domingo, 8 de setembro de 2013

Homens de menos


Para criminosos como os que iam enterrar um mendigo vivo, existem pessoas e quase pessoas

07 de setembro de 2013 | 19h 18

José de Souza Martins, de O Estado de S. Paulo
Não se pode deixar de ver com horror a tentativa de três jovens, entre 18 e 15 anos de idade, numa madrugada da semana passada, de enterrar vivo, nas areias da praia de Ipanema, no Rio, um morador de rua, depois de espancá-lo com uma pá e tentar sufocá-lo com um saco plástico.
Espancamento, sufocamento e sepultamento frustrado por pouco - Felipe Hanower/Agência O Globo
Felipe Hanower/Agência O Globo
Espancamento, sufocamento e sepultamento frustrado por pouco
Surpreendidos pela polícia, foi o homem resgatado e levado para um hospital. O maior de idade foi autuado por tentativa de homicídio e corrupção de menores e os menores foram encaminhados para a Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente. Os criminosos alegaram que a vítima era um estuprador.
Poderia ser apenas mais uma aberração no rol de maldades que, vez ou outra, são noticiadas e espantam os que se preocupam com a condição humana. Exceções a contrariar a consciência social.
Não se trata de caso excepcional, porém. Excepcional e inovador apenas na técnica de violência criminosa: enterrar viva a vítima. De julho para cá, foi registrada ao menos meia dúzia de ocorrências de pessoas queimadas vivas em diferentes lugares do Brasil, na maior parte dos casos por jovens, algumas vezes menores, quase sempre do sexo masculino. Com exceção de um caso em Guamá, Brasília, em que do trio criminoso fazia parte uma menor, filha de policial. Em Barretos, São Paulo, foi gravemente queimado quando chegava em casa um jovem carteiro, pai de família, porque tinha pouco dinheiro no bolso. Tivemos recentemente o caso da dentista queimada viva no subúrbio de São Paulo e do dentista também queimado vivo no interior.
Nem sempre se trata de casos em que a violência cruel é complemento de uma ação criminosa, como o roubo. Um número grande de casos envolve pessoas que agridem e até matam cruelmente por pura diversão. Quase sempre se trata de vítima indefesa ou desvalida. Não é raro que a vítima seja negra. Com grande frequência os criminosos são de classe média, cenário que se alarga se nele incluirmos os casos de atropelamento e morte ou mutilação de pedestres por motoristas socialmente bem situados, que fogem e no ato e na fuga dão explícitas demonstrações de menosprezo pela vida alheia.
Nossa sociedade, nesses já frequentes casos, vem botando a cara pra fora, como se costuma dizer. Essas ocorrências são indícios de que a sociedade brasileira está doente. A certeza de que esses crimes são lícitos e impunes está presente em quase todos os casos. Quando, em 1997, foi queimado vivo o índio pataxó hã-hã-hãe Galdino Jesus dos Santos num ponto de ônibus de Brasília, os assassinos, de famílias de alta classe média, alegaram que pensaram ser ele um mendigo.
Isto é, em seu entender, se fosse mendigo, podia.
Em vários desses casos são fortes as indicações de que o pressuposto da violência é o mesmo: o de que há pessoas que não têm direito ao tratamento de sujeitos de direito, porque menos humanas que as demais. Menos humanas porque negras, mestiças, indígenas, mulheres, pobres. Polícia e Justiça não raro agem segundo esse mesmo entendimento, o de que uma parcela da população brasileira é menos humana e menos gente que outra. No caso de Galdino, os assassinos em pouco tempo estavam em liberdade. Se vasculharmos mais fundo, vamos encontrar um padrão recorrente de comportamento de classe média, que vem de nossas heranças históricas de desigualdade social e mando. O que antes era atributo da minoria senhoril, agora se difunde com a ascensão social de gente que chega economicamente às camadas superiores da sociedade sem ter chegado às camadas superiores da cultura e da civilização. Em média, vamos nos tornando mais ricos e mais ignorantes, decaindo na escala da civilidade.
Essas coisas costumam acontecer altas horas da noite, como no caso ocorrido na praia de Ipanema e nos outros mencionados. Nos numerosos casos de linchamento no Brasil, um crime do mesmo gênero dos aqui mencionados, em longa série histórica, há notória diferença entre linchamentos praticados à noite e os praticados de dia. Os linchamentos noturnos são mais violentos e neles são maiores os indicadores de crueldade, como a de mutilar a vítima ou a de queimá-la ainda viva.
Tanto o justiçamento popular quanto a diversão juvenil de queimar vivas pessoas sozinhas e desamparadas são manifestações de uma covardia estrutural: os violentos são corajosos quando ninguém está vendo, quando não há testemunhas, quando há apenas cúmplices. Quando, nos casos de linchamento, se leva em conta que as multidões espontâneas que deles participam são extrações ao acaso do conjunto da sociedade, temos uma significativa indicação de uma disposição que vem das nossas estruturas sociais profundas, aquelas sem visibilidade imediata na maquiagem social do cotidiano, dos fingimentos que asseguram uma sociabilidade de superfície, aparentemente conforme as normas da civilidade. Uma disposição, também, que se aproveita do amortecimento da consciência social numa sociedade em que os direitos da pessoa não têm raízes fundas nem são cuidados com amor de jardineiro.
* José de Souza Martins é sociólogo e professor emérito da Faculdade de Filosofia da USP. Autor, entre outros livros, de "A Sociologia Como Aventura" (Contexto)

Pais PMs ensinaram Marcelo Pesseghini a burlar leis, diz laudo psicológico

08/09/2013 - 09h56


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JOSMAR JOZINO
DO "AGORA"
FELIPE SOUZA
DE SÃO PAULO
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O estudante Marcelo Eduardo Bovo Pesseghini, 13, foi influenciado por uma série de fatores que os levou a matar os pais, a avó e a tia-avó e cometer suicídio. As informações são do laudo psicológico sobre o crime, que faz parte do inquérito do caso, ao qual a Folha teve acesso.
O laudo psicológico do IC (Instituto de Criminalística) cita a culpa dos próprios pais por burlar leis e incentivar Marcelo a cometer atos ilegais. O sargento da Rota (tropa de elite da PM) Luís Marcelo Pesseghini, 40, teria ensinado o menino a manusear armas. A mãe, a cabo do 18º batalhão de Polícia Militar Andreia Regina Bovo Pesseghini, 36, teria ensinado o garoto a dirigir.
De acordo com a análise, esse conjunto de fatores prova a ausência de regras, "que primeiramente deve ser imposta pelo pai, que segundo a psicanálise é a lei".
Médicos chegaram a estimar que o garoto vivesse até os 4 anos devido a uma fibrose cística --doença degenerativa que ataca principalmente os pulmões e sistema digestivo. Posteriormente, afirmaram que, possivelmente, não chegasse aos 18.
Devido à doença, o menino era proibido pelos pais de brincar na rua e de sair com os amigos, o que o irritava.
O laudo aponta que vários fatores levaram o menino a ter um surto psicótico e cometer a sequência de assassinatos. Marcelo era um menino "de poucos amigos, que passava horas jogando videogame, especialmente o violento 'Assassins Creed'", no qual o personagem principal é um assassino de aluguel. No jogo, entretanto, se o jogador matar pessoas inocentes poderá ser punido, segundo o laudo.

Anotações de Marcelo Pesseghini

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Reprodução
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Laudo mostra conversas de Marcelo com prima pelo computador
O texto diz que a atenção excessiva do menino ao jogo reflete uma tentativa de fuga da realidade. Isso o fez criar um grupo com amigos da escola chamado "Mercenários", cujo objetivo era matar desafetos, inclusive membros da família.
De acordo com a conclusão psicológica, os pensamentos de se tornar um matador de aluguel passaram a se tornar persistentes, confundindo a realidade com a fantasia.
MATAR A DIRETORA
Segundo o laudo, esse conjunto de fatores foram decisivos para que o menino tivesse motivos para matar a família e cometer suicídio. Entretanto, o garoto ainda poderia ter assassinado outras pessoas.
Segundo a análise, a intenção dele era se ver livre de todos que o oprimiam. Um vídeo que mostra o menino chegando à escola após matar os pais demonstraria que ele teria encarnado o personagem matador, o que "ficou certificado através de passadas largas."
O laudo explica que isso prova que ele ainda tinha a intenção de matar alguém que, segundo as investigações da Polícia Civil, seria a diretora do colégio Stella Rodrigues, na zona norte da capital paulista. Amigos do garoto relataram à polícia que ele já havia relatado por diversas vezes a intenção de matar a família.
"ROTA É FODA"
Um dos laudos mostra um relatório de conversas entre Marcelo Pesseghini e uma prima dele no dia 13 de maio deste ano. As informações foram apreendidas no tablet do menino.
O garoto interrompeu o discurso duas vezes com a frase "rota é foda". Na primeira delas, há uma grande repetição das consoantes para dar uma entonação de grito à frase.
A garota respondeu à primeira mensagem com a mensagem "oi filho vc está bem?". Minutos depois, a menina disse diversas vezes que o amava, sem obter resposta.
O garoto volta a dizer "rota é foda", e a menina diz que ele era "fofinho da priminha", que é respondida: "não é nada fofo".
O comandante-geral da PM, Benedito Roberto Meira, disse que Marcelo costumava ir ao batalhão da Rota com o pai, mas não tinha históricos de violência na escola.
Familiares de Marcelo tiveram acesso ao conteúdo dos nove laudos da perícia sobre o caso. A apresentação dos documentos sobre o crime foi feita por policiais do DHPP (Departamento de Homicídios e Proteção à Pessoa), que investigam o caso. Entretanto, a família ainda não acredita que o menino tenha cometido o crime.

Família de PMs é assassinada em SP

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Jorge Araujo - 6.ago.13/Folhapress
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Polícia Civil faz perícia no local onde ocorreu a chacina na Brasilândia, zona norte de São Paulo
O CASO
De acordo com a principal linha de investigações, Marcelo matou a família, dirigiu com o carro dos pais até a escola, frequentou as aulas de manhã e retornou para casa de carona. Na sequência, ele se matou.
A Polícia Militar disse que investiga também a acusação de que Andreia teria sido convidada a participar de roubos a caixas eletrônicos. A informação foi dada pelo deputado estadual Olímpio Gomes (PDT), major da reserva da PM. Ele denunciou o caso à Corregedoria da corporação.
Luis Marcelo Pesseghini, 40, pai do menino, era sargento da Rota. A mulher dele, Andreia, 36, era cabo do 18º Batalhão. As outras vítimas moravam na casa nos fundos: a mãe e uma tia de Andreia, de 65 e 55 anos.
A casa onde a família foi morta não teve a cena de crime totalmente preservada. A informação consta de nota divulgada na terça-feira (13) pela Secretaria da Segurança Pública de São Paulo.
"O departamento [Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa, DHPP] apenas confirmou afirmação da imprensa de que o local 'não estava totalmente idôneo'. Isso, evidentemente, não quer dizer que houve violação proposital da cena do crime", diz o texto.
Sebastião de Oliveira Costa, 54, parente das vítimas, disse que chegou à casa às 17h45 do dia 5 e que havia ao menos 30 PMs dentro dela, antes da chegada da perícia.
Peritos constataram nessa semana que os disparos poderiam ser ouvidos a 50 metros da casa da família. Nenhum vizinho, no entanto, disse ter ouvido os disparos.

Bolsa Família faz dez anos

exame de paternidade aponta petistas, tucanos e neoliberais do Banco Mundial



“Deve-se confiar nos pobres, eles fazem boas escolhas”, disse a uma plateia de petistas de primeiro escalão o americano David de Ferranti, na época vice-presidente do Banco Mundial para a América Latina.
A época era o ano de 2003, mais precisamente no dia 31 de março, quando o governo Luiz Inácio Lula da Silva completava seus primeiros três meses e debatia em seminário o seu mais importante programa social.
Um tal Fome Zero.
Sem muita sutileza, Ferranti atacava a proposta que havia encabeçado a campanha de Lula ao Planalto, cuja grande inovação seria a distribuição de cartões a serem utilizados obrigatoriamente na compra de comida.
A receita alternativa do economista era o que havia de mais consensual na agenda neoliberal de Washington: unificação de ações de combate à pobreza em um programa de renda focado apenas nos segmentos mais miseráveis da poupação, no qual os beneficiários têm liberdade para usar o dinheiro desde que se comprometam com contrapartidas como a frequência escolar dos filhos.
Poucos meses depois surgia o Bolsa Família, cujo primeiro decênio de vida começa a ser comemorado pelos petistas.
É óbvio que Ferranti não havia feito uma mera contribuição pessoal ao debate. Sua tese contava com aliados no Ministério da Fazenda de Antonio Palocci e seu secretário de Política Econômica, Marcos Lisboa.
Lisboa vinha do Iets (Instituto de Estudos de Trabalho e Sociedade), entidade que tinha o Banco Mundial entre seus financiadores, e na campanha eleitoral havia coordenado um documento conhecido como a “Agenda Perdida”. O texto pregava reformas liberais na economia e ações sociais focalizadas _até então, a política social brasileira era composta basicamente por programas universais, ou seja, disponíveis para todos.
As ideias provocavam reações veementes no PT. Em um seminário no mês de abril, Guido Mantega, então ministro do Planejamento, chamou a “Agenda Perdida” de “agenda fajuta”.  Dias antes, em entrevista publicada pela Folha, a economista de maior renome no partido, Maria da Conceição Tavares, havia chamado Lisboa de “semi-analfabeto” e o Iets de “grupo de débeis mentais do Rio de Janeiro”.
Um documento publicado em 2007 pelo Banco Mundial tratou da paternidade do Bolsa Família. Relata-se um encontro sobre o assunto, naquele mesmo março de 2003, entre Lula, o presidente do organismo, James Wolfensohn, e Santiago Levy, formulador de um programa de combate à pobreza no México. Dali em diante, o banco prestou assistência técnica na elaboração do programa brasileiro.
Como o texto aponta, porém, as origens da ideia são mais antigas no debate e na prática administrativa do país. O senador Eduardo Suplicy (PT-SP), por exemplo, já defendia obsessivamente havia mais de uma década um programa de renda mínima.
Em 1995, quase simultaneamente, o governo do Distrito Federal, comandado pelo PT, e a Prefeitura de Campinas, do PSDB, lançavam iniciativas pioneiras, que seriam posteriormente copiadas ou adaptadas em uma série de municípios.
Em 2001, FHC criou o Bolsa Escola federal, repetindo o nome adotado no DF, e o Bolsa Alimentação. Até o final de seu mandato, outras ações de menor montante, como o Auxílio-Gás, seriam inauguradas.
Tucanos costumam reivindicar uma parcela majoritária do DNA do Bolsa Família, que, segundo sua argumentação, seria mera unificação de verbas já existentes. Mas foi a administração petista que deu ao programa uma escala antes inimaginável: em 2002, o Bolsa Escola e o Bolsa Alimentação gastavam juntos R$ 1,7 bilhão, ou R$ 3,2 bilhões em valores atualizados, enquanto o Bolsa Família desembolsará R$ 21,4 bilhões neste ano.