quinta-feira, 5 de outubro de 2023

Ruy Castro Tente apagar um papiro, FSP

 É revelador. Em 2009, na calada da noite eletrônica, a Amazon apagou do Kindle de seus clientes o romance "1984", de George Orwell. Não sei se é praxe da Amazon remover de seu catálogo, sem aviso prévio, um livro que ela própria vendeu. No caso, houve uma grita: milhares de leitores protestaram, e o mais contundente foi um estudante de Detroit, que, junto com o arquivo, perdeu também suas anotações sobre o livro, talvez para um trabalho acadêmico.

Em "1984", o vilão, como se sabe, é o Grande Irmão, o supersensor e censor que a todos acompanha e controla através de mecanismos de espia e escuta, como telas onipresentes e impossíveis de desligar. Qualquer semelhança com os atuais mecanismos de controle de nossos corações e mentes, a partir do momento em que se clica qualquer coisa em um celular ou computador, não é mera coincidência. Foi do livro de Orwell que Jeff Bezos, no fundo de uma garagem em Washington, inventou o negócio que lhe rende hoje US$ 200 bilhões por ano.

Bezos começou vendendo livros online. Hoje vende até submarinos e manda entregar na porta. Apesar disso, continua vendendo livros, agora com 60% de desconto em relação às livrarias físicas. Pergunta-se: como pode vender livros abaixo do preço de custo? Porque, ao ignorar todas as normas decentes de competição, reduziu os livros a uma isca para conquistar e "fidelizar" clientes. As livrarias físicas estão quebrando porque têm normas a respeitar. A Amazon não.

Bezos fez bem em apagar "1984" de sua lista. Não é uma história que lhe faça bem aos negócios. Não por acaso, foi em um recente e magnífico livro que fiquei sabendo do apagamento de "1984": "O Infinito num Junco", da espanhola Irene Vallejo. É uma história do livro, do papiro à nuvem, e de todos que o usaram nos últimos 30 séculos para fazer a vida valer a pena.

Tente apagar um papiro.

35 anos de ambição democrática, Conrado Hubner Mendes -FSP

 Aniversários da Constituição de 1988 costumam ter, entre juristas, um certo tom triunfalista. Mesmo que reconheçam frustrações, balanços quinquenais raramente deixavam de enfatizar uma linha de progresso no desenvolvimento constitucional do país. Sua longevidade (a terceira maior da nossa história) seria fruto da virtude da resiliência e do compromisso com o Estado de Direito.

Essas convicções, se um dia fizeram sentido, estão abaladas neste 5 de outubro de 2023. O senso de retrocesso e de risco de ruptura cresceram na última década. Até entre juristas pollyanna, que olham para o mundo real e só enxergam avanços, o cenário já não está tão cor-de-rosa. Mesmo com a derrota de Bolsonaro e a interrupção momentânea do nonsense inumano e diário, suas práticas fincaram raízes na política.

O alarmismo chegou para temperar o triunfalismo. Isso sim, um avanço.

Ulysses Guimarães, presidente da Constituinte, apresenta a Constituição em 1988 - Lula Marques - 3.out.1988/Folhapress

Produto da Assembleia Constituinte mais democrática que já tivemos, apesar de um Congresso pouco representativo, o texto final foi impactado pela participação de movimentos sociais. Para o bem. Houve também concessões às corporações. Para o mal.

Nessa Constituição heterodoxa e sincrética, um acordo possível acima de partidos, havia mensagem de rechaço ao passado e olhar de mudança para o futuro.

A promessa de valorização da vida, da liberdade, da igualdade e da não discriminação não foi só retórica e simbólica. O texto previu motores para implementação de direitos. O SUS e o sistema de educação pública, subfinanciados, foram as maiores conquistas civilizatórias, ao lado da proteção ambiental, de comunidade indígenas e quilombolas.

Do ponto de vista socioeconômico, após um ciclo de redução da fome e da pobreza interrompido por crise econômica, o governo Bolsonaro, como prometido, travou políticas públicas e gerou números recordes de desigualdade e fome. E o PIBB (Produto Interno da Brutalidade Brasileira) segue crescendo. A sociedade que se pretendia "fraterna, pluralista e sem preconceitos" mata como nunca.

Os números de homicídios giram em torno de 50 mil por ano (quase 80% de pessoas negras). Como em nenhum outro lugar, a polícia continua a matar (quase 7.000 em 2022) e a morrer (161 policiais). Fomos vice-campeões em assassinatos de ambientalistas no ano passado. Em assassinatos de jornalistas, fomos melhores que Haiti, México e Ucrânia. Estamos entre os cinco que mais matam mais mulheres e crianças. Matamos pessoas trans como nenhum país.

A população carcerária cresceu 20% nos últimos cinco anos. É a terceira do mundo em números absolutos e a 14ª per capita. Prisões têm sido centros de treinamento gratuitos para o crime organizado, que expande seus membros no sistema político. O STF continua a manter ladrão de shampoo na prisão.

Queríamos remover o "entulho autoritário". Nesse período, que nossos parâmetros aprenderam a chamar de democrático, incrementamos e diversificamos um vasto estoque autoritário e de tolerância à delinquência política. Essa estrutura institucional e doutrinária viabilizou Jair Bolsonaro. Seus dispositivos continuam vigentes.

A Constituição de 1988 ainda busca mais operadores que lhe façam justiça. Afinal, não basta um bom texto, bons valores, boa arquitetura. O constitucionalismo precisa de autoridades que abracem a missão com apuro moral e jurídico. Nossas Casas parlamentares continuam a ser, em índices de exclusão, comparáveis a países fundamentalistas. Nossas cortes também.

Nos gabinetes do Congresso, articula-se aprovação de leis cujo teor o STF já declarou inconstitucionais. Nos gabinetes do poder econômico, articula-se a inviabilização de medidas elementares de redução de desigualdades. Nos gabinetes do crime organizado, luta-se pela corrosão do Estado, fim da Amazônia e perpetuação da guerra às drogas.

Na hermenêutica dos porões, ensinada nas casernas, o artigo 142 autoriza militares a aplicar golpe de Estado. E as Forças Armadas, que não admitem a busca da verdade sobre mortos e desaparecidos, vão vencendo mais uma. Nunca perderam.

Na cúpula do sistema de Justiça, alastram-se a descompostura e a legalidade alternativa. Como aquela que permitiu ao procurador-geral da República pedir a prisão desse crítico. Pois não suportou a ironia. O caso foi mandado ao arquivo. O poste continua permitido.

Ulysses contrariado, Bancada do Batom e licença-paternidade: os bastidores da Constituição- Por Daniel Weterman, OESP

 BRASÍLIA - O presidente da Assembleia Nacional Constituinte, Ulysses Guimarães, enfrentou um dilema sobre a participação do povo na Constituição. Em uma conversa reservada com integrantes da bancada feminina, a “Bancada do Batom”, ele se manifestou contrário ao projeto de colocar uma tribuna livre para cidadãos comuns se manifestarem sobre a Constituição e defenderem as emendas populares, conforme relatos de deputadas constituintes.

O deputado acreditava que a fala dos parlamentares, legítimos representantes dos eleitores, era suficiente para expressar os anseios da sociedade. “Se tiver uma tribuna livre, que papel nós exerceremos?”, questionou Ulysses. Nesse quesito, ele foi vencido.

Ao lado de parlamentares, Ulysses Guimarães segura a bandeira do Brasil na última sessão da Assembleia Constituinte, Brasília, em 1988.
Ao lado de parlamentares, Ulysses Guimarães segura a bandeira do Brasil na última sessão da Assembleia Constituinte, Brasília, em 1988. Foto: André Dusek/ Estadão

O resultado foi uma Constituição com 245 artigos originais, a mais extensa de todas as constituições brasileiras. O documento extrapolou para normas que não precisavam estar na Carta e poderiam ser resolvidas por lei ou decreto, de acordo com juristas. Até mesmo a manutenção do Colégio Pedro II, no Rio de Janeiro, na órbita federal foi incluída. O resultado refletiu os anseios da época.

Muita coisa entrou mesmo sem consenso e ainda está só no papel. Atualmente, a Constituição Federal tem 162 dispositivos que nunca foram regulamentados, como o livre exercício dos cultos religiosos, a tributação de grandes fortunas e a obrigação de recuperação do meio ambiente degradado para quem explorar recursos minerais.

Política

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O Brasil é o país que mais alterou sua própria Constituição. “Será que esse trabalho não foi eficaz? Foi. Se temos alguma dificuldade, vamos ajudar a superá-las. A Carta está aí, então, não podemos desfazer aquilo que a Carta preconiza como ideal para o povo brasileiro”, afirma o ex-senador, Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte e o “número 2″ de Ulysses no processo.

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Ex-senador Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1989.
Ex-senador Mauro Benevides, vice-presidente da Assembleia Nacional Constituinte de 1989. Foto: Wilton Junior/Estadão

A tribuna livre se tornou um espaço icônico no processo. Uma das cenas mais marcantes foi quando o líder indígena Ailton Krenak defendeu a inclusão dos direitos dos indígenas na Constituição Cidadã e protestou contra medidas que restringiam a garantia da terra para os povos originários. Vestindo terno branco e gravata, ele fez um discurso pintando o próprio rosto e as mãos com tinta preta à base de jenipapo, em sinal de protesto e luto, em frente aos parlamentares.

“Aquelas palavras desceram na minha cabeça como se eu tivesse tendo uma revelação dos ancestrais me instruindo e me dando autoridade para falar”, conta Krenak ao Estadão. Ele ressalta que de lá para cá a população indígena “ficou em pé” e enfrentou a agressão, sobrevivendo a um “genocídio” e a tentativas de retrocesso, como no caso dos atos golpistas do 8 de janeiro e do marco temporal.

Krenak é favorito para ser o primeiro indígena a assumir uma cadeira na Academia Brasileira de Letras (ABL). A eleição ocorre nesta quinta-feira, 5, justamente no dia da promulgação da Constituição. “A Constituição tem essa natureza intrínseca de ser blindada, não é alguém que vai blindá-la.”

A Constituição tem essa natureza intrínseca de ser blindada, não é alguém que vai blindá-la.

Ailton Krenak, líder indígena

Outro discurso que mudou os rumos da Constituinte foi a defesa da licença-paternidade, direito garantido aos pais - além das mães - se afastarem do trabalho para acompanhar os filhos nos primeiros dias de vida. A proposta, apresentada pelo então deputado Alceni Guerra, foi alvo de chacota do próprio Ulysses no plenário. “É uma homenagem ao homem gestante”, disse o presidente.

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Em seguida, Alceni Guerra pediu a palavra. Ele relatou casos que vivenciou como pediatra, incluindo o de um pai demitido após acompanhar a mulher que faleceu logo após o parto. O deputado também falou de sua própria história. Ele acompanhou sua filha quando nasceu e a esposa, que esteve à beira da morte após dar a luz. “Não havia nenhuma Assembleia Nacional Constituinte, nenhum emprego, nenhum patrão, nada, nenhuma força do mundo, que me tirasse do lado dela e dos meus filhos.”

Recebo com humildade a chacota e as gargalhadas, mas quero que os senhores saibam que é uma emenda séria de quem viveu durante toda a sua vida esse problema

Alceni Guerra, deputado constituinte, durante defesa da licença-paternidade

O plenário saiu dos risos de chacota para o silêncio. “Recebo com humildade a chacota e as gargalhadas, mas quero que os senhores saibam que é uma emenda séria de quem viveu durante toda a sua vida esse problema”, finalizou Guerra. Depois da fala, aplausos e um pedido de perdão de Ulysses. Ficou ali sacramentado o direito à licença-paternidade.