quinta-feira, 27 de setembro de 2012

O veredicto de Geraldo Alckmin, por Maria Rita Kehl


O governador de SP usa a mesma retórica dos matadores da ditadura

RESUMO Integrante da Comissão da Verdade, a psicanalista Maria Rita Kehl traça paralelo entre a violência de Estado da ditadura (1964-85) e a da PM paulista, que alegou "resistência seguida de morte" após matar nove pessoas no dia 12. A justificativa, típica dos anos de chumbo, foi endossada pelo governador Alckmin.
MARIA RITA KEHL
"Quem não reagiu está vivo", disse o governador de São Paulo ao defender a ação da Rota na chacina que matou nove supostos bandidos numa chácara em Várzea Paulista, na última quarta-feira, dia 12. Em seguida, tentando aparentar firmeza de estadista, garantiu que a ocorrência será rigorosamente apurada.
Eu me pergunto se é possível confiar na lisura do inquérito, quando o próprio governador já se apressou em legitimar o morticínio praticado pela PM que responde ao comando dele.
"Resistência seguida de morte": assim agentes das Polícias Militares, integrantes do Exército e diversos matadores free-lancer justificavam as execuções de supostos inimigos públicos que militavam pela volta da democracia durante a ditadura civil militar, a qual oprimiu a sociedade e tornou o país mais violento, menos civilizado e muito mais injusto entre 1964 e 1985.
Suprimida a liberdade de imprensa, criminalizadas quaisquer manifestações públicas de protesto, o Estado militarizado teve carta branca para prender sem justificativa, torturar e matar cerca de 400 estudantes, trabalhadores e militantes políticos (dos quais 141 permanecem até hoje desaparecidos e outros 44 nunca tiveram seus corpos devolvidos às famílias -tema atual de investigação pela Comissão Nacional da Verdade).
Esse número, por si só alarmante, não inclui os massacres de milhares de camponeses e índios, em regiões isoladas e cuja conta ainda não conseguimos fechar. Mais cínicas do que as cenas armadas para aparentar trocas de tiros entre policiais e militantes cujos corpos eram entregues às famílias totalmente desfigurados, foram os laudos que atestavam os inúmeros falsos "suicídios".
HERZOG A impunidade dos matadores era tão garantida que eles não se preocupavam em justificar as marcas de tiros pelas costas, as pancadas na cabeça e os hematomas em várias partes do corpo de prisioneiros "suicidados" sob sua guarda. Assim como não hesitaram em atestar o suicídio por enforcamento com "suspensão incompleta", na expressão do legista Harry Shibata, em depoimento à Comissão da Verdade, do jornalista Vladimir Herzog numa cela do DOI-Codi, em São Paulo.
Quando o Estado, que deveria proteger a sociedade a partir de suas atribuições constitucionais, investe-se do direito de mentir para encobrir seus próprios crimes, ninguém mais está seguro. Engana-se a parcela das pessoas de bem que imaginam que a suposta "mão de ferro" do governador de São Paulo seja o melhor recurso para proteger a população trabalhadora.
Quando o Estado mente, a população já não sabe mais a quem recorrer. A falta de transparência das instituições democráticas -qualificação que deveria valer para todas as polícias, mesmo que no Brasil ainda permaneçam como polícias militares- compromete a segurança de todos os cidadãos.
Vejamos o caso da última chacina cometida pela PM paulista, cujos responsáveis o governador de São Paulo se apressou em defender. Não é preciso comentar a bestialidade da prática, já corriqueira no Brasil, de invariavelmente só atirar para matar -frequentemente com mais de um tiro.
Além disso, a justificativa apresentada pelo governador tem pelo menos uma óbvia exceção. Um dos mortos foi o suposto estuprador de uma menor de idade, que acabava de ser julgado pelo "tribunal do crime" do PCC na chácara de Várzea Paulista. Ora, não faz sentido imaginar que os bandidos tivessem se esquecido de desarmar o réu Maciel Santana da Silva, que foi assassinado junto com os outros supostos resistentes.
Aliás, o "tribunal do crime" acabara de inocentar o acusado: o senso de justiça da bandidagem nesse caso está acima do da PM e do próprio governo do Estado. Maciel Santana morreu desarmado. E apesar da ausência total de marcas de tiros nos carros da PM, assim como de mortos e feridos do outro lado, o governador não se vexa de utilizar a mesma retórica covarde dos matadores da ditadura -"resistência seguida de morte", em versão atualizada: "Quem não reagiu está vivo".
CAMORRA Ora, do ponto de vista do cidadão desprotegido, qual a diferença entre a lógica do tráfico, do PCC e da política de Segurança Pública do governo do Estado de São Paulo? Sabemos que, depois da onda de assassinatos de policiais a mando do PCC, em maio de 2006, 1.684 jovens foram executados na rua pela polícia, entre chacinas não justificadas e casos de "resistência seguida de morte", numa ação de vendeta que não faria vergonha à Camorra. Muitos corpos não foram até hoje entregues às famílias e jazem insepultos por aí, tal como aconteceu com jovens militantes de direitos humanos assassinados e desaparecidos no período militar.
Resistência seguida de morte, não: tortura seguida de ocultação do cadáver. O grupo das Mães de Maio, que há seis anos luta para saber o paradeiro de seus filhos, não tem com quem contar para se proteger das ameaças da própria polícia que deveria ajudá-las a investigar supostos abusos cometidos por uma suposta minoria de maus policiais. No total, a polícia matou 495 pessoas em 2006.
Desde janeiro deste ano, escreveu Rogério Gentile na Folhade 13/9, a PM da capital matou 170 pessoas, número 33% maior do que os assassinatos da mesma ordem em 2011. O crime organizado, por sua vez, executou 68 policiais. Quem está seguro nessa guerra onde as duas partes agem fora da lei?
ASSASSINATOS A pesquisadora norte-americana Kathry Sikkink revelou que o Brasil foi o único país da América Latina em que o número de assassinatos cometidos pelas polícias militares aumentou, em vez de diminuir, depois do fim da ditadura civil-militar.
Mudou o perfil socioeconômico dos mortos, torturados e desaparecidos; diminuiu o poder das famílias em mobilizar autoridades para conseguir justiça. Mas a mortandade continua, e a sociedade brasileira descrê da democracia.
Hoje os supostos maus policiais talvez sejam minoria, e não seria difícil apurar suas responsabilidades se houvesse vontade política do governo. No caso do terrorismo de Estado praticado no período investigado pela Comissão da Verdade, mais importante do que revelar os já conhecidos nomes de agentes policiais que se entregaram à barbárie de torturar e assassinar prisioneiros indefesos, é fundamental que se consiga nomear toda a cadeia de mando acima deles.
Se a tortura aos oponentes da ditadura foi acobertada, quando não consentida ou ordenada por autoridades do governo, o que pensar das chacinas cometidas em plena democracia, quando governadores empenham sua autoridade para justificar assassinatos cometidos pela polícia sob seu comando?
Como confiar na seriedade da atual investigação, conduzida depois do veredicto do governador Alckmin, desde logo favorável à ação da polícia? Qual é a lisura que se pode esperar das investigações de graves violações de Direitos Humanos cometidas hoje por agentes do Estado, quando a eliminação sumária de supostos criminosos pelas PMs segue os mesmos procedimentos e goza da mesma impunidade das chacinas cometidas por quadrilhas de traficantes?
Não há grande diferença entre a crueldade praticada pelo tráfico contra seis meninos inocentes, no último domingo, no Rio, e a execução de nove homens na quarta, em São Paulo. O inquietante paralelismo entre as ações da polícia e dos bandidos põe a nu o desamparo de toda a população civil diante da violência que tanto pode vir dos bandidos quanto da polícia.
"Chame o ladrão", cantava o samba que Chico Buarque compôs sob o pseudônimo de Julinho da Adelaide. Hoje "os homens" não invadem mais as casas de cantores, professores e advogados, mas continuam a arrastar moradores "suspeitos" das favelas e das periferias para fora dos barracos ou a executar garotos reunidos para fumar um baseado nas esquinas das periferias das grandes cidades.
PELA CULATRA Do ponto de vista da segurança pública, este tiro sai pela culatra. "Combater a violência com mais violência é como tentar emagrecer comendo açúcar", teria dito o grande psicanalista Hélio Pellegrino, morto em 1987.
E o que é mais grave: hoje, como antes, o Estado deixa de apurar tais crimes e, para evitar aborrecimentos, mente para a população. O que parece ser decidido em nome da segurança de todos produz o efeito contrário. O Estado, ao mentir, coloca-se acima do direito republicano à informação -portanto, contra os interesses da sociedade que pretende governar.
O Estado, ao mentir, perde legitimidade -quem acredita nas "rigorosas apurações" do governador de São Paulo? Quem já viu algum resultado confiável de uma delas? Pensem no abuso da violência policial durante a ação de despejo dos moradores do Pinheirinho... O Estado mente -e desampara os cidadãos, tornando a vida social mais insegura ao desmoralizar a lei. A quem recorrer, então?
A lei é simbólica e deve valer para todos, mas o papel das autoridades deveria ser o de sustentar, com sua transparência, a validade da lei. O Estado que pratica vendetas como uma Camorra destrói as condições de sua própria autoridade, que em consequência disso passará a depender de mais e mais violência para se sustentar.
RÉPLICA
Psicanálise de embromação
Para Maria Rita Kehl, senso de justiça de bandidos está acima do da PMMARCIO AITH
RESUMO
Em resposta ao texto de Maria Rita Kehl, publicado na "Ilustríssima" de 16/9, o subsecretário de Comunicação do governo do Estado de SP, Marcio Aith, argumenta que a psicanalista "não conhece detalhes da ação da polícia" e que a letalidade da PM paulista é menor do que a de outros Estados do Brasil.
Quem não consegue distinguir a democracia da ditadura acaba escolhendo a ditadura como se fosse democracia e a democracia como se fosse ditadura.
Só assim se entende que a psicanalista Maria Rita Kehl associe o democrata Geraldo Alckmin, eleito com 11,5 milhões de votos, a um regime de força, como o fez em seu artigo publicado na última "Ilustríssima" ("O veredicto de Geraldo Alckmin"), com chamada de capa neste jornal.
Kehl comparou a ação da Polícia Militar de São Paulo contra um grupo de bandidos fortemente armados, em uma chácara do município de Várzea Paulista, ao massacre de prisioneiros políticos indefesos da ditadura militar.
Decretou que o senso de justiça da bandidagem, no caso de Várzea Paulista, estaria acima daqueles da PM e do próprio governo do Estado. Isto porque um tribunal do crime, que na chácara se instalara, "absolvera" de forma generosa um dos presentes -acusado de estupro, depois morto na operação policial.
Por fim, Maria Rita classificou como sendo retórica ditatorial uma declaração do governador Geraldo Alckmin ("Quem não reagiu está vivo") e despejou sobre os leitores números que pudessem dar verossimilhança a seu diagnóstico.
O texto é delirante, perverso e desequilibrado. A psicanalista demonstrou desconhecer segurança pública; desprezar fatos e estatísticas; e menosprezar a memória e o trabalho de várias pessoas que, embora não partilhem de sua cartilha, contribuíram para a redemocratização no país.
O Governo do Estado de São Paulo não tolera abuso oficial.
Desde 2000, 3.999 policiais militares e 1.795 policiais civis foram demitidos por má conduta no Estado (dados até 18 setembro deste ano). Só na atual gestão, foram 392 policiais militares e 252 policiais civis.
Ao mesmo tempo, e sem qualquer contradição entre os dois esforços, a Polícia Militar impediu, e vai continuar a fazê-lo, que o crime se organize e realize julgamentos ao arrepio do Estado democrático de Direito.
Aqui, o crime não instala tribunal; aqui, o crime não ocupará funções privativas do Estado; aqui, o crime não vai dialogar com os Poderes constituídos.
A declaração do governador que tanto ouriçou a psicanalista Maria Rita foi feita dentro de um contexto de apuração e controle. Ele não se omitiu em relação à necessidade de investigar o que ocorreu.
Ao contrário. Disse ele, na mesma ocasião: "Olha, quando há resistência seguida de morte: investigação. A própria Polícia Militar investiga e o DHPP, que é o Departamento de Homicídios, também investiga A investigação pela Corregedoria já era de praxe. O que é que nós colocamos a mais? O DHPP. Ele faz a investigação em todos esses casos, ele conduz a investigação."
E o que isto significa? Que o Estado de São Paulo foi o primeiro a colocar um corpo de elite da Polícia Civil -no caso, o DHPP- para apurar resistências seguidas de morte. Nas demais unidades da Federação (algumas das quais querem adotar o modelo paulista), as resistências não são apuradas, muito menos comandadas, por departamentos qualificados.
MENTE FANTASIOSA
A medida fortaleceu o eficaz sistema de freios e contrapesos, típico dos regimes democráticos. Apenas na mente fantasiosa de Maria Rita Kehl os experientes delegados do Departamento de Homicídios e de Proteção à Pessoa, da Polícia Civil, deixarão de cumprir sua obrigação para encobrir eventuais desvios de conduta de policiais militares.
A retórica inflamada e irresponsável desta senhora não fará o governo mudar o rumo na segurança pública. Rumo este, aliás, iniciado na década de 90, com a criação da Ouvidoria da Polícia, com a instituição da disciplina de direitos humanos no curso das polícias e com o combate à letalidade. E que vem sendo seguido pelo atual secretário, Antonio Ferreira Pinto, notoriamente comprometido com o rigor e com a legalidade.
Segundo os dados do último anuário do Fórum Brasileiro de Segurança Pública do Ministério da Justiça (2011), a letalidade da polícia paulista é menor do que a de outros Estados do Brasil, tanto em números absolutos como nas taxas por 100 mil habitantes.
Em 2010, morreram 510 pessoas em confronto com a polícia paulista, uma taxa de 1,2 mortos por 100 mil habitantes. No Rio de Janeiro, que tem pouco mais de um terço da população de São Paulo, foram mortas 855 pessoas em confronto policial (taxa de 5,3 por 100 mil habitantes). Na Bahia, a taxa é de 2,2 por 100 mil. Como se vê, a fantasia baseada em distorções ideológicas não se sustenta quando confrontada com dados.
Maria Rita Kehl retrata a Polícia Militar de São Paulo como assassina contumaz de jovens. Pois São Paulo foi o Estado brasileiro que mais reduziu a taxa de homicídio de crianças e adolescentes (até 19 anos) por 100 mil habitantes entre 2000 e 2010, segundo o Mapa da Violência do Instituto Sangari: queda de 76,1%, de 22,3 para 5,4.
Também em números absolutos, o Estado de São Paulo teve a maior queda nesse índice entre 2000 e 2010. A redução foi de 2.991 homicídios de jovens e adolescentes, registrados em 2000, para 651 em 2010.
E o que aconteceu no Brasil no período? O número absoluto de homicídios de crianças e adolescentes cresceu 6,8%, entre 2000 e 2010 (de 8.132 para 8.686 casos) e a taxa por 100 mil habitantes subiu de 11,9, em 2000, para 13,8 em 2010.
DISTORÇÕES
Mas números não bastam para esta senhora. A distorção moral e ética de seu pensamento é insanável. Para Maria Rita, uma luta justa deveria contar sempre com mortos também entre policiais militares. Para ela, a profissionalização da Polícia Militar, treinada também para evitar baixas, é uma disfunção, um defeito, uma evidência de covardia.
Entende-se: entre a polícia e os bandidos, parece que ela já fez a sua escolha. Maria Rita acha que uma luta justa entre Polícia e bandido tem de terminar em empate -quiçá com a vitória da bandidagem, que ela deve confundir, em sua leitura perturbada da realidade, com uma variante da luta por justiça.
A Polícia Militar salva vidas, Maria Rita. É treinada para proteger a população do Estado. Atendeu a mais de 43 milhões de chamados em 2011. Realizou 310 mil resgates e remoções de feridos. Efetuou 128 mil prisões. A PM de São Paulo está entre as melhores do país.
Por isso, o Estado de São Paulo, segundo o Mapa da Violência, está em penúltimo lugar no ranking dos homicídios por 100 mil habitantes. A capital paulista é aquela em que, hoje, menos se mata no país, segundo o mesmo estudo.
Estivesse ela interessada em debater de fato o problema da Segurança Pública, Maria Rita tentaria entender a relação entre drogas e o crime organizado, como aquele instalado na chácara de Várzea Paulista. E por que o Brasil é o primeiro mercado consumidor mundial de crack e o segundo de cocaína? Nunca é suficiente repetir que o Estado de São Paulo produz laranja, cana, soja. Mas não produz folha de coca. Como ela entra no país? E as armas?
Mas estas não são as preocupações de Maria Rita. Ela quer confundir. Por isso até misturou o caso de Várzea Paulista à desocupação judicial da área conhecida como Pinheirinho, onde não houve vítima fatal e criou-se, bem ao seu estilo, um episódio mentiroso para fazer luta partidária.
A obrigação da autoridade pública é enfrentar o problema, seja ele a bandidagem comum ou a bandidagem da polícia. Se houve abusos, eles serão punidos após a investigação, como sempre o foram, e não antes.
Maria Rita Kehl, aliás, tornou-se partidária do julgamento extrajudicial. Ela não conhece detalhes da ação da polícia, mas já expediu a sua sentença condenatória, mimetizando, ela sim, os métodos das tiranias. Com uma diferença. As ditaduras criavam simulacros de julgamento. Precisavam convencer a si mesmas de sua farsa. Maria Rita não precisa ser nem parecer justa.
Ela deveria se envergonhar -mas não se conte com isso, pois está cumprindo uma agenda partidária -como, aliás, já havia feito nas eleições de 2010. Desmoralizar a polícia de São Paulo é parte de um projeto de poder.
O Governo do Estado de São Paulo não tem compromisso com o crime.

Violência policial, por Hélio Schwartsman


Com algum atraso meto a colher na discussão sobre a violência policial em São Paulo. De modo geral, concordo com Maria Rita Kehl, que, num bom artigo para a Ilustríssima, desancou o governador Geraldo Alckmin (PSDB), que justifica as mortes provocadas por seus subordinados com frases como "quem não reagiu está vivo".
Não se trata aqui de demonizar as chamadas forças da ordem, como fazem inadvertidamente alguns representantes da esquerda. Já escrevi neste espaço que a criação da polícia foi uma das melhores coisas que aconteceu na história da humanidade. A evidência para tal afirmação vem de Steven Pinker, que, em "The Better Angels of Our Nature" (os melhores anjos de nossa natureza), mostra que o surgimento de Estados fortes na Europa do século 16, com suas milícias e o monopólio do uso da força, fez com que as taxas de homicídio, que eram assustadoramente altas, ficassem de 10 a 50 vezes menores. O advento da polícia foi, assim, um dos fatores que, isoladamente, mais contribuiu para preservar vidas humanas.
Essa, contudo, é apenas uma parte da história. Depois que o Estado está instalado e operante, com seu aparato policial e todas as demais engrenagens, ele tem a irresistível tendência de tornar-se uma força opressora. Nos casos mais extremos, torna-se o principal polo de violência, como se verifica nas ditaduras. Não se trata, é claro, de voltar atrás. Em termos líquidos, o benefício de contarmos com uma estrutura de contenção de conflitos entre as pessoas em geral supera o malefício dos abusos perpetrados por forças de segurança. Só que não estamos aqui diante de uma disjuntiva exclusiva, isto é, de um ou... ou do qual só podemos escolher um. Nós podemos perfeitamente ficar com as vantagens de ter um Estado e cuidar para que ele não incorra no arbítrio. A isso se chama civilização.
E eu receio que os governantes que comandam o aparato de segurança paulista não estejam se esforçando como deveriam para civilizar os policiais e a própria sociedade.
Acredito que meu amigo Marcio Aith, subsecretário de Comunicação do governo, no artigo em que responde a Kehl, presta uma valiosa contribuição ao informar que existem no Brasil polícias mais violentas do que a paulista. Estou certo de que o mesmo vale para as milícias que atuam na Síria. Não creio, contudo, que devamos nos comparar com o pior, mas sim apresentar metas em princípio alcançáveis.
Reportagem da Folha publicada em julho mostrou que, em cinco anos, a PM paulista matou quase nove vezes mais do que todas as polícias norte-americanas. De 2006 a 2010, 2.262 pessoas foram mortas após supostos confrontos com policiais militares. Nos EUA, de acordo com o FBI, o total de óbitos nos chamados homicídios justificados foi de 1.963. Ajustando os números para a população, temos que a taxa de mortos por 100 mil habitantes, foi de 5,51 em São Paulo, contra 0,63 nos EUA. Isso significa que nossa polícia é 8,75 vezes mais letal que a norte-americana.
Vale observar que os EUA são a mais violenta das nações industrializadas e que lá é espantosamente grande o número de pessoas que andam armadas, o que em tese faz com que os policiais ali sejam mais apreensivos.
Outro dado que chama a atenção é que, no quinquênio analisado, a PM paulista matou 34% mais do que feriu. Dado que é em princípio mais difícil atirar para matar do que para ferir, é razoável supor que há algo de errado no treinamento que os policiais recebem.
Seria injusto afirmar que o governo paulista não fez absolutamente nada para reverter essa situação. Porém, está mais do que claro que, o que quer que tenha feito, ainda é insuficiente. Os números anuais de mortos, afinal, têm se mantido mais ou menos constantes em torno dos 320 desde 2008.
Se as autoridades estivessem verdadeiramente empenhadas em seguir a letra e o espírito da lei, que veda qualquer tipo de execução extrajudicial e determina que os policiais façam tudo o que é possível para preservar a vida e a integridade física dos cidadãos, incluindo aqueles que são suspeitos de crimes, o governador não poderia descansar até que as cifras baixassem significativamente.
O que vemos, porém, é que Alckmin não apenas não colocou o respeito aos direitos humanos no alto de sua agenda como ainda, através de declarações estabanadas, contribui para a cultura de violência e impunidade que reina nas fileiras policiais.
O caso assume proporções ainda mais inquietantes quando se considera que, se há algo que não falta na literatura especializada, são estudos e propostas de rotinas e treinamento para reduzir a brutalidade policial.
Em "Blink", um livrinho estimulante sobre como as pessoas agem no piloto automático, Malcolm Gladwell revela que vários departamentos de polícia dos EUA baniram as perseguições motorizadas. Policiais não estão mais autorizados a dirigir em alta velocidade atrás de suspeitos. E a razão para isso, além do risco de acidentes, é que, quando a adrenalina do agente vai às alturas e seus batimentos cardíacos ultrapassam os 175 por minuto, aumenta enormemente a probabilidade de ele agir de forma intempestiva. Nessas condições, uma carteira ou um celular na mão do suspeito são facilmente confundidos com uma arma e o desfecho tende a ser trágico. Faz bem mais sentido lançar um alerta para que outras unidades abordem o veículo duvidoso.
De modo análogo, algumas policiais, em especial as da Austrália, têm apostado em patrulhas conduzidas por um único policial, em oposição às duplas. Aqui, além do óbvio ganho em efetivos, temos uma redução na propensão do agente a reagir impensadamente. Somos mais cautelosos quando estamos sozinhos do que quando fazemos parte de um grupo. É claro que há situações de maior periculosidade em que não dá para colocar policiais sozinhos, mas há muitas outras em que o risco para o agente é relativamente pequeno.
Nem tudo o que é feito lá fora pode ser transplantado para o Brasil e é preciso ainda considerar que cada caso é único. Mesmo polícias bem preparadas e pouco violentas por vezes cometem erros graves, como ocorreu com Jean Charles de Menezes, em 2005 no Reino Unido, e, mais recentemente, com Roberto Laudisio Curti, na Austrália. Estamos lidando com seres humanos que são inapelavelmente falíveis.
Mas, se os policiais que agem a quente e sempre sob o temor de perder a própria vida merecem uma consideração especial nas situações de confronto, o mesmo não se pode afirmar daqueles que os comandam em gabinetes confortáveis. Os tucanos estão no poder em São Paulo já há duas décadas. Nesse período, observamos a uma importante redução no total de homicídios. Em 1999, registrávamos 35 assassinatos por 100 mil habitantes. Hoje, essa taxa está ligeiramente acima dos 10 por 100 mil. É um avanço civilizatório digno de elogios e comemoração. Mais uma razão para cobrar das autoridades que algo semelhante ocorra nas ações da própria polícia.
Hélio Schwartsman
Hélio Schwartsman é bacharel em filosofia, publicou "Aquilae Titicans - O Segredo de Avicena - Uma Aventura no Afeganistão" em 2001. Escreve na versão impressa da Página A2 às terças, quartas, sextas, sábados e domingos e às quintas no site.

São Paulo mais brilhante


Neste final de semana, São Paulo ganha a reforma da Praça Roosevelt. É uma obra mais importante do que se chama: a cidade inteira vai ter mais brilho. Ali se vê a vitalidade e a resistência criativa dos paulistanos, num movimento que não espera por governo.
É mais uma daquelas imagens que contrastam com a mediocridade da política local, tão visível nestas eleições.
Aquela praça, além de feia, não tinha função. Não era praça; logo virou símbolo de degradação e violência.
Mas vieram os grupos teatrais que, apanhando de todos os lados, ocuparam o entorno, com os Parlapatões e os Satyros. Empresários da noite mudaram a paisagem do chamado Baixo Augusta, trazendo caras novas e cultura.
O Cultura Artística, em fase de reconstrução, promete fazer da praça uma extensão dos seus projetos --assim como os grupos teatrais que fazem dali um palco a céu aberto. Surge, na frente da praça, uma escola pública de teatro --a poucos metros dali, um gigantesco centro cultural (Pivô) dedicado à arte contemporânea.
Por isso, o que está inaugurando não é uma praça. Mas um olhar para a resistência de uma cidade.
Gilberto Dimenstein
Gilberto Dimenstein ganhou os principais prêmios destinados a jornalistas e escritores. Integra uma incubadora de projetos de Harvard (Advanced Leadership Initiative). Desenvolve o Catraca Livre, eleito o melhor blog de cidadania em língua portuguesa pela Deutsche Welle. É morador da Vila Madalena.