Artigo publicado no ‘O Estado de São Paulo’ (“O STF deve chancelar a boa gestão pública”, de Helena Nader, Jacob Palis Junior, Rubens Naves e Thiago Donnini) faz defesa enfática da modalidade de gestão das Organizações Sociais (OSs), dando-lhe caráter público. Seus autores mostram casos de sucesso em âmbito federal.Estudos desenvolvidos pelo Ministério do Planejamento caracterizam, no entanto, essa modalidade de gestão como sendo de natureza privada. O fato de instituições privadas serem qualificadas como OSs pelo poder público, com base na Lei n.º 9.637/98, iniciativa do governo Fernando Henrique Cardoso, não lhes confere um caráter público e tampouco os acordos administrativos estabelecidos se confundem com convênios. Inserem-se, com mais propriedade, na categoria de contratos em que pode haver conflitos de interesses na relação de prestação de serviços, sendo imprescindível controle público efetivo sobre sua atuação.
Defendidas com o argumento de agilidade administrativa e de serem sinônimo de boa gestão, inclusive para o desenvolvimento tecnológico e cientifico do País, essas entidades criaram a expectativa de que conseguiriam captar recursos privados, mas dependem de recursos públicos. Os conflitos de interesses observados por gestores públicos e órgãos de controle, tais como Controladorias, Ministérios Públicos, Legislativo, Tribunais de Contas, Judiciário e Conselhos Gestores, mostram impropriedades e inadequações no funcionamento das OSs, até mesmo em desacordo com legislações específicas que as instituíram.
São conhecidas, entretanto, alternativas de gestão pública que podem atender às mesmas exigências de agilidade, eficiência e eficácia. Experiências bem sucedidas de administração pública indireta, como é o caso do uso pelo poder público das modalidades de autarquias, autarquias especiais, fundações públicas e fundações estatais, para citar algumas. Mesmo a modalidade da administração direta, associada à ideia de inoperância por seus críticos, deve ser considerada uma boa escolha, a depender do perfil da instituição e das condições de trabalho e governança oferecidas.
Ao invés de incentivar o debate do tema, as motivações do artigo resvalam para a tentação de mobilizar a opinião pública para que critique a iniciativa do PT e do PDT de ingressar com Ação Direta de Inconstitucionalidade dessa lei federal (Adin n.º 1.923/DF) e exerça pressão sobre o Supremo Tribunal Federal (STF) no sentido da urgente afirmação da integral constitucionalidade do que vem sendo praticado.
Provocam esses partidos para que reconsiderem seus questionamentos, uma vez que lançam mão das OSs em seus governos. Citam os autores que o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação encaminhou em 2013 ao STF uma síntese dos benefícios proporcionados pelo modelo das OSs às atividades do setor e argumentam com o que pratica hoje o Município de São Paulo.Ocorre que não apenas esses partidos, mas a sociedade como um todo quer saber se o eventual julgamento da constitucionalidade de parte ou da totalidade dessa legislação federal dará cobertura legal para práticas que parecem estar desacordo com essa e outras legislações. O argumento do fato consumado e da demora no julgamento, decorridos quase 15 anos da iniciativa jurídica, não pode impedir que questões igualmente relevantes sejam objeto da análise e julgamento do STF, ainda mais considerando a existência de dezenas de leis estaduais e municipais que ampliaram o seu escopo e diversificaram seu uso.
Como explicar o uso de recursos públicos por entidades privadas escolhidas pelo poder público sem processo seletivo e aplicados sem o respeito à lei de licitações? Sendo entidades privadas, como justificar a cessão de servidores públicos para nelas trabalharem? Sendo teoricamente sem fins lucrativos, em quanto importa a taxa de administração embutida sem transparência nos contratos de gestão firmados e quais devem ser os critérios de contratação e remuneração do seu corpo diretivo, muitas vezes praticando valores acima da administração pública e mesmo do mercado?
Os mecanismos de controle têm se mostrado efetivos? Como explicar a associação de entidades para atender aos critérios de qualificação e impedir que se perpetuem problemas como os detectados, por exemplo, na Santa Casa de São Paulo, qualificada indevidamente como Organização Social? Os problemas detectados em auditorias, por exemplo, em relação à SPDM – Associação para o Desenvolvimento da Medicina -, alertam o Poder Judiciário para desvios de finalidade no uso de recursos públicos, com base em legislações estaduais e municipais?
Há, hoje, uma verdadeira febre na utilização desse expediente de OSs para burlar medidas consagradas na gestão pública, tais como atender aos princípios da transparência, publicidade dos atos, critérios objetivos de contratação e compras, realização de processos licitatórios, concursos públicos e respeito aos direitos dos trabalhadores e cidadãos, e naquilo que está consagrado em leis nos sistemas universais de saúde (SUS), assistência social (SUAS), previdência social e educação.
Inicialmente utilizadas nas áreas de saúde e cultura, rapidamente as OSs estão sendo elevadas à categoria de opção preferencial para todas as políticas públicas, chegando mais recentemente ao campo das pesquisas públicas e da ciência, tecnologia e inovação. Em São Paulo, o Governo Alckmin pretende extinguir fundações públicas importantes, como FUNDAP e CEPAM, e aprovou lei para que a Fundação Casa, as Unidades de Conservação Ambiental e o Investe São Paulo passem para gestão de Organizações Sociais.
Que o fato consumado de haver crescente uso dessa modalidade de gestão em governos de diferentes partidos políticos e a crise política atual não sejam utilizados como fatos determinantes para inibir o debate aprofundado e a análise jurídica que tanto clama a sociedade desse marco legal no sentido de proteger o Estado brasileiro da crescente privatização de recursos e terceirização da gestão.
Carlos Neder, deputado estadual pelo PT, foi secretário municipal de saúde de São Paulo (90-92, Governo Luiza Erundina)