segunda-feira, 7 de novembro de 2016

Truque sujo no Enem, por Ricardo Semler FSP


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Há pais cegos, mas por quererem. Passei horas estudando o ranking do Enem. Descobri o que não está na superfície: para uma escola ir bem, basta participar de uma farsa.
A número 1 no ranking, uma pequena filial do Objetivo, com sufixo qualquer, participou com 41 alunos! Ora, se pegarmos a escola real deles, que fica no mesmo famoso endereço da av. Paulista, com 280 alunos participantes, a classificação cai para o 547º lugar.
Não é diferente com a plataforma Eleva, que se gaba de ter nas suas unidades do Rio, Pensi, 4 das 15 escolas mais bem avaliadas. Lá a estratégia é mais discreta: fazer turmas mínimas com alto grau de filtragem.
Depois, é só usar essa elite para fazer de conta que o resto é tão bom quanto. O investidor da plataforma, Jorge Paulo Lemann, um cidadão honesto e vencedor, não se deu conta do que estão fazendo em seu nome.
Não é irregular, nem fora das regras do Enem, mas é um engodo perante os pais. Há que se perguntar: a quem interessa? Por que o Inep não força a fusão das notas dessas escolas, que já seguem o modelo "cursinho asiático trucidante"?
Causa espanto que as escolas públicas se deem mal nesse sistema de decoreba? Ora, o famoso Objetivo, em 547º lugar, não é muito diferente da maioria das escolas públicas -isso sim é fascinante.
Qualquer escola é capaz de filtrar alunos vencedores de olimpíadas matemáticas, sob o comando de professores sargentos de prova.
Interessante observar que os empresários estão mandando cada vez mais na educação. Os do ramo e, nos últimos dez anos, também os de fora do ramo. Uma coleção de entidades empresariais, cada qual com sua vaidade pessoal, tem "ensinado" que a boa educação depende de boa gestão.
Isso, contudo, é uma balela. Depende de mudanças conceituais na metodologia obsoleta.
Aliás, depois de uma década investindo pesado no teste Pisa (Programa Internacional de Avaliação de Estudantes), o Brasil passou de 56º para 58º no ranking mundial, entre 65 países.
Não que o Pisa seja isento da mesma fraude. É só olhar a progressão: no começo, tinha Finlândia lá em cima, como também Suécia, Suíça e Holanda. No último ranking, só dá ditadura.
Dois terços dos primeiros dez lugares são tomados por países em que não há liberdade para o aluno, seja para escolher ou ser feliz. As nações asiáticas dominam o ranking, e o massacre dos jovens é imperioso.
Muitos alunos da Coreia do Sul, por exemplo, têm um turno triplo: oito horas de escola seguidas de cursinho por quatro horas. E depois, lição de casa. O canal britânico BBC mostrou que muitos dormem às 2h e acordam às 6h30, para recomeçar tudo.
É com esses países que o Brasil oficial, fomentado por empresários, quer concorrer no ranking.
A escola, não só no Brasil, está presa numa pantomima que parece interessar a todos. O conteúdo que cai nas provas é reduzido, não chega a 1% do que o Google possui sobre aquele assunto. Dessa amostragem mínima, eivada de bobagens (fórmulas matemáticas de segundo grau e decorebas de química ou biologia), submetem-se os alunos a enfadonhas sessões de releitura de apostilas obsoletas.
Professores fazem de conta que ensinaram. Alunos fazem cara de que aprenderam. Pais e sociedade babam em rankings do Enem.
Até no Enade, que avalia as universidades, existem ardis -alunos são mantidos em recuperação e outros avançam antes da hora para melhorar a pontuação geral.
Quantos alunos já não foram incentivados a não fazerem as provas? Quantos testes de recuperação não foram marcados para a mesma hora dos exames oficiais?
A reforma do ensino médio segue a mesma toada. Reconhecendo-se o fracasso, faz-se apenas uma redução de disciplinas. Pensando bem, elas nem deveriam existir num mundo em que só interessa saber questionar -e procurar no Google.
Afinal, queremos formar cidadãos livres e pensantes ou seguir o Enem e o Pisa no embate dos conteúdos e rankings embrutecedores?
Olho vivo, meus caros pais. Vocês também participam dessa tramoia.
RICARDO SEMLER, empresário, é sócio da Semco Partners e fundador do Instituto Lumiar, que administra as escolas Lumiar. Foi professor visitante da Harvard Law School

domingo, 6 de novembro de 2016

Antes que seja tarde - EDITORIAL FOLHA DE SP (reforma política)

FOLHA DE SP - 06/11


Cientistas políticos costumam manifestar ceticismo diante de propostas de reforma eleitoral. Argumentam, e é difícil negar-lhes razão, que os congressistas não têm interesse genuíno em modificar as regras de que se beneficiaram.

E, no entanto, o Senado prepara-se para votar uma proposta de emenda à Constituição que promove duas mudanças significativas: institui uma cláusula de desempenho e decreta o fim das coligações em eleições proporcionais.

Ao que parece, o texto será aprovado pelos senadores. Depois, seguirá para a Câmara, onde os deputados tendem a levantar maior resistência. Ainda assim, há bons motivos para esperar que, desta vez, não deixarão tudo como está.

É que as normas em vigor começaram a incomodar parte dos políticos tradicionais. Os diversos estímulos à criação de legendas resultaram numa fragmentação partidária que dificulta a formação de blocos coesos e aumenta demais os custos da governabilidade.

Estabelecer uma cláusula de desempenho constitui um passo crucial para sanear esse ambiente cada vez mais caótico.

Como acontece em outros países, agremiações incapazes de obter apoio popular deveriam conhecer restrições severas em seu funcionamento parlamentar, bem como no acesso ao fundo partidário e ao horário gratuito na TV e no rádio.

Pela proposta em tramitação, tal piso corresponderia, na disputa para a Câmara dos Deputados de 2018, a 2% de todos os votos válidos (3% a partir de 2022), distribuídos em ao menos 14 unidades da Federação, com um mínimo de 2% dos votos válidos em cada uma delas.

Partidos nanicos consideram a medida antidemocrática, como se fossem necessárias 35 siglas. Nada mais inverídico: se esse número caísse a um terço ainda estariam representadas as principais correntes ideológicas da sociedade.

Somado a essa cláusula, o fim das coligações em eleições proporcionais (para deputado federal e estadual e para vereador) desestimularia a fabricação de siglas de aluguel, interessadas apenas em vender tempo midiático às campanhas de legendas robustas.

Além disso, coligações dessa natureza confundem o eleitor, que com frequência escolhe um nome de uma agremiação e, sem saber, impulsiona um candidato de outra.

Uma verdadeira reforma político-eleitoral, todavia, não deveria se circunscrever a essas duas iniciativas. Esta Folha há muito defende pelo menos outras quatro.

Uma delas é o estabelecimento de um limite absoluto para doações, seja de pessoas físicas, seja de empresas. A ausência de um teto, ou sua fixação em termos proporcionais à renda ou ao faturamento, sempre permitiu influência desmedida por parte de certos agentes ou grupos econômicos.

Por outro lado, como se viu nos pleitos municipais deste ano, proibir a contribuição de empresas gera distorções de outro tipo. Destacam-se candidatos ricos ou associados a corporações (de sindicatos a igrejas) e, muito pior, ganham força as fontes ilícitas (do crime organizado ao caixa dois).

O objetivo deveria ser atrair as contribuições para a legalidade, dar máxima transparência à conexão entre doador e candidato e facilitar a fiscalização em tempo real.

Outra medida que o Brasil parece pronto para adotar é o voto facultativo. Aplicado por aqui desde 1932, o sufrágio compulsório tem sido defendido como antídoto para uma suposta alta nos índices de abstenção entre as parcelas populacionais mais desfavorecidas.

Desse argumento, contudo, resta apenas o viés paternalista, vez que votos brancos e nulos ou o simples não comparecimento se impõem na prática. Melhor seria que o Brasil seguisse as democracias desenvolvidas e aceitasse o sufrágio como direito, não dever.

Este jornal também sustenta que o país deveria migrar para o modelo distrital misto, semelhante ao da Alemanha. Deputados e vereadores não disputariam com todos os candidatos de uma cidade ou Estado, mas apenas de um distrito, com dimensões muito menores.

Tal sistema contribui para aproximar os políticos dos cidadãos, facilitando a cobrança de promessas e barateando o custo da campanha.

A fim de preservar a representação de causas ou segmentos dispersos territorialmente, cada eleitor teria direito a dois votos: um para um candidato específico dentro do distrito, o outro para um partido.

Por fim, seria importante corrigir a distorção entre as bancadas na Câmara. Hoje, são necessários menos votos para se eleger em Estados menos populosos —e, embora seus deputados representem um contingente populacional menor, têm o mesmo peso no Congresso.

Nada mais prioritário, entretanto, do que conter a proliferação de partidos de aluguel —do contrário, suas bancadas, somadas, inviabilizarão qualquer reforma política voltada aos interesses da sociedade.


Reduzir a fragmentação partidária tem atraso de década - EDITORIAL O GLOBO (pauta reforma politica)


O Globo - 06/11

A reforma política em debate no Senado pode resultar na redução no número de legendas, algo que já poderia ter acontecido no final da década de 90


Se o preço do avanço institucional é passar-se pelas mesmas experiências já malsucedidas de outras países, que assim seja. Caso típico é o da chamada “cláusula de desempenho”, para que partidos obtenham o índice mínimo de votos e possam ter representação nas Casas legislativas, acesso a fundos partidários, horário dito gratuito de rádio e TV etc. Já passou da hora de adotá-la, como já foi feito no exterior.

Caso tramite como se espera a proposta de emenda à Constituição (PEC) dos senadores tucanos Ricardo Ferraço (ES) e Aécio Neves (MG), o Brasil passará a ter um sistema minimamente razoável de filtro contra o excesso de legendas, com dez anos de atraso.

Regras como esta vigoram há muito tempo em democracias maduras. Foi na Alemanha que legisladores brasileiros se inspiraram para, em 1995, aprovar uma cláusula pela qual um partido para ter bancada no Congresso precisaria atrair pelo menos 5% dos votos nacionais, dados na escolha dos deputados federais, e no mínimo em nove estados, para barrar legendas preponderantemente regionais. Ficou estabelecido que ela entraria em vigor em dez anos.

Foi quando legendas sem condições de atender às normas recorreram ao Supremo com o argumento de que preceitos constitucionais sobre representatividade e direito das minorias haviam sido atropelados, e, assim, em 2006, quando a cláusula deveria entrar em vigor, a Corte a suspendeu.

Foi um erro, como sabem hoje ministros do Supremo. Há 35 partidos no Brasil, 28 com bancadas no Congresso e outros tantos na fila para se lançar. Muitas são legendas de aluguel, especializadas em negociar tempo de propaganda eleitoral, entre outras “mercadorias”. Há famílias que vivem do Fundo Partidário, do qual 5% são rateados entre todas as agremiações. Um rendimento mensal e tanto.

Virou um negócio escuso, e que ainda prejudica o funcionamento da democracia, por dificultar a formação de maiorias no Congresso para dar sustentação ao governo de turno. Mais um indutor a esquemas como os do mensalão e do petrolão, do lulopetismo.

Neste projeto, já aprovado pela Comissão de Constituição e Justiça do Senado, o limite é mais baixo: em 2018, os partidos terão de receber o mínimo de 2% dos votos nacionais do conjunto dos deputados, índice a ser obtido em pelo menos 14 estados. Em 2022, ele sobe para 3%.

Outra medida saneadora, na mesma direção da cláusula: fim da coligação entre partidos nas eleições proporcionais (deputados, vereadores), pela qual sobras de votos elegem parlamentares sem que o eleitor saiba. A antítese da República e da democracia.

Levantamento feito pelo GLOBO com base no resultado das eleições municipais constatou que, dos 35 partidos, 26 perderiam as salvaguardas plenas para atuar. Avanço indiscutível.

É necessário intenso trabalho de convencimento dos deputados, em prol da melhoria da qualidade do sistema de representação política, bastante degradado.

Os partidos que não alcancem os índices de votos não são extintos. Nem deixam de lançar candidatos. Poderão, inclusive, constituir federações de legendas. Nada mais democrático do que depender do voto.