HELIO GUROVITZ
22/02/2015 09h30
Davos, na Suíça, é uma cidadezinha conhecida por reunir todo mês de janeiro líderes e celebridades globais, nas discussões do Fórum Econômico Mundial. Na reunião deste ano, um dos painéis questionava se a religião era a causa dos conflitos pelo planeta. Inevitavelmente, o debate foi dominado pelos atentados ocorridos dias antes em Paris. Previsivelmente, não chegou a lugar algum… Davos também é o cenário de um dos maiores romances do século XX, A montanha mágica, do alemão Thomas Mann. Publicado depois da Primeira Guerra Mundial, é uma obra fundamental para entender a mentalidade que originou o conflito e as transformações na virada do século XIX para o XX. Num sanatório para tuberculosos encravado nas montanhas suíças, estão representadas todas as forças que moviam a Europa de então e até hoje – de Paris a Copenhague; da Líbia a Chapel Hill – desafiam a humanidade.
Um jovem engenheiro alemão, Hans Castorp, chega ao sanatório Berghof com a intenção de passar três semanas, em visita a um primo tuberculoso. Num exame médico para investigar as causas de seu resfriado, descobre que ele próprio tem focos da doença. A descoberta o transforma – e Hans estica seu tratamento e sua estadia por sete anos, até a eclosão da guerra. Personagens chegam ao sanatório de toda parte do continente. À medida que Hans os encontra, amplia seus conhecimentos do mundo, se apaixona, se encanta e se decepciona. Mann nos apresenta a uma fauna humana que resume todas as nossas emoções e desejos, dúvidas e anseios, angústias e contradições. A riqueza de sua obra é descobrir, nos sentimentos desse grupo isolado nas montanhas suíças, a motivação para os terremotos históricos que sacudiam – e tornariam a sacudir – a “planície”, a milhares de quilômetros. Vemos irromper não apenas a Primeira Guerra, mas pressentimos os horrores do nazismo e do comunismo, a anos dali. Mann demonstra como a origem de todo conflito está, antes de qualquer violência, no plano das ideias.
Dois personagens dominam o choque de ideias – e ambos tentam seduzir o jovem Hans para sua visão de mundo. O primeiro é o italiano Lodovico Settembrini. Ele representa o “humanismo”, que vê a razão como sentido de nossos atos e pensamentos. Settembrini não se diz ateu, mas desconfia das religiões. Afirma que Deus e a natureza são uma coisa só. Entender o primeiro, diz, equivale a desvendar a segunda. Atribui à ciência todo progresso humano. Condena o ocultismo e qualquer forma de superstição sobrenatural. Franco-maçom, defende a democracia liberal, os Estados nacionais e acredita no livre-arbítrio dos indivíduos. Settembrini considera as artes e a literatura como uma forma de ação política. O objetivo de ambas, para ele, é a civilização.
O segundo personagem é Leo Naphta. Judeu da Europa Oriental convertido ao catolicismo, fora levado pela tuberculose aos Alpes e obrigado a abandonar seus estudos jesuítas. Por isso, não se tornara padre. A lacuna só fez crescer sua religiosidade. Naphta representa o “espiritualismo”, que vê a fé como sentido da vida e das ações. “A fé é o órgão do conhecimento, e o intelecto é secundário”, diz ele. Naphta acredita que a essência humana, o “espírito”, está separada do corpo e da realidade material. Defende de modo intransigente o misticismo e mesmo os atos sangrentos cometidos pela Igreja ao longo da história. Desconfia da ciência e das explicações racionais. Vê nelas a raiz para os horrores das rebeliões liberais, como a Revolução Francesa. Seu ideal político mistura o coletivismo à religião. É uma espécie de socialismo eclesiástico, baseado na hierarquia de uma Igreja cosmopolita. “Desconhece e não ama a juventude quem pensa que ela sente prazer diante da liberdade. O que ela aprecia mais é a obediência”, afirma. “Toda justiça penal e criminal que não brote da fé no além é uma sandice bestial.” Para ele, as artes devem revelar o sofrimento humano, a debilidade da carne; devem resultar de um esforço ao mesmo tempo “anônimo e coletivo”, em nome da devoção ao divino.
>> O afeto que se inicia
Ambos, Naphta e Settembrini, acabam por fazer apologia da violência. Naphta, fiel soldado da Companhia de Jesus, postula a disciplina férrea da Igreja e não lamenta o sangue derramado em nome dela. Settembrini acredita que a batalha pelas luzes inevitavelmente levará ao conflito com nações atrasadas – e para isso, diz, serão necessários os exércitos. As ideias de ambos perduram até hoje – seja no Estado Islâmico, ao perpretar sua barbárie sanguinária em nome da fé; seja nos governos que encaram seus ataques a inocentes no Oriente Médio como defesa da liberdade e da democracia. Ambas as argumentações dão margem a contradições. Ambas têm limites, e seria simplificador imaginar o contrário. Mas sempre é bom lembrar que, no duelo final com Settembrini, é Naphta quem perde – ao cometer suicídio.
Ambos, Naphta e Settembrini, acabam por fazer apologia da violência. Naphta, fiel soldado da Companhia de Jesus, postula a disciplina férrea da Igreja e não lamenta o sangue derramado em nome dela. Settembrini acredita que a batalha pelas luzes inevitavelmente levará ao conflito com nações atrasadas – e para isso, diz, serão necessários os exércitos. As ideias de ambos perduram até hoje – seja no Estado Islâmico, ao perpretar sua barbárie sanguinária em nome da fé; seja nos governos que encaram seus ataques a inocentes no Oriente Médio como defesa da liberdade e da democracia. Ambas as argumentações dão margem a contradições. Ambas têm limites, e seria simplificador imaginar o contrário. Mas sempre é bom lembrar que, no duelo final com Settembrini, é Naphta quem perde – ao cometer suicídio.
Helio Gurovitz é jornalista (hgurovitz@edglobo.com.br)
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