoas que pensavam sobre problemas sociais e comportamento humano tendiam a presumir que somos, em sua maioria, agentes racionais. “Elas presumiam que as pessoas tinham controle sobre as partes mais importantes de seu próprio pensamento. Eles presumiram que as pessoas são basicamente maximizadores de utilidade sensatos e que, quando se afastam da razão, é porque alguma paixão, como o medo ou o amor, distorceu seu julgamento.”
Mas os professores Kahneman e Tversky, continuou ele, “produziram uma visão diferente da natureza humana”. Brooks descreveu: “Somos jogadores em um jogo que não entendemos. A maior parte de nosso próprio pensamento está abaixo da consciência”. E acrescentou: “Nossos preconceitos frequentemente nos levam a querer as coisas erradas. Nossas percepções e memórias são escorregadias, especialmente sobre nossos próprios estados mentais. Nosso livre arbítrio é limitado. Temos muito menos controle sobre nós mesmos do que pensávamos.”
O livro mais recente de Kahneman, Ruído: Uma falha no julgamento humano, publicado em 2021 e escrito com Cass Sunstein e Olivier Sibony, analisa outro tipo de viés, que faz com que médicos deem diagnósticos diferentes para o mesmo problema e juízes deem sentenças diferentes para o mesmo crime, entre outros. É o chamado “ruído”: enquanto os vieses previsíveis ocorrem quando, por exemplo, um juiz sempre condena com mais severidade réus negros, o “ruído” diz respeito a decisões menos explicáveis resultantes do que é definido como “variabilidade indesejada nos julgamentos”./Com informações do The Washington Post e The New York Times