sexta-feira, 17 de fevereiro de 2017

O TOC e a eugenia visual, por MIGUEL DE ALMEIDA, FSP




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Vizinho ao meu cenáculo, o Beco do Batman na paulistana Vila Madalena é uma referência na arte urbana mundial. Diariamente vans trazem turistas de várias partes do planeta: com bocas abertas ("ahhh; ohh; uau"), cidadãos de diversos continentes fotografam grafites figurativos, geométricos, o escambau.
Até anos atrás, era um beco sujo, fedido, escuro. Os artistas de rua o ocuparam (sem lei de incentivo, sem edital, sem patrocínio), o transformaram num espaço contemporâneo, charmoso e seguro.
Ron Wood, guitarrista do Rolling Stones, esteve ali ano passado e saiu de riso na cara diante daquela beleza urbana. Ele é um cidadão do mundo e não se impressiona com qualquer tolice, vamos anotar.
Mas meu amigo João Doria, ora alcaide paulistano, sempre uma pessoa bem-intencionada, formado nas fileiras do estadista humanista Franco Montoro, vestiu a camisa da eugenia visual. Em poucos dias de mandato mandou apagar grafites, cobrindo-os de cinza.
Parece trabalhar para se tornar o melhor vendedor da Suvinil: ele apaga, ele pinta de cinza, os grafiteiros pintam de novo, e lá vai nosso dinheiro em tinta cinza. Pressionado, acenou com a criação do Museu de Arte de Rua. Só que ele já existe: está em diversos bairros, sob viadutos, nas empenas dos prédios, em ociosos muros mal construídos etc.
Também pretende, agora, financiar os artistas de rua e criar espaços específicos. Besteira, prefeito: esse sintoma de TOC serve para cidades mornas, como Estocolmo, não a metrópoles como São Paulo, Nova York e Berlim, nas quais a vibração de sotaques, de diversas etnias, fomenta o diverso, o contraditório.
É preciso perceber que o espontâneo, o que vem da ruas (das periferias surge a linguagem criativa, dizia o poeta Pier Paolo Pasolini), aquilo que escapa ao institucional -enfim, o que não tem o dedo do Estado ou do mercado é o que traz a renovação.
Em meio à batalha eugênica, Doria e seu vice, Bruno Covas, deveriam ser avisados de que Jean-Michel Basquiat surgiu no mundo ao grafitar trens e estações de Nova York.
Como a burocracia anunciada para financiar novas imagens deve ser incapaz de distinguir um Schiele de um Serra (o Richard), o apagamento de grafites privará o desenvolvimento da arte urbana e ainda irá tirar de São Paulo a condição de um dos maiores centros de street art do planeta.
Basta uma visita ao bairro do Grajaú, por exemplo, para ver como a própria comunidade se organizou e conduz os turistas pelos incríveis espaços grafitados por artistas anônimos. Lindo. Com o TOC visual, teremos agora um almoxarifado.
A ideia de repaginar a paisagem urbana não é errada. O problema são os alvos. São Paulo nos últimos anos presenciou a explosão de uma cultura urbana em todos os seus quadrantes. Não existe arte apenas mais na zona sul. Tem espetáculo de dança no terminal Capelinha e tem música (boa) em Guaianases. E tem teatro (gratuito) no Minhocão.
E o que une, costura e arremata essa paisagem metropolitana é a arte urbana, a tal street art que atrai olhares da mídia mundial. Artistas como osgemeos e Zezão expõem em importantes galerias americanas e europeias. E surgiram nas ruas de São Paulo, olha só que orgulho, Doria.
Quanto de turismo (portanto, receitas) gera a arte urbana paulistana? Quanto São Paulo arrecada por meio da divulgação dos grafites em reportagens da imprensa mundial?
Melhor do que exterminar grafites seria dar um jeito nas calçadas de São Paulo, essas assassinas. Ou proibir os carros de usar buzina.
MIGUEL DE ALMEIDA é é editor e escritor. Dirigiu, com Luiz R. Cabral, o documentário "Não Estávamos Ali para Fazer Amigos", sobre a atuação do caderno "Ilustrada" nos anos 1980
PARTICIPAÇÃO

Free Rider, Delfim Netto, FSP


Na melhor das hipóteses, vem por aí uma enorme confusão internacional

Kevin Lamarque/Reuters
O presidente dos EUA, Donald Trump, durante reunião na Casa Branca
O "free rider" é um elegante nome inglês de difícil tradução. Talvez a coisa mais próxima seja "aproveitador, oportunista". Para defini-lo, é preciso, antes, entender o conceito de "bem público", isto é, um bem ou serviço do qual, por motivos físicos ou práticos, ninguém pode ser excluído (por exemplo, a segurança externa do país) e pelo qual o beneficiário (e aproveitador) se recusa a pagar (sonegando impostos quando tem condições de materialmente fazê-lo).
Ele sabe que nele será, necessariamente, incluído: se o inimigo externo perder, ele estará livre para apropriar-se dos benefícios da vitória sem ter pago nada; se vencer, terá perdido a sua liberdade, exatamente como todos os outros, mas não terá "perdido" nada mais do que eles.
Todos nós temos, na prática, experiências desagradáveis com relação a esse fenômeno, obviamente em situações triviais. Alguns já tiveram a desilusão de tentar levar a eletricidade ao seu sitiozinho localizado a 1.000 metros da rede, que atravessará 10 ou 15 propriedades diferentes e que precisa ser paga pelos usuários.
Tentaram a cooperação de todos, mas se surpreenderam com a de um "bom amigo" que está no meio do caminho e que se recusa a cooperar (mesmo em condições materiais de fazê-lo) porque sabe que, se os outros fizerem, dela não poderá ser excluído.
Em São Paulo, por exemplo, num modesto prédio de 20 apartamentos, todos têm a experiência da falta de luz duas vezes por semana (e até nos fins de semana), quando nem o elevador de serviços funciona.
Pois bem, um potencial beneficiário, do oitavo andar, se recusa a colaborar, mesmo tendo capacidade para fazê-lo, com a compra de um pequeno gerador, pago em 24 meses. Ele sabe que, se os outros aceitarem a "vaquinha", será beneficiado de "graça".
O "free rider" existe no nível internacional. Em condições normais de pressão e temperatura, o "free rider" (o país) se aproveita de sua situação estratégica para transferir os custos dos serviços de segurança nacional de que necessita para outro que tem a disposição de pagá-lo, pelas vantagens geopolíticas que vai receber para manter a liderança mundial.
A situação fica instável quando os benefícios concedidos parecem ter ultrapassado os benefícios recebidos pelo doador empobrecido. Qualquer "semelhança" entre essa situação e as relações dos EUA com a Otan, com o Japão ou com a Coreia do Sul é, obviamente, mera "coincidência".
Suspeito que a "era Trump" seja apenas o início da manifestação de que a "machtpolitik" do fugaz império americano atravessou o cabo da Boa Esperança. Na melhor das hipóteses, vem por aí uma enorme confusão internacional. 

Resposta ao desemprego, POR MÍRIAM LEITÃO, O Globo


O principal problema da economia brasileira hoje é o desemprego. Ele é o fruto mais amargo da grave crise na qual o país entrou por má condução da política econômica. Foi o governo Dilma que jogou o emprego nesta queda livre, mas o governo Temer não tem sabido dar uma resposta efetiva. O mercado de trabalho terá outro ano difícil em 2017, mas começará a colher algumas boas notícias.
O país passou nos últimos dois anos pela maior destruição de empregos da história recente. Só no ano passado, foram 3,3 milhões de desempregados a mais. Desde a eleição presidencial, 5,78 milhões. A taxa pulou de 6,8% no final de 2014 para 12% no fim de 2016. Na média do ano passado, ficou um pouco menor, 11,5%, mas isso não chega a reduzir o problema. Há vários sinais dessa deterioração: no emprego, na renda e no trabalho de qualidade. Segundo o IBGE, houve uma queda de 2,3 milhões de pessoas com carteira assinada. Os empregos criados no fim do ano foram temporários e sem carteira. E mesmo em período em que sazonalmente se cria mais postos de trabalho não está havendo uma recuperação da taxa.
Este ano haverá alguns paradoxos. Segundo o economista Bruno Ottoni, do Ibre/FGV, a população ocupada vai crescer ao longo dos meses, mas a taxa de desemprego cairá pouco. Parece contraditório, mas é um fenômeno que já ocorreu em outras saídas de crise. Como há muito desemprego por desalento — gente que não procura emprego porque acha que não vai encontrar — quando a economia começar a melhorar, haverá uma procura maior por vagas. Por isso, haverá elevação da população ocupada, porém a taxa de desemprego cairá pouco, porque mais pessoas estarão voltando ao mercado de trabalho.
— O indicador que vai determinar o ponto de virada no mercado de trabalho é o da População Ocupada, porque ele vai medir o número de empregos gerados na economia. A taxa de desemprego terá uma influência muito grande do desalento, pessoas que hoje estão tão desanimadas que nem sequer saem de casa para procurar emprego — explicou Ottoni.
Pelas estimativas da FGV, a População Ocupada aumentará em 1,2 milhão ao longo do ano. Já a quantidade de desempregados, na mesma comparação, cairá de 12,3 milhões para 11,9 milhões, uma queda de apenas 400 mil. Outro fenômeno é a falta de confiança das empresas na recuperação.
— O número de horas trabalhadas nas empresas ainda está baixo. E, antes de os empresários voltarem a contratar, eles vão aproveitar ao máximo a mão de obra empregada. Além disso, será preciso ter mais certeza de que a recuperação é duradoura. Em um primeiro momento, as vagas devem ser temporárias, com uma remuneração mais baixa — disse.
A recessão ajudou a criar esse quadro e ele foi resultado dos erros de condução da política econômica no governo Dilma. Mas uma parte do problema é estrutural. A economia, em qualquer país do mundo, não está conseguindo criar emprego de qualidade. O desafio é global e até em países onde a taxa está baixa, como os Estados Unidos, o assunto é uma agenda permanente da sociedade. Um dos paradoxos do momento atual é o presidente Donald Trump que, num país com índice de apenas 4,7% de desemprego, se elegeu com a promessa de trazer de volta as vagas supostamente roubadas por outros países através do comércio.
A economia hoje cresce, em qualquer setor, criando menos emprego do que no passado, pelo avanço da tecnologia e pela mudança nos processos de produção.
Os governos petistas apostaram que se dessem forte volume de subsídio estatal para as empresas elas criariam emprego. O resultado durou pouco e os efeitos colaterais ficaram. O governo Temer precisa ter uma agenda de políticas de apoio à criação de vagas que não repitam os erros do passado recente.
Uma parte dessa agenda é sem dúvida a reforma trabalhista. Mercados mais flexíveis criam emprego em maior volume e saem mais rapidamente das crises. E a regulação excessiva do mercado brasileiro encolhe a oferta das vagas formais e expõe mais trabalhadores à total falta de proteção do mercado informal. A reforma trabalhista é uma parte da política pró-emprego, mas não pode ser a única. A esta altura o governo Temer precisa dar uma resposta, independentemente de quem tenha criado o problema.
(Com Alvaro Gribel, de São Paulo)