segunda-feira, 9 de julho de 2012

O longo caminho até a 'economia verde'


Washington Novaes
Não surpreende que na Rio+20 se tenha decidido deixar para 2014 a fixação de metas para o desenvolvimento sustentável, a vigorarem a partir de 2015 - de modo parecido com o que se fez na Convenção do Clima, deixando para 2015 a definição de compromissos de redução de emissões poluentes para cada país, mas a serem cumpridos só a partir de 2020. Como o tema inclui também a chamada "economia verde", igualmente discutida no Rio de Janeiro, as definições são dificílimas, envolvem a produção e os seus caminhos em cada país e no mundo. E aí o carro pega.
Quem leu na última segunda-feira o relato do correspondente deste jornal em Genebra, Jamil Chade, sobre as mudanças no panorama mundial, com os organismos econômicos questionando "a fronteira entre nações ricas e emergentes", tem ideia da dificuldade das transformações propostas para cada país, considerados o seu nível de riqueza, tipos de exportação e importação, obrigações equivalentes. Quem é Primeiro Mundo hoje? E quem se inclui no campo da pobreza, entre as 194 nações, se um terço da humanidade ainda cozinha em fogões a lenha (Ladislau Dowbor, Eco 21, maio de 2012)? Se já se produzem no mundo 2 bilhões de toneladas anuais de grãos, suficientes para prover cada família de quatro pessoas com 800 gramas diários? Se o PIB mundial de US$ 63 trilhões anuais, distribuído igualitariamente, desse a cada uma dessas famílias US$ 5.400 mensais? Mas como vencer a resistência e mudar critérios para 737 grupos corporativos, 75% dos quais de intermediação financeira, que "controlam 80% do sistema corporativo mundial"?
A "economia verde", disse o secretário-geral da reunião, Sha Zukang, não trata apenas de "baixo carbono", tem de ser "discutida no contexto do desenvolvimento sustentável e da erradicação da pobreza". Mas a Cúpula dos Povos não gostou: a proposta não criticava o capitalismo, as "suas formas de dominação"; seria apenas um "disfarce para mais negócios e exploração dos ecossistemas", com a ajuda de "tecnologias transgênicas e da biologia sintética" (Agência Brasil, 14/5). Ao longo dos debates, muitas críticas se centraram nas políticas de países que subsidiam fertilizantes inorgânicos, combustíveis fósseis e energias insustentáveis; contribuem para a perda da biodiversidade, com subsídios a certas culturas; e para a redução de empregos no campo, com mecanização acelerada. As operações na agricultura - acentuou-se - contribuem, só elas (fora mudanças no uso da terra e desmatamentos), com 13% das emissões globais, fora as de óxido nitroso (58%) e de metano (47%).
Quem mudará ou quer mudar esse panorama, restaurar a fertilidade do solo com insumos naturais e nutrientes "sustentáveis"? Quem será capaz de "integrar lavoura, floresta e pecuária"? Reduzir insumos químicos e herbicidas? Implantar técnicas de manejo biológico? Reduzir desperdícios na área de alimentos (1,3 bilhão de toneladas anuais, segundo a ONU)? Transferir gratuitamente tecnologias para países mais carentes, de modo a poderem caminhar nessas direções? Determinar que compras governamentais (10% do PIB) tornem prioritários esses caminhos, inclusive na exportação? E como chegar a tudo sem impor penalidades ou barreiras comerciais?
Documentos da ONU (Boletim do Legislativo n.º 2/12, Senado Federal) chegam a dizer que a transformação resultará em "melhoria do bem-estar humano e da isonomia social", e ainda com "significante redução de riscos ambientais e de escassez ecológica". Por aí se chegaria ao "bem-estar intertemporal das futuras gerações", à eliminação de "efeitos da degradação ambiental na oferta agregada"; também a um processo que conduzirá a "uma nova estratégia" e aos financiamentos globais para a "economia verde". Mas - frisam - não podem ser criadas "barreiras ambientais". E será preciso reformar o "regime global do direito de propriedade". Tudo se completará com incentivos para a "economia verde" no valor de 2% do PIB mundial, ou US$ 1,3 trilhão por ano. Por esses caminhos se conseguirá - dizem os documentos - um ganho de 60% na eficiência energética (prédios, indústria, transporte). Entrará na economia o pagamento por serviços ambientais.
A simples enumeração dos objetivos e dos caminhos mostra o quanto é complexa, controvertida, delicada a questão. Mesmo sem entrar em questões decorrentes dessas estratégias. Como, por exemplo, saber onde atuar e de quem cobrar os custos. Na exportação de commodities de países "em desenvolvimento" para países industrializados, por exemplo, quem paga: quem exporta ou quem consome? É discussão semelhante à que ainda não tem solução no âmbito da Convenção do Clima, quando se trata de saber se a redução de emissões cabe aos países que exportam produtos industriais que implicam essas emissões (como os chineses) ou aos países que os importam (como os Estados Unidos, a Alemanha e outros). É o mesmo caso da taxação sobre emissões de empresas aéreas ou de navegação marítima (5% das emissões totais): onde fazê-lo, nos países de origem das viagens ou de destino? E os países no meio do caminho?
E quando se pensa em cobrar por serviços naturais - como na agricultura, por exemplo? Há estudos que mostram um valor de trilhões de dólares anuais para serviços prestados gratuitamente pela natureza - fertilidade do solo, regulação do clima e do regime hidrológico, etc. Vão ser incluídos nos preços de exportação? E nos internos? Países em desenvolvimento (inclusive o Brasil) temem que questões como essa acabem resultando na imposição de barreiras comerciais. Ou em restrições à soberania no uso de recursos naturais.
A tese da "economia verde" é atraente. Mas seus caminhos estão povoados de obstáculos de natureza variada. Mesmo em 2014 não será fácil avançar. As realidades de um mundo diversificado - e em crise - continuarão muito fortes.
* JORNALISTA E-MAIL: WLRNOVAES@UOL.COM.BR

Ilusão temporal


Fernando Guarnieri e Lara Mesquita - O Estado de S.Paulo

Serra amava Maluf que amava Haddad que amava Erundina que não amava ninguém. Esse tipo de "quadrilha", no sentido da metáfora de Drummond, surge sempre em junho, como as quadrilhas reais das festas de São João, em ano eleitoral. Junho é o mês em que são finalizados os acordos em torno das coligações eleitorais. Do ponto de vista normativo, os partidos deveriam se coligar com aqueles com os quais tenham maior identidade ideológica. Mas na prática a coisa não é bem assim. Existem casos em que partidos com posições opostas no espectro ideológico acabam por se unir, como aconteceu este ano em São Paulo, com o acordo do PT com o PP, seu adversário histórico na cidade.
O que ditaria o ritmo da dança das coligações seria o horário gratuito de propaganda eleitoral na TV e no rádio. Este criaria incentivos para a formação de alianças amplas, o que significa mais exposição do candidato, mas também a possibilidade de maior incoerência ideológica. O horário gratuito é uma fórmula adotada pelos países para tornar a disputa eleitoral mais equilibrada. Ao controlar o tempo à disposição dos partidos para expor seus candidatos e programas o Estado estaria evitando a influência de fatores externos à competição, como o "poder econômico". É assim no Brasil, Argentina, Chile, Reino Unido, França, Alemanha, Austrália, Rússia e em inúmeros outros países.
Em todos, o tempo de TV ou é distribuído igualmente ou depende da força dos partidos em eleições anteriores. No Brasil o critério tem como base a bancada de deputados federais eleita na eleição imediatamente anterior à contenda. Isso vale para todas as disputas, de presidente a vereador, independentemente de o partido ter ou não representação nos Estados e municípios. É um esforço da legislação brasileira de fortalecer os partidos nacionalmente. No entanto, essa intenção acaba criando distorções. Partidos sem expressão local em termos de voto acabam por ter grande influência na eleição pelo fato de ter mais tempo no horário gratuito. O PMDB de Chalita, que elegeu apenas um deputado federal no Estado de São Paulo, é, individualmente, o detentor do segundo maior tempo de propaganda no rádio e TV.
Será essa característica do horário gratuito brasileiro a responsável pela convivência no mesmo ninho de aves de tão diferentes plumagens e colorações ideológicas? Antes de responder, é preciso fazer uma ressalva.
Que as alianças eleitorais não se detêm no mesmo campo ideológico é um fato, mas elas são menos promíscuas do que parecem. O casamento entre PT e PP, por exemplo, já é antigo no plano federal. Desde 2003 o PP faz parte da base de sustentação do governo petista, sendo um dos partidos mais disciplinados da base. Seria muito mais raro, e mais incoerente, encontrarmos o PT coligado com o PSDB ou o DEM.
Voltemos ao impacto do horário gratuito na coerência ideológica das coligações. Pela legislação apenas municípios com emissoras de televisão tem obrigação de transmitir o horário gratuito. No caso da Região Metropolitana de São Paulo, por exemplo, só a capital, Guarulhos e Mogi das Cruzes tiveram acesso ao horário na TV em 2008.
Quando comparamos municípios da Região Metropolitana em que há propaganda eleitoral na TV com municípios vizinhos onde ela não está presente, verificamos que não é o tempo de TV o responsável pela configuração que tomam as coligações eleitorais. Estas são, nos municípios com horário gratuito, muito parecidas com as coligações em locais que não contam com esse recurso. Se não é o tempo de TV, o que as explica? Tudo indica que em São Paulo as coligações reproduzem as estratégias nacionais dos partidos. Em quase todos os municípios da Região Metropolitana de São Paulo dois blocos se enfrentam. Um se forma em torno do PT e outro do PSDB. Nesse sentido, temos em nível local uma reprodução da disputa nacional.
O tempo de TV é importante para vender o peixe do candidato. No caso paulistano, o tempo de TV ajudará a tornar conhecido Fernando Haddad, quadro antigo do partido, mas ainda desconhecido de grande parcela do eleitorado. Quanto mais tempo, mais exposição para Haddad. Entretanto, a necessidade de tornar Haddad mais conhecido não é o único motivo para a al iança. Ela pode significar um aceno aos eleitores mais à direita. Prova disso é o assédio que o PT fez ao recém-lançado PSD, do prefeito Gilberto Kassab, mesmo sem saber se o partido contaria com tempo no horário gratuito, uma vez que ele não disputou a última eleição.
Vimos a mesma coisa nas eleições presidenciais quando o PSDB teve que se aliar ao PFL para vencer em 1994 e o PT teve que se aliar ao PL para vencer em 2002. Não foi só o tempo de TV que contou. Se o eleitor mais à esquerda conseguir assimilar a imagem incômoda de Lula, Maluf e Haddad confraternizando, essa estratégia pode dar certo.
FERNANDO GUARNIERI É DOUTOR EM CIÊNCIA POLÍTICA PELA USP, PESQUISADOR DO CENTRO DE ESTUDOS DA METRÓPOLE (CEM/CEBRAP)
LARA MESQUITA É DOUTORANDA EM CIÊNCIA POLÍTICA NO IESP/UERJ, PESQUISADORA DO CEM/CEBRAP

rendição ao realismo


Renato Lessa - O Estado de S.Paulo
O lendário deputado norte-americano Tip O'Neill, presidente da Casa dos Representantes - a Câmara de Deputados dos EUA - de 1977 a 1987, certa feita pontificou que "toda política é local". Democrata da velha e boa cepa rooseveltiana, hoje, para os padrões da política praticada ao norte do Rio Grande, O'Neill seria considerado um esquerdista ferrenho. Sua frase célebre admite distintas interpretações. Em comentário a uma biografia recente de O'Neill, o ex-governador de Nova York Mario Cuomo definiu a frase "all politics is local" como um motto do velho prócer democrata, falecido em 1994. A frase seria portadora da ideia forte de que o exercício da representação política exige vínculo com os representados e escuta para suas expectativas e apreensões. Em outros termos, o sistema representativo, fundado na necessária distinção entre representantes e representados, só faz sentido se houver vínculos entre ambos, não limitados aos jogos de captura de sufrágio.
Não é, contudo, essa a única maneira possível de entender a sentença de O'Neill. Em registro um tanto cínico, localismo pode significar tão somente precipitação e dissolução da política na pequena guerrilha, na esperteza da pequena área, na adoção de uma subespécie de maquiavelismo de fancaria. Precipitação que acaba por implicar uma continuada ressignificação da política, pela qual a lógica de curto prazo e o apetite infrene apresentam-se como devoradoras de patrimônios políticos e simbólicos duramente construídos. Localismo, nessa chave, não indica apenas escala de intervenção. Tomado em termos geográficos, o localismo é inevitável e não constitui, em si mesmo, um problema. Afinal, há problemas e conflitos que são locais.
Há, contudo, outra dimensão aqui envolvida, que pode ou não coincidir com o localismo geográfico. Trata-se da prática de uma cultura política fundada em um ativismo personalizado, pela qual voluntarismo e genialidade autoatribuída aparecem como o ápice da virtude política. Claro está que a vigência de tal padrão exige a crença na existência de sujeitos extraordinários, com recursos pessoais incomuns de clarividência e senso de oportunidade.
Duas intervenções políticas recentes, ambas sob a forma de visita, do ex-presidente Lula podem ser associadas ao predomínio da pior versão possível do axioma de O'Neill: as visitas ao escritório do ex-ministro Jobim, da qual quase não mais lembramos, e à residência de Paulo Maluf. Em ambas, o caráter de intervenção personalizada e caprichosa, ao contrário de esgotar seus efeitos locais, produz consequências de ordem mais geral.
Na visita ao ex-ministro Jobim, e na semana seguinte à introdução do tema da verdade, em chave maior, no debate público brasileiro - pela implantação da Comissão da Verdade -, o mesmo tema escorre pelo ralo, com a diversidade de versões a respeito do que ali se disse e das motivações dos dois interlocutores envolvidos (o ex-presidente e o ministro Gilmar Mendes). Diante da indeterminação da verdade, recomenda-se a incredulidade e a despresunção generalizada de inocência. Desconfio, contudo, que o ministro Gilmar não tenha se sentido infeliz com os efeitos públicos do evento.
Na visita ao deputado Paulo Maluf, independentemente do resultado líquido do encontro, sua marca, digamos, doutrinária é da lavra do ex-prócer arenista: foi sua doutrina - um tanto surrada, é claro - que parece ter dado sentido doutrinário à coisa, fixada no límpido enunciado: "Não existe mais direita e esquerda". Temo que o efeito da sentença sobre as mentes dos observadores comuns - ressalvo aqui os áulicos e os técnicos - seja semelhante ao da apresentação a estudantes de geometria do conceito de triângulo equilátero. Dir-se-á, tanto diante da sentença malufista, quanto do conceito geométrico, a mesma coisa: "Isso é evidente"; "Assim como um triângulo equilátero possui três lados iguais, não há diferença alguma entre direita e esquerda." Em outros termos, a frase malufista, tal como a demonstração do triângulo, traz consigo, com toda força, seu próprio efeito de verdade.
O que é grave em tudo isso é que não há passagem possível da geometria para a política; na geometria demonstra-se, na política usam-se argumentos. Quando um argumento político ganha foros de evidência geométrica, para além da inautenticidade aí implicada, é de vitória sobre formulações rivais que se trata. Em termos mais diretos, a teoria malufista passa por verdadeira, dada a supressão de alguma possível teoria rival.
A natureza dessa supressão merece atenção. Suspeito de que se trate de um esforço consistente e cumulativo de autossupressão do possíveis versões alternativas ao cinismo da indistinção. Por autossupressão entendo a adoção de um padrão político típico de um estado de natureza, ou, se quisermos, de um grau zero da política, no qual todos se igualam no pior e de modo necessário. A rendição a tal realismo é devoradora, no campo da cultura política, de expectativas e de patrimônios de difícil construção e consolidação, mas de facílima dissipação. Disso sabe bem Paulo Maluf, com razões de sobra para estar feliz.  
RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE; INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA; DIRETOR PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE