segunda-feira, 4 de junho de 2012

Despresunção de inocência


Renato Lessa - O Estado de S.Paulo


Há poucas semanas, o País, se concedido direito à metonímia, abrigou um experimento que, sem exagero, é portador de motivos para orgulho. Refiro-me à instalação em palácio da Comissão da Verdade. Ainda que seus resultados práticos sejam incertos, e pertençam antes aos domínios das mais diferentes e opostas expectativas, o evento que marcou seu lançamento abrigou ares de condensação republicana. Isso não apenas pelo cuidado de ali incluir chefes de governo que, em graus diferentes, ocuparam seus postos por força de procedimentos legítimos, mas por sugerir que o tema da verdade - de alguma verdade, ao menos - pode ter lugar na vida pública. A própria presidente, de modo eloquente e incomum na história da República, demonstrou o que podem significar a ideia e a figura de chefe de Estado.

Apesar de incertos os efeitos futuros, houve desde já um efeito imediato, qual seja o de inserir o tema da verdade em casulo distinto do de seu lugar natural. A elucidação do que ocorreu com mortos, desaparecidos e torturados, além de conferir materialidade retrospectiva à experiência do estado de exceção, amplia o conjunto de informações disponíveis a respeito da história recente do País. Mesmo que inúmeras interpretações e atribuições de sentido possam ser construídas, acena-se com a possibilidade de uma "narrativa básica", tal como o fizeram os primeiros historiadores do Holocausto; o grande Raul Hilberg, antes de todos.

Assim, e por um átimo, o tema da verdade insinuou-se de modo invulgar em nossas reflexões a respeito do País. Bastou, contudo, uma conversa mal-ajambrada e mal explicada no escritório do ex-ministro Nelson Jobim, para que o tema fosse devolvido a seu estado habitual, o da indeterminação e do disfarce. Para dizê-lo de outro modo: os dias que sucederam à instalação da Comissão da Verdade foram, como quê, dias de certa suspensão da experiência ordinária da política; o mencionado encontro a três, e as versões desencontradas e incompatíveis entre si dali emanadas, constituiu-se, por oposição, como experiência de des-suspensão ou, se quisermos, de desabamento e de gravitação natural.

Céticos, penso, antes de descartar o tema da verdade, com a falta de hesitação típica de dogmáticos pós-modernos, têm por essa dama - a verdade - sincero respeito, além de considerável pudor. Isso a ponto de recusar inscrever o termo "verdadeiro" em qualquer predicado, atribuído a qualquer aparência. Céticos, sobretudo, não são necessariamente parvos: não saber onde está a verdade não impede a presença de uma sensibilidade para com o implausível. Juízos de plausibilidade são suficientes para que nos movamos no mundo e configuremos nossas orientações e escolhas. Há, por certo, no episódio um abismo insondável: qual dos três protagonistas "diz a verdade"? Questão grave, diante da qual muitos não hesitarão em apresentar respostas definitivas, todas movidas por inclinações afetivas e biliares. Como, então, lidar com o abismo da indeterminação da verdade, nesse caso?

Sugiro, no que segue, uma série de procedimentos aproximativos. Antes de tudo, parece ser sábio adotar algo que poderia ser designado como uma despresunção de inocência dos envolvidos. Se, do ponto de vista penal, o procedimento é inaceitável, do ponto de vista cognitivo a coisa pode ser útil: se há suporte para supor que o ex-presidente Lula quis "melar" o julgamento do mensalão, pela abordagem ao ministro Gilmar Mendes, há idêntica plausibilidade em supor que este quis "melar" a defesa, ao pôr a boca no trombone, e evitar o tratamento apropriado e institucional da suposta ofensa. 

Portanto, a abordagem do ocorrido poderia iniciar pela consideração de aspectos internos e inerentes. Há no âmago do evento uma série de implausibilidades: a casualidade do encontro, a amnésia do ex-ministro Jobim, a indeterminação da fonte para a matéria-denúncia, a participação do ministro Gilmar apenas como confirmador do trabalho dos repórteres, etc.

Uma abordagem externalista poderia partir de uma premissa simples: uma conversa dessa natureza não poderia ocorrer. Isso tanto por razões de ordem, digamos, republicanas, mas sobretudo pelo déficit de confiança, ao que parece, envolvido na interação. As hipóteses são todas abjetas: se a narrativa do ministro Gilmar Mendes corresponde à verdade, algo de grande gravidade terá ocorrido; se for inverídica, algo de gravidade grande se passou. 

De um ponto de vista consequencialista, ao que parece o episódio foi vencido por quem pretende garantir forte carga dramática ao julgamento prestes a ser feito, e em neutralizar juízes neófitos, supostamente gratos por suas investiduras. Não é recomendável ver na reação do ministro Gilmar nada mais do que manifestação de ultraje pessoal e institucional.
O pano de fundo disso tudo parece ser uma experiência de república na qual o direito penal vale como  recurso de inteligibilidade. Diante da indeterminação da verdade, e do esforço militante de fazê-la cada vez mais inapreensível e irrelevante, o desejo infrene de prender os inimigos vale como único recurso de fixação de sentido. Ao que parece, após uma breve incursão do espírito, estômago e fígado repõem suas pretensões a sedes fisiológicas da consciência política nacional.
RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE, INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA E PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE

Busca da eficiência energética,no Brasil Econômico


O gasto com combustível pode superar 35% do custo operacional de caminhões pesados em trajetos longos. Este consumo sobe 10% com falta de manutenção e até 25% com excesso de peso. Cerca de 40 mil veículos a diesel rodam fora dos padrões ambientais no estado, consumindo e poluindo mais.
E ainda há a má qualidade do diesel nacional, que prejudica a saúde e diminui a vida útil dos motores. O resultado da falta de eficiência? Perda de competitividade, má qualidade de vida e emissão anual de 40 milhões de toneladas de CO2.
Tema pouco debatido no Brasil, sobretudo numa época de estímulos à compra de veículos como meio de aquecer a economia, a eficiência energética de combustíveis é questão central num cenário de transição para a economia verde e de busca por ganhos de competitividade no setor produtivo.
Vale lembrar que São Paulo tem ainda uma Política Estadual de Mudanças Climáticas para cumprir - cortar 20% da emissão de poluentes até 2020. O primeiro passo de uma política de eficiência energética de combustíveis é a redução da demanda e do desperdício no transporte.
Como 93% das cargas no estado circulam por rodovias, a dinamização da infraestrutura, a integração da rede multimodal e o planejamento logístico têm sido prioritários na revisão do Plano Diretor de Transportes.
Só em projetos já inclusos no PPA 2012-2015 da Secretaria de Logística e Transportes, estima-se a economia anual de 1 bilhão de litros de derivados de petróleo a partir de 2020, além de 2,6 milhões de toneladas de CO2 a menos.
O mesmo se dá no transporte de passageiros. A partir de 2020, a extensão da rede de metrô, trens metropolitanos e monotrilhos deve poupar 880 milhões de litros de gasolina e 470 milhões de litros de diesel por ano, evitando a emissão de 2,2 milhões de toneladas de CO2.
A implantação de corredores metropolitanos pela EMTU até 2014 fará crescer o número depassageiros e cair o tempo de deslocamento, otimizando o uso da frota. Estima-se uma melhoria de 25% na relação passageiro por litro de diesel, além da substituição do carro pelo ônibus por 30% dos novos usuários.
A gama de ações é ampla: vai do reforço do controle da regulagem e do peso dos caminhões à substituição de energéticos poluentes; da melhoria da qualidade dos combustíveis à pesquisa e teste de novas fontes.
Também são importantes os aperfeiçoamentos logísticos, como a redução das viagens com caminhão vazio, e o estabelecimento de metas de eficiência para veículos, com etiquetagem e políticas de alíquotas diferenciadas para os mais econômicos e menos poluentes.
No mundo todo, os programas de eficiência em combustíveis resultaram em ganhos superiores a quaisquer outras iniciativas de promoção da competitividade com sustentabilidade.
O Plano Paulista de Energia, a ser lançado em breve, dá grande ênfase à questão, inclusive estabelecendo uma audaciosa meta global de economia. Seria importante um alinhamento das políticas estaduais correlatas ou o estabelecimento de diretrizes nacionais únicas ou integradas. Os ganhos seriam exponenciais.
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José Anibal é secretário de Energia do estado de São Paulo

domingo, 3 de junho de 2012

Novas leis antigas


ódigo Florestal esconde consequências de legislação de 1850

03 de junho de 2012 | 3h 09
José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
Mais do que um episódio melancólico de desencontro sobre orientações relativas ao meio ambiente, o conflito sobre o novo Código Florestal esconde as consequências do que foi uma decisão política do passado. Refiro-me à Lei de Terras, de setembro de 1850, que configurou o moderno direito de propriedade no Brasil. Tinha por objetivo criar dificuldade ao livre acesso à terra, no mesmo momento em que a cessação do tráfico negreiro e a substituição dos escravos por trabalhadores livres punha em risco a agricultura de exportação por falta de mão de obra. Forçava uma escassez artificial de terra, que só poderia ser obtida mediante compra, mesmo ao Estado. Ao impedir trabalhadores livres e escravos libertos de terem acesso livre à terra, forçava-os a trabalhar antes na grande lavoura alheia para formar pecúlio e, só então, ter condições de se tornarem proprietários. A lei criou, desnecessariamente, um direito absoluto de propriedade ao transferir para os particulares, além da posse útil e econômica, o domínio sobre a terra, que até então era do Estado. O debate sobre o Código Florestal é um desdobramento remoto dessa lei. 

Na tradição portuguesa, que passou ao Brasil, o domínio da terra era do rei, isto é, do Estado, o que lhe permitia regular e administrar a distribuição de terras, mas também sua arrecadação em caso de que o beneficiário não lhe desse uso econômico. A terra concedida, unicamente a quem fosse livre, podia cair em comisso e retornar ao domínio do Estado, para ser novamente distribuída a quem dela fizesse efetivo uso. Essas concepções foram formalizadas na Lei de Sesmarias, em 1375, que teve vigência no Brasil até julho de 1822, pouco antes da Independência, até que nova legislação definisse um novo regime de propriedade, o que só ocorreria em 1850.

A Lei de Sesmarias era também uma legislação ambiental no sentido em que se pode aplicar essa palavra ao Brasil Colônia. O concessionário de terra não era o dono, o dono era o rei, o Estado. Determinadas árvores nela existentes, de especial interesse econômico, permaneciam sob domínio do rei, as chamadas, justamente por isso, madeiras de lei, que só podiam ser cortadas para uso determinado, mediante autorização oficial. O capitão do mato era, originalmente, fiscal florestal, que também caçava escravos fugidos que encontrasse nas matas. 

Os efeitos da Lei de Terras foram agravados com a proclamação da República e a transferência das terras devolutas aos Estados, o que acelerou sua distribuição e mesmo a grilagem com base em títulos falsificados de propriedade, disseminando-se uma delinquência fundiária que perdura até hoje. Nesse desregramento, em pouco mais de 50 anos o Estado de São Paulo perdeu a maior parte de suas florestas, supostamente para ampliar a produção do café, então nosso mais importante produto agrícola de exportação. A loucura se refletiu rapidamente na superprodução de café e no declínio dos preços, o que, associado a outras crises econômicas, levou à devastadora crise de 1929, que vitimou aqui fazendeiros e trabalhadores.

Lentamente, medidas foram sendo acrescentadas à legislação brasileira para atenuar o caráter absoluto do direito de propriedade inaugurado em 1850 e agravado com a Constituição republicana de 1891. Nas leis, aos poucos vinga o pressuposto da utilidade pública e do interesse social. Medidas começaram a ser tomadas para devolver ao Estado o domínio sobre o território, seja para cumprir funções econômicas, seja para cumprir funções sociais. 

A primeira delas foi a do Código de Águas, de 1934, que limitou o direito de propriedade da terra em relação às águas nela existentes, no solo e no subsolo. O Código de Minas, de 1940, acrescentou restrições ao direito de propriedade e restituiu ao domínio do Estado a parte do solo e do subsolo que contivesse minerais. Na Constituição de 1946 foi instituído o pressuposto do interesse social na desapropriação para cumprimento do princípio da função social da propriedade, embora os constituintes tivessem estabelecido o freio da indenização prévia e em dinheiro, o que inviabilizava a reforma agrária. Em 1964, com a aprovação do Estatuto da Terra e a reforma agrária baseada na desapropriação para esse fim específico, mediante indenização com títulos da dívida pública, o Estado mais uma vez sobrepôs o bem comum ao interesse privado. Novas restrições ao direito de propriedade foram adotadas pelo Código Florestal de 1965. E, nestes dias, a aprovação da PEC que institui o perdimento da propriedade em que for descoberto o uso de trabalho escravo acrescentou um pressuposto moral explícito ao instituto da função social da propriedade. 
A adoção de um novo e permissivo Código Florestal, baseado no primado dos interesses privados, é esforço para conter e restringir a tendência histórica de ampliação tanto dos direitos e responsabilidades do Estado, na tutela do chamado bem comum, quanto dos direitos sociais, no marco da função social da propriedade.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, E PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP. ENTRE OUTROS LIVROS,  É AUTOR DE FRONTEIRA - A DEGRADAÇÃO DO OUTRO NOS CONFINS DO HUMANO (CONTEXTO,  2009)