ódigo Florestal esconde consequências de legislação de 1850
03 de junho de 2012 | 3h 09
José de Souza Martins - O Estado de S.Paulo
Mais do que um episódio melancólico de desencontro sobre orientações relativas ao meio ambiente, o conflito sobre o novo Código Florestal esconde as consequências do que foi uma decisão política do passado. Refiro-me à Lei de Terras, de setembro de 1850, que configurou o moderno direito de propriedade no Brasil. Tinha por objetivo criar dificuldade ao livre acesso à terra, no mesmo momento em que a cessação do tráfico negreiro e a substituição dos escravos por trabalhadores livres punha em risco a agricultura de exportação por falta de mão de obra. Forçava uma escassez artificial de terra, que só poderia ser obtida mediante compra, mesmo ao Estado. Ao impedir trabalhadores livres e escravos libertos de terem acesso livre à terra, forçava-os a trabalhar antes na grande lavoura alheia para formar pecúlio e, só então, ter condições de se tornarem proprietários. A lei criou, desnecessariamente, um direito absoluto de propriedade ao transferir para os particulares, além da posse útil e econômica, o domínio sobre a terra, que até então era do Estado. O debate sobre o Código Florestal é um desdobramento remoto dessa lei.
Na tradição portuguesa, que passou ao Brasil, o domínio da terra era do rei, isto é, do Estado, o que lhe permitia regular e administrar a distribuição de terras, mas também sua arrecadação em caso de que o beneficiário não lhe desse uso econômico. A terra concedida, unicamente a quem fosse livre, podia cair em comisso e retornar ao domínio do Estado, para ser novamente distribuída a quem dela fizesse efetivo uso. Essas concepções foram formalizadas na Lei de Sesmarias, em 1375, que teve vigência no Brasil até julho de 1822, pouco antes da Independência, até que nova legislação definisse um novo regime de propriedade, o que só ocorreria em 1850.
A Lei de Sesmarias era também uma legislação ambiental no sentido em que se pode aplicar essa palavra ao Brasil Colônia. O concessionário de terra não era o dono, o dono era o rei, o Estado. Determinadas árvores nela existentes, de especial interesse econômico, permaneciam sob domínio do rei, as chamadas, justamente por isso, madeiras de lei, que só podiam ser cortadas para uso determinado, mediante autorização oficial. O capitão do mato era, originalmente, fiscal florestal, que também caçava escravos fugidos que encontrasse nas matas.
Os efeitos da Lei de Terras foram agravados com a proclamação da República e a transferência das terras devolutas aos Estados, o que acelerou sua distribuição e mesmo a grilagem com base em títulos falsificados de propriedade, disseminando-se uma delinquência fundiária que perdura até hoje. Nesse desregramento, em pouco mais de 50 anos o Estado de São Paulo perdeu a maior parte de suas florestas, supostamente para ampliar a produção do café, então nosso mais importante produto agrícola de exportação. A loucura se refletiu rapidamente na superprodução de café e no declínio dos preços, o que, associado a outras crises econômicas, levou à devastadora crise de 1929, que vitimou aqui fazendeiros e trabalhadores.
Lentamente, medidas foram sendo acrescentadas à legislação brasileira para atenuar o caráter absoluto do direito de propriedade inaugurado em 1850 e agravado com a Constituição republicana de 1891. Nas leis, aos poucos vinga o pressuposto da utilidade pública e do interesse social. Medidas começaram a ser tomadas para devolver ao Estado o domínio sobre o território, seja para cumprir funções econômicas, seja para cumprir funções sociais.
A primeira delas foi a do Código de Águas, de 1934, que limitou o direito de propriedade da terra em relação às águas nela existentes, no solo e no subsolo. O Código de Minas, de 1940, acrescentou restrições ao direito de propriedade e restituiu ao domínio do Estado a parte do solo e do subsolo que contivesse minerais. Na Constituição de 1946 foi instituído o pressuposto do interesse social na desapropriação para cumprimento do princípio da função social da propriedade, embora os constituintes tivessem estabelecido o freio da indenização prévia e em dinheiro, o que inviabilizava a reforma agrária. Em 1964, com a aprovação do Estatuto da Terra e a reforma agrária baseada na desapropriação para esse fim específico, mediante indenização com títulos da dívida pública, o Estado mais uma vez sobrepôs o bem comum ao interesse privado. Novas restrições ao direito de propriedade foram adotadas pelo Código Florestal de 1965. E, nestes dias, a aprovação da PEC que institui o perdimento da propriedade em que for descoberto o uso de trabalho escravo acrescentou um pressuposto moral explícito ao instituto da função social da propriedade.
Na tradição portuguesa, que passou ao Brasil, o domínio da terra era do rei, isto é, do Estado, o que lhe permitia regular e administrar a distribuição de terras, mas também sua arrecadação em caso de que o beneficiário não lhe desse uso econômico. A terra concedida, unicamente a quem fosse livre, podia cair em comisso e retornar ao domínio do Estado, para ser novamente distribuída a quem dela fizesse efetivo uso. Essas concepções foram formalizadas na Lei de Sesmarias, em 1375, que teve vigência no Brasil até julho de 1822, pouco antes da Independência, até que nova legislação definisse um novo regime de propriedade, o que só ocorreria em 1850.
A Lei de Sesmarias era também uma legislação ambiental no sentido em que se pode aplicar essa palavra ao Brasil Colônia. O concessionário de terra não era o dono, o dono era o rei, o Estado. Determinadas árvores nela existentes, de especial interesse econômico, permaneciam sob domínio do rei, as chamadas, justamente por isso, madeiras de lei, que só podiam ser cortadas para uso determinado, mediante autorização oficial. O capitão do mato era, originalmente, fiscal florestal, que também caçava escravos fugidos que encontrasse nas matas.
Os efeitos da Lei de Terras foram agravados com a proclamação da República e a transferência das terras devolutas aos Estados, o que acelerou sua distribuição e mesmo a grilagem com base em títulos falsificados de propriedade, disseminando-se uma delinquência fundiária que perdura até hoje. Nesse desregramento, em pouco mais de 50 anos o Estado de São Paulo perdeu a maior parte de suas florestas, supostamente para ampliar a produção do café, então nosso mais importante produto agrícola de exportação. A loucura se refletiu rapidamente na superprodução de café e no declínio dos preços, o que, associado a outras crises econômicas, levou à devastadora crise de 1929, que vitimou aqui fazendeiros e trabalhadores.
Lentamente, medidas foram sendo acrescentadas à legislação brasileira para atenuar o caráter absoluto do direito de propriedade inaugurado em 1850 e agravado com a Constituição republicana de 1891. Nas leis, aos poucos vinga o pressuposto da utilidade pública e do interesse social. Medidas começaram a ser tomadas para devolver ao Estado o domínio sobre o território, seja para cumprir funções econômicas, seja para cumprir funções sociais.
A primeira delas foi a do Código de Águas, de 1934, que limitou o direito de propriedade da terra em relação às águas nela existentes, no solo e no subsolo. O Código de Minas, de 1940, acrescentou restrições ao direito de propriedade e restituiu ao domínio do Estado a parte do solo e do subsolo que contivesse minerais. Na Constituição de 1946 foi instituído o pressuposto do interesse social na desapropriação para cumprimento do princípio da função social da propriedade, embora os constituintes tivessem estabelecido o freio da indenização prévia e em dinheiro, o que inviabilizava a reforma agrária. Em 1964, com a aprovação do Estatuto da Terra e a reforma agrária baseada na desapropriação para esse fim específico, mediante indenização com títulos da dívida pública, o Estado mais uma vez sobrepôs o bem comum ao interesse privado. Novas restrições ao direito de propriedade foram adotadas pelo Código Florestal de 1965. E, nestes dias, a aprovação da PEC que institui o perdimento da propriedade em que for descoberto o uso de trabalho escravo acrescentou um pressuposto moral explícito ao instituto da função social da propriedade.
A adoção de um novo e permissivo Código Florestal, baseado no primado dos interesses privados, é esforço para conter e restringir a tendência histórica de ampliação tanto dos direitos e responsabilidades do Estado, na tutela do chamado bem comum, quanto dos direitos sociais, no marco da função social da propriedade.
JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, E PROFESSOR EMÉRITO DA FACULDADE DE FILOSOFIA DA USP. ENTRE OUTROS LIVROS, É AUTOR DE FRONTEIRA - A DEGRADAÇÃO DO OUTRO NOS CONFINS DO HUMANO (CONTEXTO, 2009)
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