Caçar bruxas? Não depende apenas da vontade dos caçadores. É preciso cúmplices. Gente que fica de bico calado, tornando a vida dos caçadores mais fácil.
O macarthismo é um exemplo. Falo da paranoia persecutória que o senador Joseph McCarthy lançou contra comunistas, reais ou imaginários, nos Estados Unidos da década de 1950. Fato: as perseguições começaram antes de McCarthy (para sermos exatos, em 1938). Mas foi ele quem levou as perseguições a um novo patamar de violência e delírio. E por quê?
Porque a Suprema Corte deixou. Porque as universidades, as empresas, os sindicatos deixaram. E porque os estúdios de Hollywood deixaram, elaborando as famosas “listas negras” com nomes de atores, roteiristas, diretores ou técnicos “problemáticos” aos olhos do delirante McCarthy. E quem era McCarthy?
Ninguém, como se viu em 1954. Bastou o advogado Joseph Welch lhe fazer uma pergunta retórica durante uma audição pública —“O senhor não tem nenhum sentido de decência?”— para que o inquisidor-mor explodisse.
O rei, afinal, estava nu. Mas o mal estava feito. Não apenas o mal objetivo de ter destruído milhares de carreiras e aprisionado centenas de pessoas.
Também houve um preço artístico. Os historiadores são unânimes ao considerar a década de 1950 uma das piores da história do cinema americano, como se a energia e a criatividade tivessem sido sugadas da indústria.
Como escreve Peter Biskind no seu “Easy Riders, Raging Bulls”, foi preciso esperar por 1967 —ano de “Bonnie e Clyde” e “A Primeira Noite de um Homem”— para que o cinema americano voltasse ao mundo dos vivos. Em certos casos, com nomes que estiveram na “lista negra”. Lição de aviso: os caçadores não caçam apenas bruxas, mas as poções vitais que só elas sabem fazer.
E o que é válido para o macarthismo de direita é válido para o novo macarthismo de esquerda —a chamada “cultura do cancelamento” que, por enquanto, só arruína reputações e carreiras. A prisão será o próximo passo?
Isso depende do silêncio dos cúmplices, razão pela qual é sempre de aplaudir “Uma Carta sobre Justiça e Debate Aberto”, que 150 autores, de esquerda ou de direita, brancos ou negros, mulheres ou homens, publicaram na revista Harper’s.
O que eles dizem é banal. Ou era, alguns anos atrás, e se divide em duas premissas.
Para começar, uma sociedade livre, politicamente livre, define-se pela troca de ideias e de informações, não pela conformidade ideológica e pela humilhação pública de heréticos.
Para acabar, essa liberdade também é fundamental por razões extrapolíticas: ela é o alicerce do pensamento e da criação. Preferimos o mundo fossilizado da década de 1950 ou a voragem criativa de 1970?
Sem surpresas, a carta teve reações. E a mais impressiva foi uma outra carta, igualmente assinada por mais de 150 intelectuais, e publicada no site The Objective.
É um “casus belli” de má-fé: os subscritores não se limitam a discutir argumentos. Preferem, como os velhos caçadores, inaugurar a caçada com duas perguntas que destroem o debate: “Quem são as bruxas?” e “Onde se escondem elas?”.
Ontem, as bruxas eram comunistas, simpatizantes de comunistas, ou nem uma coisa nem outra. E se escondiam atrás da lealdade ao partido e a Moscou.
Hoje, as bruxas são majoritariamente brancas, privilegiadas e cisgênero.
E se elas advogam liberdade de expressão para todos, isso significa, “ipso facto”, liberdade de expressão só para elas, que não querem ser criticadas.
Encontrar uma ponta de lógica nessa última frase é tempo perdido. A má-fé cria a sua própria lógica.
Comecei pelo cinema, termino com ele. Em 1976, Woody Allen interpretou o melhor papel da sua carreira em filme de Martin Ritt. Falo de “Testa-de-Ferro por Acaso” e o personagem de Woody, Howard Prince, é, como o título indica, um testa-de-ferro de um roteirista perseguido por Joe McCarthy. O que significa que Howard assina os roteiros como se fossem da sua autoria e recebe uma percentagem pelo serviço.
Até ser intimado a depor no Comitê de Atividades Antiamericanas. A sessão de perguntas e respostas é antológica.
Mas mais antológica ainda é a forma como Howard termina com a farsa: não reconhece legitimidade aos inquisidores e se despede deles com um intraduzível “you can all go fuck yourselves”.
Em 2020, e contra os novos caçadores, eis a resposta que não envelheceu uma ruga.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.
Força de trabalho do futuro, que cresceu com a internet e as redes sociais, e está associada à 4ª revolução industrial. É assim que muitos em países desenvolvidos veem a geração Z: a geração daqueles que tem até 25 anos de idade. Por aqui, entre os brasileiros em idade ativa pertencentes à geração Z, 30% vive na pobreza. A taxa de desemprego é mais que o dobro da taxa para o conjunto dos trabalhadores. Sua participação na renda do trabalho é inferior a 7%, embora sejam 1 de cada 5 cidadãos na população em idade ativa.
O problema do alto desemprego e da alta informalidade entre jovens brasileiros não é novidade da geração Z. A novidade fica por conta da possibilidade de inserção no mercado de trabalho por meio das novas tecnologias: uma oportunidade que pode ser desperdiçada se a regulamentação dessas atividades for mal pensada.
“O sol brilha para todos”. Variações da frase aparecem em comentários a um vídeo do YouTube, explicando como se pode acessar uma oportunidade de geração de renda. A frase é usada para responder àqueles que não querem o compartilhamento da dica, com medo de que a oportunidade não se popularize demais. É um vídeo sobre como se cadastrar para ser biker em um aplicativo.
Vista como precária por parte da sociedade, a ocupação nos aplicativos tem gerado renda para jovens de menor qualificação – milhões deles às margens do mercado de trabalho. O desafio de garantir direitos e melhorar a condição de trabalho dos entregadores foi objeto da coluna da semana passada, em que argumentei que aplicar o molde da CLT a este grupo implicaria a sua taxação. A taxação dos entregadores reduziria rendimentos e jogaria parte deles de volta ao desemprego.
Naquela coluna, a discussão ficou restrita às possibilidades de acesso a direitos previdenciários (como auxílio-doença, pensão, aposentadoria por invalidez) sem que os entregadores tenham a carteira assinada. Não tratei de demandas do #BrequeDosApps como o recebimento de equipamentos de proteção individual (EPI) ou regras claras para o bloqueio nas plataformas – que para alguns neste debate são pautas de direitos trabalhistas.
Um novo projeto de lei apresentado na semana passada cria o regime de trabalho sob demanda, visando – sem o estabelecimento de vínculo de emprego – melhorar as condições de trabalhadores neste tipo de plataforma. Como vimos, essas plataformas já são usadas nos EUA para diversos outros tipos de trabalhadores além de entregadores. A proposta assegura direitos previdenciários e o recebimento do seguro-desemprego em caso de bloqueio.
O projeto de lei nº 3.748, da deputada Tabata Amaral e do senador Alessandro Vieira, não promove a pesada taxação dos entregadores que viria com o vínculo CLT e os muitos encargos decorrentes sobre a folha de salários, mas assegura que o trabalhador esteja coberto com o recolhimento automático do seu INSS individual pela plataforma (em geral 8%). O PL também assegura a distribuição de EPI, procedimentos transparentes para os bloqueios e maior liberdade para os entregadores decidirem sobre os chamados nos apps. É um esforço de construir uma nova proteção que não exclua aqueles que eram invisíveis antes de colocar a mochila nas costas.
Em documento do ano passado, o Banco Mundial já refletia sobre as mudanças que afetavam o mundo do trabalho: “A legislação trabalhista ainda tem sido usada por formuladores de políticas públicas como o principal instrumento de redistribuição e compartilhamento de risco. Na metade e no fim da era industrial, quando muitos governos não tinham capacidade fiscal e administrativa para desenvolver outros instrumentos de compartilhamento de risco e redistribuição, essa abordagem provavelmente fazia sentido.”
A instituição conclui: “A sociedade não precisa mais depender tanto do local e da estabilidade do emprego para ampliar proteção confiável e resiliente contra choques e perdas de renda, ou mesmo para buscar maior igualdade.”
No futuro desafiador do pós-covid soluções do século passado não devem servir. Adaptações inclusivas na legislação trabalhista (como o regime trabalho sob demanda) e na Seguridade Social (como o benefício universal infantil – importante para famílias jovens e pobres) serão fundamentais para a geração Z.
Pam Belluck, Apoorva Mandavilli e Benedict Carey, The New York Times
14 de julho de 2020 | 12h54
À medida que as escolas nos Estados Unidos analisam se e como iniciar as aulas presenciais, esta é uma questão complicada diante de incertezas importantes. Nenhum país tentou enviar as crianças de volta para a escola com o novo coronavírus se propagando no nível dos Estados Unidos e a pesquisa científica sobre a transmissão do vírus em salas de aula é limitada.
A Organização Mundial da Saúde (OMS) concluiu que o vírus se propaga pelo ar em espaços fechados com aglomeração e pouca ventilação, o que se enquadra em muitas escolas americanas. Mas existe uma enorme pressão para a volta às aulas por parte de pais, pediatras, especialistas em desenvolvimento infantil e também do presidente Trump.
“Digo apenas isto: é como se estivéssemos brincando de roleta russa com nossos filhos e nossos professores”, disse Robin Cogan, da Yorkship Schooll em Camden, Nova Jersey, que participa da comissão estadual que estuda a reabertura das escolas.
Dados coletados em todo o mundo mostram claramente que as crianças têm muito menos possibilidade de adoecer gravemente por causa do vírus. Mas há questões importantes a serem resolvidas, incluindo saber com que frequência são infectadas e que papel elas têm na transmissão do vírus. Algumas pesquisas sugerem que crianças mais novas têm uma probabilidade menor de infectar outras pessoas do que os adolescentes, o que tornaria a abertura das escolas primárias menos arriscada do que as secundárias, mas tal evidência não é conclusiva.
A experiência vista no exterior tem mostrado que medidas como distanciamento físico e uso de máscaras nas escolas são importantes. Outra variável significativa é como o vírus se propaga na comunidade em geral, uma vez que isto afetará como muitas pessoas potencialmente o transmitem numa escola.
No caso de muitos distritos escolares, a solução não é o tudo ou nada. Muitos estabelecimentos de ensino, incluindo o maior do país, na cidade de Nova York, estão estudando uma solução híbrida em que as crianças estudariam alguns dias em salas de aula e outros na escola.
“Você tem de fazer muito mais do que lavar as mãos e dizer faça assim”, afirmou o Dr. Joshua Sharfstein, professor na John Hopkins Bloomberg School of Public Health. “Primeiramente você precisa controlar a propagação na comunidade e então abrir as escolas criteriosamente.
O quebra-cabeças da transmissão
Embora as crianças tenham um risco bem menor de adoecerem gravemente por causa do coronavírus do que os adultos, o risco não é zero. Um pequeno número delas morreu e outras precisaram de terapia intensiva porque tiveram problemas respiratórios ou uma síndrome inflamatória que causaram problemas de coração ou circulatórios.
A preocupação maior no caso da reabertura das escolas é o potencial que existe delas estarem infectadas, muitas sem apresentar sintomas, e depois contagiarem funcionários da escola. Muitas evidências até agora sugerem que mesmo se crianças com menos de 12 anos são infectadas na mesma proporção dos adultos à sua volta, elas têm menos probabilidade de propagar o vírus. A Academia Americana de Pediatria citou alguns desses dados para recomendar que as escolas reabram com precauções de segurança adequadas.
A maior parte das evidências foi coletada em países que já passaram por um lockdown e começaram a implementar outras medidas preventivas. E alguns países testaram sistematicamente as crianças para monitorar o vírus ou anticorpos indicando se elas foram expostas ao vírus.
Especialistas em doenças infecciosas vêm elaborando modelos do impacto das escolas sobre a propagação comunitária desde fevereiro. Em março chegaram à conclusão de que o fechamento das escolas reduziria a progressão das infecções. Mas medidas mais amplas, como o distanciamento social, provaram ter um efeito de contenção bem maior, ofuscando os resultados do fechamento das escolas, segundo análises recentes.
Evidências do exterior
Até agora, países que reabriram as escolas após uma redução dos níveis de infecção - e impuseram regras como distanciamento físico e limites no número de alunos em salas de aula - não viram um aumento de casos de coronavírus.
Noruega e Dinamarca são bons exemplos. Os dois países reabriram suas escolas em abril, cerca de um mês depois de serem fechadas, mas inicialmente as abriram apenas para as crianças menores. As escolas secundárias continuaram fechadas. Reforçaram as medidas de desinfecção e mantiveram um número limitado de alunos em salas de aula, com espaço entre as mesas. Nenhum dos países observou um aumento significativo de casos.
Não há estudos científicos rigorosos sobre o potencial de contágio nas escolas, mas alguns estudos de casos isolados, a maior parte deles não revisados por pares, reforçam a noção que não é inevitavelmente um alto risco.
Em uma comunidade no norte da França, Crépy-em-Valois, dois professores de uma escola secundária foram infectados com a covid-19 no início de fevereiro, antes de as escolas fecharem. Cientistas do Instituto Pasteur testaram depois os anticorpos dos alunos e dos outros professores. E observaram anticorpos em 38% dos alunos e 43% dos professores e em 59% dos demais funcionários, disse o Dr. Arnaud Fontanet, epidemiologista do instituto que conduziu o estudo e é membro da comissão que assessora o governo francês. “Vimos claramente que o vírus circulou na escola”, disse ele.
Posteriormente a equipe testou alunos e professores e funcionários de seis escolas elementares na comunidade. O fechamento de escolas em meados de fevereiro ofereceu uma oportunidade para ver se as crianças mais novas foram infectadas quando ainda frequentavam as escolas, momento em que o vírus atingiu alunos das escolas secundárias.
Os pesquisadores encontraram anticorpos em apenas 9% das crianças das escolas elementares, 7% dos professores e 4% dos demais funcionários. Identificaram três alunos em três escolas diferentes que frequentaram as aulas com sintomas agudos de coronavírus antes do fechamento das escolas. Nenhum teria infectado outras crianças ou professores, disse Fontanet. Dois deles tinham irmãos na escola secundária e um terceiro tinha uma irmã que trabalhava na escola, disse ele.
O que as escolas podem fazer
Testes para detectar infecções são essenciais, afirmam especialistas. O Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) recomenda testes de alunos ou professores baseados somente em sintomas ou exposição ao vírus. Mas esses testes não detectarão todos os que estiverem infectados.
“Sabemos que a propagação pelos assintomáticos ou pré-sintomáticos é real e que as crianças têm menos probabilidade a mostrar sintomas do que os adultos”, disse a Dra. Megan Ranney, médica especialista em saúde dos adolescentes na Brown University. As escolas deveriam testar aleatoriamente alunos e professores, disse ela, mas isso é impossível devido à falta de financiamento e testes limitados até mesmo em hospitais.
O CDC delineou as medidas que as escolas devem adotar para minimizar os riscos para os alunos, incluindo o distanciamento de dois metros, lavar as mãos e usar máscaras.
“As diretrizes já são excepcionalmente frágeis”, afirmou Carl Bergstrom, especialista em doenças infecciosas na Universidade de Washington. Ele e outros disseram temer que as recomendações sejam atenuadas ainda mais em resposta à pressão política.
A Dra. Kathryn Edwards, especialista em doenças infecciosas e professora de pediatria na Vanderbilt University School of Medicine, vem assessorando as escolas de Nashville, Tennessee, quanto às medidas para reabrirem. Ela disse que Nashville ainda avalia a distância entre as mesas. “Algumas pessoas dizem que basta apenas um metro de distância, outros falam em dois e outras ainda se perguntam se, com a distância da propagação de gotículas, é preciso uma distância ainda maior".
Edwards disse estar frustrada com a decisão de Nashville, anunciada na quinta-feira, de instituir aulas online no primeiro mês de aulas e até, pelo menos, o início de setembro.
Manter as escolas fechadas por um período prolongado tem implicações preocupantes para o desenvolvimento acadêmico e social e o desenvolvimento infantil, afirmam especialistas. E também é evidente que privar as crianças de um dia de escola real aprofunda as desigualdades econômicas e raciais.
“Há um dano real para as crianças se não forem para a escola. Acho que temos de pensar nas crianças e fazer com que retornem à escola com segurança”, disse a médica. / TRADUÇÃO DE TEREZINHA MARTINO