quinta-feira, 1 de fevereiro de 2024

Ideias devem ser desafiadas, Helio Schwartsman, FSP

 O povo navajo venera a Lua e entende que alguns projetos empresariais, como o de levar para repousar eternamente no satélite cinzas de humanos que foram cremados, a profanam. Com base nisso, os navajos procuraram a Nasa, pedindo que esse tipo de missão não se realize.

Sou um entusiasta da liberdade religiosa. Acho que qualquer indivíduo ou grupo é livre para acreditar no que bem entender e exercer quaisquer ritos ou liturgias que não violem a lei. É importante, porém, observar que a simples universalização desse direito já implica a impossibilidade de preservar todos os sistemas religiosos de questionamentos e mesmo profanações.

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O astronauta Buzz Aldrin, que fez parte da missão Apollo 11, durante experimento na Lua - Nasa - Nasa

Pelo menos para os que insistem em interpretações literais, as diferentes histórias da criação são incompatíveis umas com as outras. Quem afirma que foi Brahma quem gerou o Universo está negando que o autor de tudo seja o Deus das religiões abraâmicas. Cada vez que um padre lê certas passagens do Gênesis numa homilia, ele pode estar desrespeitando convicções pessoais de mais de 1 bilhão de hinduístas.

E as incompatibilidades não ficam restritas ao campo das narrativas religiosas. Elas se estendem também para terrenos mais universais, como o da investigação científica. A ciência não nega diretamente a existência de nenhuma divindade, mas produz explicações para fatos do mundo que tornam deuses menos necessários para suportar a realidade. Alguns grupos tomam isso como heresia e se põem a combater o ensino de certas teorias científicas, como o darwinismo, nas escolas.

Meu ponto, e aí vou contra os ventos identitários, é que não podemos tornar a suscetibilidade individual ou grupal a supostas ofensas em critério principal para definir o que é ilegal ou antiético, sob pena de sancionar uma guerra de todos contra todos.

Indivíduos merecem respeito; ideias, não. Qualquer ideia, não importa quão antiga, sagrada ou oprimida, pode e deve ser desafiada.

Ratos de porão, Ruy Castro - FSP

 No dia 24 de julho de 2005, o jovem deputado estadual Flávio Bolsonaro pendurou no pescoço do tenente PM Adriano da Nóbrega a Medalha Tiradentes, a maior honraria do Legislativo do Rio. A cerimônia não se deu numa sessão solene no Salão Nobre do Palácio Tiradentes, mas numa sala do Batalhão Prisional, em Benfica, zona norte da cidade, onde o agraciado estava preso pela tortura e execução, em 2003, de um guardador de carros.

O senador Flávio Bolsonaro, que em 2005 condecorou Adriano Nóbrega, beija o pai, o ex-presidente Jair Bolsonaro, que o defendeu de acusações que levariam o ex-PM à prisão - Evaristo Sá - 27.mar.22/AFP

A cerimônia era o de menos, o importante era a medalha. Ela seria usada pelos advogados de Adriano para inocentá-lo do crime e evitar sua expulsão da PM. E não ficou nisto. Em Brasília, o deputado federal Jair Bolsonaro, numa rara intervenção ao microfone da Câmara, usou o plenário para defender Adriano: "Um rapaz de 20 e poucos anos, coitado, sem dinheiro para sustentar a família, acusado para atender aos interesses da Anistia Internacional!". Não adiantou: Adriano foi condenado a 19 anos.

Libertado em previsíveis dois anos, o rapaz, coitado, tornou-se um dos mentores do Escritório do Crime, organização de matadores saídos da PM carioca. Isso não impediu que sua mulher e sua mãe fossem contratadas por Flávio como "assessoras". Entre os 20 crimes do Escritório, estão as execuções de Marielle Franco e Anderson Gomes. Em 2020, Adriano foi morto na Bahia pela PM local, numa típica tarefa encomendada.

A história de Adriano está no livro "Decaído", de Sérgio Ramalho (Matrix, 232 págs.), que tem os Bolsonaros como astros convidados. Os Bolsonaros brilham também em "Milicianos", de Rafael Soares (Objetiva, 317 págs.), devastador apanhado sobre a milícia, e em "Ilícito Absoluto", de Pádua Fernandes (Patuá, 397 págs.), sobre um amigo deles, o torturador Brilhante Ustra. Todos recém-lançados.

O Palácio do Planalto sempre teve seus porões. Mas nunca tinha recebido ratos tão robustos saídos dos porões policiais.


PT faz gracinhas e afronta regra republicana, Marcos Augusto Gonçalves, FSP

 A atuação de petistas nas contas governamentais postando gracinhas para provocar os adversários bolsonaristas por ocasião do escândalo da Abin foi deplorável. Os atletas do time petista, formado, entre outros, por veteranos como os ministros Rui Costa, Paulo Pimenta e Alexandre Padilha, com a colaboração inestimável de Gleisi Hoffmann, começaram o ano jogando como juniores e perdendo a Copinha da etiqueta política.

PT mal disfarça que permanece movido por ânimo sectário e revanchista, em aberta contradição com o discurso de final de ano de Lula, embrulhado em espírito natalino de tolerância e conciliação –uma peça já relegada ao jardim das hipocrisias, inclusive por atitudes recentes, pró-polarização, do próprio presidente.

Fossem usadas contas do PT nas redes sociais para cutucar oponentes, as manifestações seriam até aceitáveis, embora equivocadas por insuflar divisões e semear atritos. A publicação em contas governamentais já escapa à mais primária noção de comportamento republicano.

A arrogância dos apparatchiks do PT é proporcional à sua precariedade política. O próprio Lula já mandou recados para o partido, lembrando que dirigentes e militantes estão se isolando em becos doutrinários e dando as costas para a vida real da sociedade brasileira.

Em dezembro passado, durante convenção eleitoral da agremiação com vistas a 2024, Luiz Inácio falou: "Nós temos que nos perguntar por que um partido que, muitas vezes no discurso pensa que tem toda a verdade do planeta, só conseguiu eleger 70 deputados? Por que tão pouco se a gente é tão bom? É preciso que a gente tente encontrar resposta dentro de nós".

O presidente Lula (PT) discursa durante Conferência Eleitoral do PT 2024, em Brasília
O presidente Lula (PT) discursa durante Conferência Eleitoral do PT 2024, em Brasília - Reprodução - 8.dez.23/Gleisi Hoffmann no Facebook)

Aproveitou o palco para criticar as "briguinhas" constantes e as dificuldades do petismo em dialogar com setores evangélicos e com o mundo dos empreendedores. Em 2015, tempo de acusações e processos por corrupção que atingiam quadros do PT, Lula já havia dito que o partido estava velho e só pensava em cargos. Pregou uma revolução interna e a ascensão de gente nova.

O diagnóstico está aí, feito pelo CEO da sigla. Com raras exceções, como Boulos, que é do PSOL, e Haddad, visto pelo partido como inimigo, sobraria quem para pensar num voo eleitoral mais alto? O que seria desse grupo dirigente se Lula não estivesse mais em atividade?

O mandatário também, diga-se, embora um político fora do comum, tem lá arroubos de espantar. Incentivado talvez pela premência do tempo e da idade, às vezes parece querer promover uma espécie de acerto de contas idiossincrático com o que considera erros e injustiças históricos.

O voluntarismo mais recente foi a tentativa, convenhamos patética, de emplacar o ex-ministro da Fazenda Guido Mantega na presidência da Vale. Os desmentidos, depois que a pressão se mostrou inútil, chegaram às raias do ridículo.

Quanto aos descalabros da Abin, nesse episódio rocambólico, está claro que Bolsonaro instrumentalizou a agência para finalidades políticas e interesses pessoais, como já sugeriam outros indícios. O desvio de função é gritante. É preciso que governo, Judiciário e Legislativo enquadrem o órgão nos limites constitucionais. Os subterrâneos da arapongagem, se são problemáticos em qualquer lugar, no Brasil sempre estiveram voltados para disputas internas, não raro em benefício dos grupos políticos no poder.

É uma boa ocasião para discutir, afinal, que tipo de serviço de inteligência seria bom para o país e que controles podem ser realmente exercidos.