segunda-feira, 15 de outubro de 2012

A lógica do conflito urbano


LAURINDO DIAS MINHOTO É PROFESSOR DO DEPARTAMENTO DE SOCIOLOGIA DA USP - O Estado de S.Paulo
LAURINDO DIAS MINHOTO
O funcionamento das polícias no Brasil caracteriza-se por um acentuado viés militar, vinculado a um arranjo constitucional esdrúxulo que legaliza a militarização da função civil de segurança pública no país. A própria organização das forças policiais constitui uma espécie de claro-escuro jurídico-institucional, em que se encontram baralhadas as dimensões civil e militar da segurança.
Em outro nível, sabe-se também que a prática policial brasileira tem sido marcada por uma perversa "divisão do tempo de trabalho", em cujos termos alguns agentes alternam entre o plantão e o bico, as ações judiciais e as extrajudiciais, o serviço público e os serviços privados, mimetizando, em outro plano e a seu modo, a porosidade e o hibridismo do arranjo institucional e reforçando a zona cinzenta do legal e do ilegal em que muitas vezes se movem nossas polícias.
Esse desenho institucional civil-militar e essas práticas policiais legais/ilegais parecem o resultado de um padrão autoritário de gestão de conflitos que historicamente caracteriza o controle social à brasileira. Numa sociedade de enclaves, caracterizada por uma arquitetura urbana de secessão, por um Estado permeável a interesses particularistas e por desigualdades muito expressivas, a gestão política de conflitos entre nós tem privilegiado a militarização da segurança pública, o uso arbitrário da força policial e as operações de guerra interna travadas nas inúmeras zonas de não direito de nossa sociedade.
Em suas incursões contra "territórios inimigos", as forças policiais gozam de ampla margem de manobra para instituir, desmontar e reconfigurar fronteiras: entre o cidadão e o subcidadão, o crime e o trabalho precário, o público e o privado, especialmente nas zonas urbanas de intersecção entre os enclaves fortificados do andar de cima e os enclaves - também muitas vezes fortificados - do andar de baixo.
No entanto, o que poderia ser visto como mais uma "sobrevivência arcaica" em país de modernização incompleta - algo que deita raízes em nosso passado escravista e no "código do sertão" a ele associado -, apresenta-se hoje como fenômeno mais complexo: ao mesmo tempo o laboratório e a ponta de lança de um novíssimo urbanismo militar, que se alimenta justamente da geografia de enclaves fortificados, da guerra securitária interna e da militarização das funções civis de segurança pública e tende a se disseminar por algumas das principais cidades do capitalismo global.
O urbanismo militar contemporâneo consiste na colonização crescente do espaço urbano e da vida cotidiana nas cidades por uma racionalidade militar, vale dizer, por práticas e discursos que têm no centro a noção de guerra. Dessa forma, questões e eventos da ordem do cotidiano das cidades são convertidos em assuntos de guerra, em questões militares. Uma visão de mundo militarizada vai se espraiando e se combinando de modo particular às racionalidades próprias de outras esferas da vida social, como a econômica, a política, a jurídica e assim por diante.
Nota-se no campo ideológico a ampliação a fórceps das noções de risco, insegurança e guerra (contra as drogas, o crime, o terror, etc.), que, no saco sem fundo da retórica de guerra permanente, legitima a suspensão de direitos e garantias fundamentais, a adoção de leis de emergência e mecanismos jurídicos de exceção, a "gentrificação" do espaço público e a conversão de locais públicos e manifestações populares em praças de guerra.
Dessa perspectiva, pode-se verificar a emergência de novas economias, políticas públicas e formas jurídicas da guerra, que articulam o militar e o urbano de diferentes maneiras. Fenômenos bastante conhecidos, e analisados de modo setorial em suas respectivas áreas de conhecimento, talvez pudessem ser reconsiderados à luz desse processo de militarização. Destacam-se aqui:
O capitalismo de choque, ou de desastre, movido à base de estratégias de acumulação por despossessão em que a incursão militar é decisiva para abertura e consolidação à força de novos mercados.
O planejamento urbano de perfil higienista, que se vale da edificação de cordões sanitários entre classes sociais e encontra no emprego do aparato militar um elemento estratégico ao patrulhamento de fronteiras e à segurança da circulação seletiva de bens, serviços, informações e pessoas.
O direito penal do inimigo e a política de encarceramento em massa, que normalizam procedimentos legais de exceção e buscam legitimação na retórica e nas práticas de defesa militar, convertendo ilícitos penais comuns em atos de guerra.
O emprego cotidiano da racionalidade da guerra e das forças militares na gestão das cidades do capitalismo global passa a ser decisivo, entre outros, para a geração e ampliação dos negócios. E também para: o desenvolvimento de novas tecnologias de controle; a articulação crescente entre indústria da guerra, do automobilismo e do entretenimento (vide fenômenos de venda como os SUV e os jogos bélicos de computador); a gestão do crime; a formulação e a execução do planejamento urbano; a manutenção da disciplina em ambiente escolar; a legitimação política das administrações das cidades (de que constituem capítulo notável as recentes eleições municipais brasileiras) e a organização de eventos esportivos mundiais (como a Copa e a Olimpíada).
Esse parece ser justamente o maior desafio para quem pretende se opor ao urbanismo militar dos dias de hoje: já não se trata apenas, mais uma vez, da importação de modelos dos países centrais; trata-se de um processo histórico que parece se alimentar de uma homologia crescente entre estruturas sociais, arranjos institucionais e formas de consciência que tem em seu centro o amálgama entre guerra, política e negócios e, nessa medida, tende a inscrever a racionalidade militar no cotidiano das nossas cidades para muito além dos limites geográficos dos espaços nacionais.

Rota do Pacífico traz negócios e devastação


Reportagem especial*
Há um ano foi inaugurada a megaestrada Interoceânica Sul, de 5.404 quilômetros de extensão, que conecta o Pacífico peruano com o Atlântico brasileiro. Com ela, nasceram centenas de oportunidades de riqueza e desenvolvimento, mas também grandes desafios ambientais e sociais. A estrada abriu uma vasta área da floresta mais cobiçada do planeta à economia mundial. Milhares de pessoas estão chegando para habitá-la e também muitos investidores de países tão distintos quanto China, Rússia, França, México e Chile, em busca de negócios.
A tríplice fronteira Brasil, Peru e Bolívia, antes povoada por árvores centenárias, vida selvagem e cerca de 100 mil habitantes em suas áreas mais conservadas, agora se encheu de ruído: a música dos novos povoadores, o zumbido das motosserras, o movimento dos comércios de todo tipo e o estrondo de potentes motores arrancando o ouro enchem o cenário.
O Brasil, a sexta economia do mundo, precisava de uma saída para exportar seus produtos aos mercados asiáticos no Pacífico e foi o principal patrocinador da Interoceânica. A estrada era ainda uma maneira de integrar as cidades mais remotas de cada um desses três países: Puerto Maldonado, no Peru; Cobija, na Bolívia, e Rio Branco, no Brasil.
A organização não governamental de jornalismo Connectas percorreu cerca de 700 quilômetros da Interoceânica para ver quais foram as mudanças que a estrada trouxe para o meio ambiente e para a vida das pessoas.
Na tríplice fronteira, três forças disputam o desenvolvimento. De um lado estão os conservacionistas, que querem que a Amazônia continue intacta e sua biodiversidade somente sirva aos pesquisadores e ao sustento dos habitantes tradicionais. De outro estão os desenvolvimentistas, que acreditam ser possível extrair valiosos recursos, como a madeira e o ouro, de forma racional, com supervisão estatal. Também veem um potencial para expandir a fronteira agropecuária, derrubando e queimando floresta. E, na terceira ponta, estão os destruidores, que já estão tirando os minerais e cortando as árvores sem permissão das autoridades, em especial no Peru e na Bolívia.
A estrada conectou a selva com a modernidade e, assim, atraiu milhares de novos habitantes. Os pequenos e tranquilos povoados não conseguiram se preparar para a migração massiva. Nos últimos cinco anos, as pequenas populações duplicaram o número de habitantes, como o caso de Puerto Maldonado, que hoje se vê em apuros para acomodar 200 mil pessoas. Não tem os serviços necessários e, na aglomeração, o crime começa a crescer. A interconexão também abriu caminho para o narcotráfico e o tráfico de pessoas em uma espiral que, reconhecem as autoridades locais, ameaça a antes tranquila região.
A Interoceânica é como um cordel que entrelaça todas essas realidades. Enquanto isso, o intercâmbio comercial, sua principal razão de existir, começa a dar resultados. Até o momento, os produtos da região do Acre, como a soja, tinham de percorrer 26,3 mil quilômetros para chegar à China, com uma cara passagem obrigatória pelo Canal do Panamá. Com a nova estrada, essa distância foi reduzida a 17,5 mil quilômetros. No outro sentido, o Peru pode enviar seus produtos a menores custos para a África e a Europa, embarcando-os diretamente nos portos brasileiros no Atlântico. Espera-se que a Interoceânica também melhore o comércio entre Brasil e Peru, que hoje praticamente têm fronteiras abertas, e entre esses países com a Bolívia, que está a um passo da estrada. Também o Chile espera ver crescer suas oportunidades comerciais, uma vez que com a estrada terá acesso a um mercado de 200 milhões de consumidores brasileiros.
Apesar das expectativas, pode-se viajar quilômetros sem que se veja uma alma viva. Talvez ainda seja cedo para esperar um vibrante tráfego de caminhões carregados de produtos apenas um ano após a inauguração. Em média, a Interoceânica tem um fluxo de 160 veículos de carga por mês - a maior parte levando madeira para o Pacífico - e cerca de 640 veículos de passageiros, segundo disseram funcionários do pedágio no quilômetro 73, no pampa peruano.
No posto da alfândega peruana, o funcionário de turno foi ainda mais pessimista com as cifras: disse que, nos últimos três meses, não passaram mais de 300 caminhões em direção ao Peru com mercadorias variadas, como tubulação e maquinaria, além de ferramentas para os garimpeiros do pampa, muitos dos quais exploram ouro sem permissão. Segundo ele, o que mais se transporta para o Brasil é cimento e alguns poucos produtos agrícolas.
A Bolívia, em compensação, vem tirando vantagem econômica da estrada. Uma vez por semana uma caravana de nove carros-tanque parte carregada de gasolina da capital boliviana, La Paz, atravessa o Peru por Juliaca, pega toda a Interoceânica, passa pelo Brasil para logo retornar à Bolívia e fornecer combustível à cidade de Cobija. A enorme volta se justifica pelas péssimas condições das estradas entre os Andes e a selva na Bolívia. Mas, como a gasolina é mais barata na Bolívia do que no Brasil, militares têm de proteger o descarregamento em Cobija, para evitar que o combustível seja contrabandeado de volta para o Brasil.
São três as razões que explicam por que está demorando para decolar a sonhada bonança comercial que se acredita trará a estrada entre os três países. A primeira é que não há acordos para que o cruzamento de fronteira seja mais organizado. Os peruanos reclamam de controles excessivos. Carlos Miguel Rios, administrador da transportadora Civa, uma das que mais transitam na região, conta que, para cruzar a fronteira, tem de apresentar certificado de febre amarela, fazer imigração na fronteira e logo ter outro controle em Rio Branco, além dos registros da alfândega. "O trâmite é muito enrolado. Às vezes, argumentam razões fitossanitárias e a gente não pode passar com a mercadoria. Aqui, o único beneficiado é o narcotráfico, que agora ficou com a estrada expressa", disse o transportador.
A segunda é que, na teoria, fica barato levar a carga do Brasil aos portos peruanos, mas como o veículo que leva a carga costuma retornar vazio, pois este país exporta bem menos, o frete fica caro. O saldo comercial é negativo para o Peru. Em 2011, as empresas brasileiras venderam US$ 2.45 bilhões ao país, enquanto o Peru exportou US$ 1.27 bilhão. Por último, não é fácil para os motoristas guiar os gigantescos caminhões brasileiros pelas estreitas estradas andinas peruanas no trecho que vai para Juliaca, no sul do país, onde algumas curvas são tão estreitas que até os ônibus de passageiros têm dificuldade em passar.
Reporagem especial: A reportagem foi realizada pela Connectas, organização jornalística sem fins lucrativos que privilegia a aliança com profissionais e meios de comunicação e promove a produção, o intercâmbio, a capacitação e a difusão de informação sobre temas para o desenvolvimento das Américas.
Contatos: via Twitter (@ConnectasOrg) ou pela página oficial no Facebook.


Etanol e carro flex: uma inovação que definha


JOSÉ ROBERTO MENDONÇA DE BARROS - O Estado de S.Paulo
Em 2003 foi lançado o primeiro carro com motor flex, que permitiu a utilização de qualquer mistura etanol hidratado/gasolina entre 20% e 100%. O consumidor aceitou logo a ideia e até 2009 construiu-se no País um sistema inovador, que começava no setor automotivo. Entre 2003 e 2005, o motor flex foi bastante aprimorado.
O etanol hidratado tinha competitividade com a gasolina porque o custo de produção da cana-de-açúcar era, na ocasião, o menor do mundo. Além disso, o preço da gasolina subiu entre 2002 até meados de 2006, quando foi mantido praticamente constante desde então.
As vendas de carros flex (como mostra o gráfico abaixo) subiram de forma acentuada, atingindo rapidamente a faixa de 80% ou mais do total de carros produzidos no País. Estima-se que em 2009 a frota destes veículos era da ordem de 9,5 milhões de unidades. O consumo de etanol hidratado, em consequência, se elevou rapidamente de 5 bilhões para mais de 20 bilhões de litros.
Foi preciso muito trabalho de pesquisa no Brasil e de convencimento no exterior para que a Europa e os EUA aceitassem que o etanol de cana era um combustível avançado, isto é, um produto renovável e que, dada sua tecnologia e alta produtividade, contribuía positivamente para a redução do efeito estufa e da poluição.
Levou também algum tempo para que se aceitasse que a produção de cana não implicava elevação dos preços de alimentos, ao contrário do produto americano, feito de milho. Neste caso, a utilização de mais de 90 milhões de toneladas de milho para a produção de etanol certamente produziu, em 2008, uma forte pressão no custo de alimentação.
No corrente ano, a combinação de uma forte seca e o esmagamento de 125 milhões de toneladas de milho para a produção de biocombustível repetiu o impacto sobre os preços dos alimentos.
No caso da cana, a alta produtividade resulta num crescimento de área muito modesto, ante a dimensão do Brasil, de sorte que inexiste qualquer pressão sobre a produção de produtos da cesta básica. O gráfico 1, abaixo reproduzido, mostra como os preços de alimentos reduziram-se sistematicamente nos últimos anos.
Finalmente, também levou muito tempo para que os defensores do meio ambiente acabassem por perceber que a cana é uma gramínea que não convive bem com a região amazônica, não tendo, pois, nenhuma responsabilidade, inclusive indireta, na queima de florestas.
Outras inovações também aconteceram no período de 2003 a 2009: a expansão de projetos de cogeração de energia com a queima de bagaço e o início do desenvolvimento de combustíveis de segunda geração em escala pré-industrial. Da mesma forma, a alcoolquímica começa a ensaiar seus primeiros passos com a chegada de empresas como a Amyris. O sucesso do plástico verde da Braskem levou muitas empresas da área química a se dispor a investir em novos polos industriais ao lado das usinas.
Tudo indicava que se desenvolvia um grande projeto inovador e vencedor.
2009 - 2012. A perda
de competitividade
Com a crise financeira de 2008, a maior parte dos projetos de ampliação de capacidade foi cancelada.
Quatro anos de baixos investimentos e clima adverso reduziram a quantidade da cana. Também concorreu para isso a curva de aprendizado no plantio de novas áreas, onde ainda não existiam variedades mais bem adaptadas. Hoje, o País não é mais o produtor de menor custo, mas o quarto ou quinto da fila.
Com a escassez da cana houve o privilégio na produção de açúcar, que tem mais facilidade para gerar liquidez e rentabilidade, e de álcool anidro, que tem mercado garantido, dada a obrigatoriedade da mistura com a gasolina.
O virtual congelamento do preço da gasolina na bomba tirou a competitividade do hidratado. Dada a escassez de cana, que vai até 2017 na melhor das hipóteses, o que equilibra o mercado é a redução na produção do hidratado, cujos preços se elevam na entressafra, fazendo cair o consumo, como se vê no gráfico 2.
A ausência de investimentos na melhoria do motor a etanol manteve inalterada sua menor eficiência com relação ao motor a gasolina, algo em torno de 30%. Só agora, alguns novos projetos de pesquisa visando a melhora do desempenho dos motores flex estão começando (como os que se iniciam no Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol - CTBE). O novo regime automotivo, recém-divulgado, incorpora pela primeira vez exigências quanto à redução no consumo de combustíveis.
Segundo técnicos do setor, as melhorias de eficiência no motor flex poderiam ter sido de 15 a 20% em uma primeira fase, caso esses projetos tivessem sido iniciados a partir de 2007, de acordo com nota técnica elaborada por Alfred Swarc e Francisco Nigro. A história do etanol teria sido outra se isso tivesse ocorrido.
Finalmente, a politica de preços de combustíveis, aliada ao esgotamento da capacidade de refino, elevou as importações de diesel, gasolina e etanol, desequilibrando o fluxo de caixa da Petrobrás.
Como as novas refinarias só ficarão prontas daqui a três anos, o aumento do consumo terá de ser atendido por mais importações.
Um enorme problema logístico está sendo criado, pois o País não está preparado para distribuir grandes volumes de combustíveis vindos do exterior.
A Petrobrás precisa de uma relevante elevação no preço da gasolina para racionar um pouco a demanda e estimular a produção do etanol, reduzindo suas perdas financeiras.
A lição que fica é que o mundo não para e a competição sempre avança. A manutenção da competitividade depende mais do que tudo de uma dinâmica de avanços contínuos, técnicos e regulatórios, que permitam a manutenção da liderança.
Apenas um esforço mais organizado poderá permitir que uma experiência bem-sucedida não siga definhando e se perca por falta de competitividade.