segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Nos detalhes, o diabo


OSCAR VILHENA VIEIRA É PROFESSOR DE DIREITO CONSTITUCIONAL DA DIREITO GV - O Estado de S.Paulo
Aprovada em 2010, a Lei da Ficha Limpa estreou finalmente nestas eleições. Sua principal inovação foi estabelecer novas hipóteses de inelegibilidade, impedindo que indivíduos envolvidos em práticas ilícitas e malversação de recursos possam concorrer a cargos públicos. Se antes, por exemplo, os condenados à perda de direitos políticos por improbidade administrativa podiam disputar eleições até que fossem esgotados todos os recursos, a partir de agora basta um único pronunciamento por tribunal para que a candidatura seja barrada.
A lei criou, portanto, condições para um grande salto ético no processo eleitoral. Muitos políticos que vivem às voltas com a Justiça possivelmente nem ousaram se lançar candidato ou tiveram indeferido o registro de sua candidatura. Alguns, marotamente, se fizeram representar por esposas, filhos e sobrinhos.
O controle das candidaturas é feito pela Justiça Eleitoral, a partir da iniciativa de qualquer candidato, partido político, coligação ou do Ministério Público, que podem apresentar impugnação aos pedidos de registro. Com isso, um aspecto importante da disputa eleitoral - o debate sobre o peso que o passado de condenações deve exercer na avaliação do eleitor - foi transferido do ambiente político para a arena judicial. Nesse sentido, a Lei da Ficha Limpa representa mais um capítulo no processo de judicialização da política nacional. Importante destacar que esse movimento não se deve a um ativismo do Judiciário, mas decorre do impulso da sociedade e do próprio acolhimento dos braços políticos do Estado. A expansão do raio de ação judicial é determinada, ao menos nesse caso, por uma lei que não apenas foi aprovada pelo Congresso Nacional, mas nasceu da iniciativa popular. Nesse contexto, a judicialização dificilmente pode ser taxada de ilegítima, pois decorre de um processo de delegação política explícita.
A eficácia da Ficha Limpa, contudo, depende muito do modo como ela é aplicada. Como se sabe, o diabo mora nos detalhes. E é aqui que os problemas começam a aparecer. Três deles parecem mais evidentes.
O primeiro tem a ver com a incapacidade do sistema jurisdicional de resolver definitivamente, antes das eleições, os milhares de impugnações formuladas com base na lei. Em muitas localidades os eleitores foram às urnas sem saber se determinados candidatos conseguirão manter suas candidaturas e, consequentemente, se os votos a eles dados serão considerados válidos. Isso produz forte apreensão e prejudica a estabilidade que, em uma democracia, deve ser a tônica do processo eleitoral.
Em realidade, essa demora era esperada. Afinal, em todos os casos em que se suscitou a aplicação da Lei da Ficha Limpa é natural que o prejudicado - o candidato, na hipótese de indeferimento do registro, ou seus oponentes, na situação contrária - recorra da decisão. E recurso é o que não falta na legislação eleitoral: além do apelo ao Tribunal Regional Eleitoral (TRE), pode-se recorrer ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Mais: se esse expediente for decidido monocraticamente pelo relator, cabe novo recurso para o colegiado. Persistindo o ânimo recursal, o caso pode ser levado até o Supremo Tribunal Federal. Junte-se a isso os embargos cabíveis a cada nova decisão e se concluirá, sem muita dificuldade, que não é por falta de esforço da Justiça Eleitoral que a meta de julgar todos os recursos até 23 de agosto não foi alcançada.
Um segundo problema reside na constatação de que decisões colegiadas dos TREs que rejeitaram candidaturas com base na Lei da Ficha Limpa foram revertidas, no TSE, pela decisão isolada de um único ministro (o relator), inclusive em casos nos quais o Tribunal Regional havia decidido pela unanimidade de seus desembargadores. Nada contra o TSE reformar decisões de instâncias inferiores - isso faz parte de seu papel institucional. O princípio da colegialidade recomenda, porém, que os Tribunais se manifestem pelo conjunto de seus integrantes. O TSE deveria se cercar de todos os cuidados para que seus pronunciamentos sejam o mais uniforme possível - e isso envolve reduzir os espaços para decisões monocráticas.
Por fim, um terceiro problema refere-se à leitura que a sociedade faz da decisão que libera o registro de candidatura impugnada com base na lei. Ela significa, tão somente, que o candidato não tinha condenações por órgão colegiado (segunda instância ou superior); eventuais condenações que tenham recebido em primeira instância não são computadas para efeitos da lei. A lei filtra apenas os casos mais graves de políticos com problemas na Justiça, e não todos. O que se observa, porém, é que muitos candidatos com dezenas de condenações (apenas) em primeira instância, que tiveram suas candidatura registradas, apresentam-se na arena eleitoral como candidatos ficha limpa, com "atestado judicial" de bons antecedentes - e isso, definitivamente, não condiz com a realidade.
A lei não eliminou, portanto, a necessidade de o eleitor continuar vigilante sobre o passado ético dos postulantes a um cargo público. O grande risco é achar que a Justiça Eleitoral possa substituir o juízo crítico do cidadão. O direito e suas instituições são indispensáveis para a vida democrática, mas jamais poderão substituir a política e a cidadania.

Voto-desalento


JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP, AUTOR, ENTRE OUTROS, DE A POLÍTICA DO BRASIL LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO) - O Estado de S.Paulo

A indicação de que cresceu a proporção de votos nulos nessas eleições propõe, mais uma vez, a questão da compreensão do significado do antivoto ou do abandono do título eleitoral para expressar omissão e desinteresse político por uma eleição. Essas variantes do desalento político do eleitorado constituem, provavelmente, a mais interessante revelação da manifestação eleitoral recente, até mais que o rearranjo de posições partidárias que a votação válida indicou. O cansaço do eleitor está indicando, em suas diferentes formas de manifestação, o declínio do homem político e da própria política.
Abstenção, voto em branco e voto nulo parecem indicar uma gradação do desalento dos eleitores, começando daqueles que recusam desde a eleição propriamente dita, passando pelos que recusam os candidatos e partidos disponíveis e chegando àqueles que não só não se identificam com as alternativas oferecidas como se punem, anulando-se como eleitores ao anularem seu voto. Aqui, não é a recusa da cidadania nem a recusa de partidos e candidatos: é a recusa da política propriamente dita através de um gesto que será interpretado corretamente se interpretado como gesto político dos que não encontram abrigo nos canais partidários de expressão política.
É evidente que no interior da categoria dos aproximadamente 15% que se abstiveram nos colégios eleitorais mais importantes do País há desde os que, por idade, estão liberados de comparecer às urnas, como se diz, até os que, tendo mudado de município de residência, não providenciaram a mudança do domicílio eleitoral. Nos dois casos o eleitor preserva seus direitos eleitorais, embora não os exerça. Pode mudar de ideia e votar, como pode, se quiser, providenciar a transferência do título em tempo hábil, processo simples e fácil. Portanto, quem anula o voto não está distante dos que votam em branco nem propriamente discrepa dos que se abstêm.
O voto em branco é um voto cidadão e é por isso voto válido. O eleitor cumpre seu dever, mas nega seu voto aos candidatos disponíveis. O voto nulo já é mais complicado e nem por isso deixa de ser legítima manifestação do eleitor, ainda que deplorável porque expressa uma vontade política que não se materializa em nenhuma mensagem compreensível. O caso recente de sucedâneo do voto nulo foi o da acachapante votação do palhaço Tiririca, que se ofereceu explicitamente como candidato do deboche a deputado federal e foi eleito: "Vote em Tiririca que pior não fica". O eleitorado enviou à Câmara dos Deputados um representante que relembraria a seus pares, diariamente, o que deles pensa o eleitor.
Mesmo submetido à assepsia limitante da urna eletrônica, que impede os insultos e palavrões, o voto nulo é uma luz que fica muito mais vermelha numa eleição como essa se o somarmos aos votos em branco e às abstenções. Na cidade de São Paulo, os eleitores desalentados, 2.490.513, superaram em muito os dois primeiros colocados da votação válida: José Serra (PSDB) teve 1.884.849 votos e Fernando Haddad (PT) teve 1.776.317 votos. No Rio de Janeiro, a vitória em primeiro turno de Eduardo Paes (PMDB/PT), com 64,6% dos votos válidos, fica muito menos significativa se levarmos em conta que o segundo colocado foi o eleitor desalentado, que não votou em ninguém: 1.472.537 eleitores, uma vez e meia votação do colocado seguinte, Marcelo Freixo, do PSOL. Em Belo Horizonte, o fenômeno se repetiu. Márcio Lacerda (PSB/PSDB) teve 676.215 votos e foi eleito com 52,6% da votação válida. Patrus Ananias, do PT, teve 523.645 votos, enquanto os eleitores desalentados foram 576.673, segundo colocados. Em Recife houve um fenômeno parecido. Geraldo Julio, do PSB, foi eleito em primeiro turno com 51,1% dos votos. Mas o segundo colocado, Daniel Coelho, do PSDB (245.120 votos) e Humberto Costa, do PT (154.460 votos), tiveram individualmente menos votos do que o número de eleitores desalentados, 283.279, que nesse caso ficaram em segundo lugar. Em Salvador, os desalentados foram 589.437 eleitores, mais numerosos que os votos do primeiro colocado, ACM Neto, do DEM, que teve 518.976 votos, e Pelegrino, do PSB/PCdoB, com 513.350 votos. O mesmo fenômeno ocorreu em Fortaleza, onde Elmano, do PT, teve 318.262 votos, Roberto Cláudio, do PTB, teve 291.740 votos e Moroni, do DEM, teve 172.002 votos. Ali os eleitores desalentados foram 361.211, bem mais do que o primeiro colocado. Em Porto Alegre, em que Fortunati, do PDT, foi eleito em primeiro turno com 517.969 votos, a segunda colocada, Manuela d'Avila, do PCdoB, teve os votos equivalentes à metade dos eleitores desalentados, que somaram 282.048.
O fenômeno se repetiu, ou quase, em diversas outras capitais e em outros municípios emblemáticos. O que sugere uma crise da representação política e mesmo o declínio dos partidos. Uma parcela ponderável dos brasileiros está tendo seus direitos políticos cassados por falta de um sistema partidário que dê efetivamente conta do que a representação política deveria ser.

Rendição pragmática


ROBERTO ROMANO É PROFESSOR DE ÉTICA E FILOSOFIA NA UNICAMP, AUTOR DE O CALDEIRÃO DE MEDEIA (PERSPECTIVA) - O Estado de S.Paulo
O segundo turno das eleições paulistanas retoma o dramalhão dos Montecchios contra os Capuletos, sem casal inocente para ser lamentado. PT e PSDB têm origens próximas e fontes comuns de pensamento. Ambos surgem como alternativas de esquerda ao "socialismo real", seus programas pretendem mudar as formas capitalistas no âmbito e limites do Estado democrático. Os dois partidos foram e são próximos da social-democracia europeia, com variantes próprias à cultura política brasileira.
O PT retoma três paradigmas de sociedade e de Estado. O primeiro é a doutrina clássica do poder político que deve ser colhido eleitoralmente. Mas para a representação marxista radical o Estado é ilegítimo, mesmo com eleições e demais ritos burgueses. Representantes dessas tendências estão no PT. Existem também os trotskistas, que postulam a luta revolucionária no plano internacional. Daí sua suspeita contra o PT e o sindicalismo nacionalista que o inspira. Alguns remanescentes da Quarta Internacional desconfiam de Lula: ele seria um líder pré-fabricado (José Nêumanne Pinto esclarece o tema em O que Sei de Lula). Os herdeiros de Trotski representam setores críticos contra os dirigentes partidários. PSTU e PSOL formalizam expulsões ou rupturas com o partido. Mas não poucos trotskistas, a exemplo de Palocci, se acomodam à burocracia partidária. Tal fusão heteróclita é relevante na construção do poder interno do petismo.
Também na origem do PT estão as formas da cultura católica de esquerda. Boa parte desse setor se forma nos anos 1960, quando a Igreja modifica seus elos com a sociedade capitalista nas encíclicas sociais e no Vaticano 2, sobretudo a declaração conciliar Gaudium et Spes. Nos inícios daquela década surge a Ação Popular (AP), inspirada nas ideias de Teilhard de Chardin e de Hegel, lidos pelo jesuíta Henrique Vaz. Ela opera com as ações juvenis católicas especializadas (JEC, JUC, JOC). A máxima expansão do movimento dá-se antes de 1964, quando a presidência da UNE é conquistada por José Serra. Após o golpe a Ação Católica sofre uma "intervenção branca" da CNBB e a AP perde seu elemento de mobilização política. Após o Congresso da UNE em Ibiúna, e com as guerrilhas, a AP deixa de ser estratégica para os religiosos. Com seu desaparecimento os católicos não estabelecem partido próprio, anseio que vem desde o Império. Os militantes e intelectuais cristãos encontraram no PT a oportunidade de agir num coletivo político não comunista e livre da Igreja, que na época sofre o Termidor dirigido por João Paulo II.
O PT é uma bricolagem de segmentos diferentes, um campo de lutas interno e externo. O equilíbrio de vários modelos, desejos, paixões, idiossincrasias, é nele muito difícil. A luta entre tendências conduz a direção ao uso do segredo contra as bases, aos atos impostos verticalmente, às alianças alheias ao espectro ideológico indicado no programa. O PT foi produzido como alternativa política para setores da esquerda, dos antigos comunistas aos católicos. Conduzir um programa unitário com tantas divergências doutrinárias e imaginários distintos é um desafio.
O PSDB teve sua origem no PMDB e foi liderado por setores políticos da esquerda marxista, mas também acolhendo intelectuais católicos de origem (caso de José Serra) e acadêmicos cuja produção teórica se desenvolveu fora dos parâmetros filosóficos do chamado "materialismo histórico e dialético". Já na ditadura civil-militar foi instaurado o Cebrap, think tank que até hoje possui relativa força na orientação programática tucana. Espécie de laboratório social e universitário, ele gera ideias, táticas e estratégias do partido. Sua figura maior é Fernando Henrique Cardoso, político hábil e pesquisador com ideias próprias. Sua colaboração para a "teoria da dependência"o tornou conhecido nacional e internacionalmente, dando-lhe credenciais para a carreira de governante.
Os dois partidos, na Presidência da República, se renderam à lógica do conservadorismo que rege os tratos entre o poder central e as regiões brasileiras, dominadas por oligarquias truculentas e corrompidas. Ambos precisaram rasgar os alvos éticos em proveito da "arte do possível" (o termo é de Bismark). Nas alianças pela "governabilidade", as duas agremiações sacrificaram no altar do realismo político seus programas anteriores, de esquerda ou centro-esquerda. Oligarcas notórios (ACM, Sarney, Jader Barbalho, Quércia, Maluf, para citar apenas alguns) serviram aos dois partidos e deles se serviram ao longo dos 16 anos de administração tucano-petista. Ficam os eleitores paulistanos com a tarefa de fornecer alento suplementar para as duas siglas. Essas, em nome do poder, desfiguraram suas propostas originais para a sociedade. Esperemos que, depois do aperto sofrido por ambas, elas repensem táticas e estratégias, tornando-se menos dependentes das raposas que ainda dominam a política nacional e paulista.