domingo, 22 de fevereiro de 2015

A natureza do horror não está nos manuais; está em pequenas obras-primas da literatura contemporânea



DEPOIS DOS atentados de Boston, a pergunta: serão terroristas genuinamente americanos, como Timothy McVeigh? Ou serão terroristas americanos convertidos ao fundamentalismo "religioso" (um eufemismo para evitar a palavra "islâmico")? 

Nenhuma conclusão apressada. Esperei para ver. E ler. Nas horas seguintes, nos dias seguintes, começaram a surgir pormenores. 

Dois suspeitos. De origem tchetchena. O puzzle começava a compor-se: os tchetchenos não são conhecidos por seguirem a religião cristã (ou judaica). Mas, por outro lado, a inimizade tchetchena tem Moscou como alvo, não Washington (ou Boston). Uma inimizade política, não religiosa. 

O círculo policial começou a fechar-se. Os dois suspeitos, os dois tchetchenos, eram irmãos. E o mais velho, que começou a ter influência letal sobre o mais novo, foi encontrando nos preceitos corânicos o tipo de "identidade" que ele não encontrava na sociedade americana de acolhimento. 

Foi o adeus ao álcool. O adeus ao fumo. E a condenação violenta do rasteiro materialismo americano, um clássico do islamismo radical desde Sayyd Qutb (1906""1966), o teórico da Irmandade Muçulmana que visitou os Estados Unidos em finais da década de 1940 e deixou uma "bíblia" fanática a respeito. 

Os dois suspeitos, os dois tchetchenos, os dois irmãos eram, Deus nos perdoe, dois jihadistas em solo americano? 

Aqui, o pânico da mídia ocidental "progressista" voltou a soar mais forte. Já ninguém discutia esses pormenores. A estratégia era outra: martelar até a insanidade que não existe nenhuma relação entre o islã e o terrorismo. 

Concordo. Digo mais: não há nenhuma relação entre o islamismo, o cristianismo ou judaísmo e atos criminosos contra inocentes. Pelo contrário, as três religiões condenam expressamente esses atos. 

Só que essa não é a questão. Nunca foi. A questão é a inversa: saber se existe uma relação entre atos terroristas e a interpretação que os próprios terroristas fazem da religião islâmica. Pretender silenciar o debate com a proclamação infantil "nem todos os muçulmanos são terroristas!" é o mesmo que condenar qualquer crítica ao Estado de Israel como antissemita. 

Comigo não, violão. É possível criticar racionalmente Israel. E é possível constatar a desproporcionalidade de atos de terrorismo cometidos por inspiração islamita. Relembrar uma evidência é o primeiro passo para compreender a natureza do horror. 

E essa natureza não está nos manuais de filosofia, ou de história, ou de ciência política. Está em pequenas obras-primas da literatura contemporânea como o profético conto de Hanif Kureishi intitulado "My Son the Fanatic" (1994). 

Foram vários os editoriais que, a respeito de Boston, prestaram homenagem ao conto e ao próprio Kureishi. Justíssimo. Como escritor, sempre defendi que Kureishi merece o mesmo respeito que Ian McEwan ou Julian Barnes, seus colegas de geração. 

E o conto é um primoroso retrato sobre a radicalização de um imigrante paquistanês de "segunda geração" em solo britânico. 

Digo "segunda geração" porque Kureishi capta o essencial do novo terror: ao contrário dos pais, que viajaram para o Ocidente em busca de uma vida melhor, é precisamente essa "vida melhor" que inquieta os filhos. 

Confrontados com o pluralismo das sociedades abertas, onde a frustração de expectativas faz parte do jogo da liberdade, há nos filhos uma busca desesperada por um sistema total (e totalitário) que os salve do caos ético e epistemológico dessas sociedades. 

O que para os pais é um sonho (viverem livres do dogmatismo doméstico), para os filhos é um pesadelo. Por isso eles fantasiam o exato dogmatismo de que os pais fugiram. 

No conto de Kureishi, esse abismo está presente no diálogo tenso entre o pai e o filho: o primeiro, bebendo um uísque e tentando convencer o filho a desfrutar a vida; e o segundo, enojado com os uísques do pai, respondendo que há coisas mais importantes para fazer do que simplesmente desfrutar a vida. 

Como disse um dos irmãos tche- tchenos, "eu não tenho nenhum amigo americano". E acrescentou: "Eu nem sequer os entendo." 

Eis o primeiro passo para o terror: olhar para as vítimas, não como nossos semelhantes, mas como seres inferiores e estranhos que não merecem sobreviver. 

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