segunda-feira, 28 de outubro de 2013

Os Arquimedes de araque - LÚCIA GUIMARÃES


O Estado de S.Paulo - 28/10

"Estamos tentando mudar a maneira como a polícia se vê e como a comunidade vê a polícia." Vestida com o uniforme da Polícia Militar carioca, Vanessa Coimbra Cavalcanti falava a uma plateia em Nova York, a convite do Instituto Google Ideas, ao lado do diretor do Instituto Igarapé, Robert Muggah. Três horas antes, a policial carioca tinha sido indiciada com mais 14 colegas por envolvimento na tortura e assassinato do pedreiro Amarildo de Souza, na favela carioca da Rocinha.

Vanessa leu um texto escrito num inglês impecável que sugere a redação, quem sabe, de seu companheiro no programa. Já Vanessa lutava para pronunciar as palavras que seu ghost writer lhe tinha destinado na apresentação. A Polícia Militar carioca disse que o Instituto Igarapé escolheu Vanessa porque ela é a única na UPP da Rocinha que fala inglês. O Igarapé é uma ONG especializada em policiamento e segurança e se associou ao Google para desenvolver o aplicativo Smart Policing, que coloca celulares com câmeras gravando no bolso de policiais para, como explica em seu site, promover a transparência do policiamento.

Sob os aplausos para Vanessa de uma plateia que devia desconhecer a Rocinha e o caso Amarildo, Robert Muggah começou sua apresentação e disse que trabalha com ela e com a UPP da Rocinha há um ano. Pediu que os presentes primeiro prestassem atenção em um vídeo que mostrava pelo menos duas pessoas sendo agredidas por policiais militares na frente de várias testemunhas. Há uma confusão, mal capturada pelo que parece ser um celular. Muggah informa que o vídeo, feito em janeiro, logo teve mais de 30 mil hits no YouTube. "Vemos que a tensão aumenta", ele continua. "O que está acontecendo? O vídeo coloca mais perguntas do que respostas? Quem começou o incidente? De quem é a culpa? O que aconteceu antes e depois? Podemos tirar conclusões só por alguns segundos de vídeo?" Muggah parece lamentar que as cenas corram o Brasil e o mundo. Continua com uma platitude sobre as mídias sociais terem se tornado a nova ferramenta de protesto digital: "Incidentes complexos são reduzidos a clips de um minuto como este", diz ele, concluindo que esta forma de disseminação é perigosa, "pode custar vidas". Muggah passa imediatamente a promover o programa Smart Policing, copatrocinado por seu anfitrião em Nova York, sob o olhar de aprovação de Vanessa.

O perigoso vídeo de um minuto que ele exibiu não é explicado. Não se sabe onde ocorreu, quem apanhou e "de quem é a culpa". Se houve, de fato, vítimas de uma violência, isto não vem ao caso.

O momento ilustra mais do que a tragédia de Amarildo e o vexame para o Instituto Google Ideas, que plantou, num seminário que se quer iluminado, uma policial envolvida num crime hediondo só investigado depois de semanas de protestos convocados na, hum, mídia social. A omissão do caso Amarildo pelo sofisticado Muggah não é esquecimento, claro. É, para traduzir um útil adjetivo inglês que não temos, "desingênua".

O momento ilustra um fenômeno crescente, criado pelo número reduzido de corporações que controlam a nova economia: o da tecnologia como uma câmara de eco sem oxigênio suficiente para dar vida a contexto histórico, social, econômico ou ético. A solução para a violência policial é mais tecnologia. Não há angústia individual ou coletiva que não possa ser amenizada se você assistir a uma conferência TED. A aplicação do know-how de Hollywood e do Vale do Silício para transformar ideias em espetáculos empacotados permite o encontro, no mesmo recinto, da policial indiciada num caso de tortura e morte e de empresários que se consideram benfeitores.

O lema da ONG Ted é "Idéias que merecem ser espalhadas". O do Google Ideas é "como a tecnologia pode ajudar as pessoas a enfrentar ameaças diante de conflito, instabilidade e repressão". Será que o gigante tecnológico empresta o slogan para as vítimas da instabilidade e da repressão criadas pela explosão da espionagem com a cumplicidade das companhias como o próprio Google?

Com o declínio do intelectual público, o desmonte da hierarquia da mídia analógica que selecionava, para o bem ou para o mal, as vozes com autoridade para discorrer sobre questões - do Estado Palestino à desnutrição infantil -, temos uma confluência do debate como entretenimento. E ninguém vai a um show para decidir se a liberdade de expressão e o direito à privacidade são forças opostas.

Tim Cook, o herdeiro de Steve Jobs, Jeff Bezos e Mark Zuckerberg anunciam novos produtos com a pompa de um aspirante à presidência. A publicidade vende produtos, mascarando suas imperfeições e até seu potencial nefasto. "Adoramos inventar", diz o sub-carismático Jeff Bezos no show de lançamento de mais um Kindle. "Você pode ver o que está acontecendo com seus amigos", diz o esquisito Mark Zuckerberg, com a auto-importância de quem anuncia um tratamento para a malária. Hoje, corporações não vendem gadgets e sim santimônia. Um momento de heureca? Sim, mas de Arquimedes do obscurantismo.

domingo, 27 de outubro de 2013

Perdas - HUMBERTO WERNECK


O Estado de S.Paulo - 27/10

"Por que Deus é horrendo em seu amor?", indagou Drummond, petrificado ante a santa sem nariz que fazia milagres. É o que também eu, com minha prosa chinfrim, me pego outra vez perguntando, em face de duas perdas recentes.

Não, não acabo de descobrir que por aqui se nasce e se morre, como qualquer outro bicho; a esta altura dos acontecimentos, não tenho direito de me espantar com a gratuidade, com a ausência de sentido do perpétuo nascer e morrer a que alguém, a que alguma coisa nos condenou. Mas não me canso de me espantar com a insondável desrazão com que opera a máquina de engendrar e triturar criaturas. Não me canso também de me indagar por que injusto critério um retalho da superfície da Terra vira praça da Étoile, em Paris, espalhando raios e beleza a partir do Arco do Triunfo, enquanto a outro cabe ser algum infecto chão de favela.

Infantilidade de senhor maduro a deblaterar diante do inelutável? Pode ser. O fato é que aqui estou escalavrado pela supressão de dois amigos, levados de mim não com os bons modos que se poderia esperar de um deus misericordioso, não com a delicadeza que lhes era própria, não com a justiça pela qual lutaram sempre, mas com os safanões do que Manuel Bandeira chamaria de "morte de mau gosto", lenta e perversamente roídos por pavorosos sofrimentos. Diria meu tio Jorge, ateu de imenso coração: "Mais uma sacanagem do bom Deus..."

Não era isso o que merecia a Mariângela, em minha vida desde os nossos longínquos 20 anos, que desde o começo me habituei a ver devotada também à causa do bem estar dos animais. Aposentada na universidade, nem por isso sossegou. Em meio a empreitadas esparsas - como ajudar, com seu saber de linguista, na feitura do dicionário Houaiss -, pelo menos uma vez por semana a minha amiga, carregada de provisões, pegava em Copacabana um ônibus para a Ilha do Fundão, onde a troco de nada ia providenciar saúde e conforto para cães e gatos abandonados.

Miúda, magrinha (um "chaverinho", disse dela nosso amigo Arildo), a Mariângela topava as paradas mais bizarras que eu lhe propusesse. Certa manhã de inverno, visitou comigo o cemitério de São João Batista, aonde fui em busca do túmulo de Jayme Ovalle, cuja biografia estava escrevendo. No táxi de volta, percebi que ela, curvada sobre si mesma, trazia no colo algo que tentava ocultar de mim - e quando aceitou desfazer a trouxa em que se transformara seu casaco, de lá surgiu um gatinho recolhido entre sepulturas, um a mais para o populoso gatil em que ela convertera seu apartamento.

Nos últimos anos, brotou-lhe um câncer que, aparentemente vencido, retornaria à toda, para roubar-lhe em sucessivos golpes os cabelos e a capacidade de engolir, de falar e de andar, e enfim, quando já nada lhe restava além de uns poucos quilos, a vida. Alguma cruel força superior, se existe, a fez passar - o verso é de Libério Neves - pela "final humilhação do corpo, essencial talvez à filtração da alma". Mas que nódoas tão grandes teria a alma dessa criatura que justificassem tão medonha purgação?

Também não me parecia em débito com os Céus o amigo Antonio Maschio, ator e produtor cultural, sobretudo animador da vida ao seu alcance. Sabe disso, por exemplo, quem conheceu o Spazio Pirandello, bar, restaurante, antiquário e livraria, festivo fervedouro que ele e o jornalista Wladimir Soares fizeram borbulhar na noite paulistana dos primeiros anos 80, e onde, entre muito riso, suor e adrenalina, germinaram projetos ousados e generosos como a campanha das Diretas.

Quem diria que a usina de alegria chamada Antonio Maschio haveria de pagar as penas que pagou, e por tempo ainda mais prolongado que a Mariângela? Ei, Você aí, desde sempre sentado nessa nuvem, eu não consigo entender Sua lógica. Já me vali de três poetas, quatro agora com o Caetano, para que falem por mim o que não dou conta de dizer, e recorro a mais um, ao grande e tão escassamente conhecido Abgar Renault, sangrando na perda de um filho jovem: "Tombo, Senhor, submisso mas inconformado na desesperança / e não Te reconheço na cruel desnecessidade da Tua lança."

Coitado do homem - FABRÍCIO CARPINEJA

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ZERO HORA - 27/10

Um dos impasses masculinos no casamento é conciliar a porção macho protetor e a porção criança feliz.

Porque sua mulher ama quando você é adulto, seguro, firme, decidido, capaz de resolver crises e contas, dar colo e acalmar, dizer que tudo vai dar certo com a voz resoluta de radialista.

A mulher ama e espera ser amada desse modo. Com alguém disposto a oferecer segurança e sentido, com o peito maior do que o travesseiro, para aninhar e resguardar cheiros e futuro. Com um homem que acaricie seus cabelos em silêncio, sem que ela descubra o que ele está pensando.

Mas, se o homem está feliz ao lado da mulher, será uma criança. Eis o grande problema da dinâmica de casal: se a mulher faz o homem feliz, ele será uma criança, daí é ela que ficará descontente. Parece que precisa deixar o homem preocupado para ser feliz, mesmo que resulte na tristeza dele.

Homem bom para a ala das noivas é melancólico, aborrecido, casmurro, fortaleza enigmática, caixa com senha numérica e alfabética.

Já um homem realizado é livre como um campo de futebol num dia ensolarado. Muda seu riso, seu olhar brilha, seu rosto se amplia e se torna uma matraca. Transforma-se num bobo carente, disposto a fazer troça de qualquer assunto. Não leva coisa alguma a sério. Debochado, hiperativo, como se estivesse arremessando aviãozinho ainda do fundo da sala de aula. Vai apertar, morder, empurrar, beliscar, incomodar, perturbar, série de movimentos proibitivos da fantasia feminina.

Nos momentos de euforia do namoro, reproduz a descontração com seus amigos: em especial na pelada e no boteco. Um churrasco entre barbados exemplifica sua felicidade: os participantes só vão confidenciar bobagens e besteiras sobre sexo e carreira. A frequência estará desembaraçada, ingênua, afeita a piadas, gafes e fraquezas cômicas.

Homem brinca de brigar, mulher quando briga não gosta de brincar, entende a diferença? É um cacoete ancestral, egresso do jardim da infância. No recreio, o homem fingia guerra com os colegas para mostrar apego. Por sua vez, a mulher se divertia em montar casinha, em estabelecer ordem e hierarquia nas emoções e afetos.

A questão é que a mulher não ama quando seu marido se infantiliza, porém é quando ele está mais à vontade. É quando ele verdadeiramente está amando. A mulher é seduzida pela imagem do homem tenso e guardião, e não suporta o menino enfeitiçado pelo encantamento da relação.

Na realidade, a mulher se irrita quando sua companhia assume ares de palhaço, ou de louco. Julga comportamentos hostis, que não inspiram nenhuma confiança. Despreza essas demonstrações circenses de disputa. Tente derrubá-la na cama fora do clima sexual, que ela ficará puta da vida.

Odeia quando seu marido se mantém hipnotizado assistindo uma partida da Série C, ou na medida em que inventa de jogar playstation e perde a hora ou ainda começa a jogar bolinha dentro de casa e quebra objetos. Odeia sua birra e manha, seu timbre de desenho animado, suas miradas tristonhas de chantagem.

A mulher jamais vai nos entender. Portanto, você tem que alternar com sabedoria os dois momentos. Este é o ponto delicado: encontrar a medida. Ser os dois ao mesmo tempo sempre, e nunca exageradamente.

Nem ser demais um, nem deixar de ser o outro.

Nem ser pai demais da esposa, nem ser seu filho.