domingo, 31 de janeiro de 2021

Hélio Schwartsman Shakespeare na América, FSP

 O genial René Goscinny, na não menos genial série de quadrinhos "Lucky Luke", faz com que Frank James, o irmão de Jesse James, dois vilões retratados nas histórias, fale só através de citações de Shakespeare. Sempre que ele abre a boca, reproduz uma linha do bardo. Até alguns dias atrás, eu achava que era um exagero de Goscinny.


Agora, continuo achando que é um exagero, mas um que descreve com feliz precisão uma faceta da sociedade americana do século 19 que eu até então desconhecia. O que mudou minha avaliação foi a leitura do também genial "Shakespeare in a Divided America", de James Shapiro (Columbia).

Desenho mostra o Tio Sam segurando uma caveira como se fosse Hamlet, de Shakespeare
Ilustração de Annette Schwartsman para a coluna de Hélio Schwartsman - Annette Schwartsman
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O autor mostra com muita erudição que Shakespeare está arraigado na psique americana de forma sem paralelo no Brasil e mesmo no Reino Unido. Pelo menos até o início do século 20, todo mundo lia Shakespeare, assistia a montagens de suas peças e as discutia em conversas cotidianas.

Os mais entusiasmados desenvolviam teorias, às vezes bem singulares, sobre Shakespeare. Isso valia não só para presidentes, como John Quincy Adams e Abraham Lincoln, mas também para o povo, incluindo foras da lei como o Frank James histórico, que era mesmo um conhecedor do doce cisne de Avon. Aliás, uma das mais sangrentas batalhas da luta de classes nos EUA, os tumultos de Astor Place, em 1849, se deu em torno de uma controvérsia sobre Shakespeare.

Shapiro não se limita a descrever a influência do bardo na América. Ele também mostra como os mais diversos campos ideológicos se valeram do dramaturgo para tentar fazer avançar suas ideias ou amplificar seus medos, tornando-o uma espécie de canário de mina, que revela quando o ambiente se torna muito tóxico. Não chega a ser uma surpresa, já que Shakespeare permite abordagens complexas sobre temas tão variados como racismo, homossexualismo, assassinato político. É justamente o que o torna uma espécie de clássico dos clássicos.

Hélio Schwartsman

Jornalista, foi editor de Opinião. É autor de "Pensando Bem…".


O QUE A FOLHA PENSA Vacine ou empobreça

 

Imunização deveria equivaler a guerra que mobiliza os recursos pelo bem comum

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Vacinação em São Paulo - Rivaldo Gomes/Folhapress

O primeiro mês de 2021 turvou as expectativas de uma superação relativamente rápida da crise provocada pela pandemia de coronavírus. Quem não desenvolveu governança para minimizar a circulação do patógeno nem se preparou para vacinar rapidamente grande parcela da população arrisca-se a padecer ainda por longos meses.

É o caso do Brasil. Não surpreende que a nação governada por um presidente incapaz e negacionista tenha sido classificada em último lugar no combate à emergência sanitária, entre 98 países avaliados pelo instituto Lowy, da Austrália.

Investigar o que deu errado é necessário não só para a tarefa, incontornável no Estado democrático de Direito, de responsabilizar os culpados pelo desastre. Compreender o fracasso integra o aprendizado requerido para ajustar as condutas e recuperar parte do prejuízo.

Entre as inverdades propagadas desde o início pelo presidente Jair Bolsonaro e seu séquito figura com destaque a falsa dicotomia entre o imperativo de prevenir o adoecimento e a morte de brasileiros, de um lado, e o de preservar a atividade econômica, do outro.

Dado que seres humanos são protagonistas da produção e do consumo e, ao mesmo tempo, vítimas de uma infecção para a qual estão naturalmente desprotegidos, desde o início está patente que superar a epidemia o mais depressa e com o menor número de doentes possível é a única maneira de reduzir as perdas econômicas com a crise.

Com a chegada das vacinas, a verdadeira dicotomia ficou ainda mais simples: vacine logo ou exponha sua população a mais sofrimento. Vacine ou empobreça.

A quantidade de imunizantes concretamente à mão das autoridades, contudo, ainda nem sequer cobre 3% da população brasileira. Chegar a meados do ano com pelo menos 50 milhões de vacinados, abrangendo os grupos mais suscetíveis à hospitalização, vai requerer uma mobilização nacional similar à empreendida numa guerra.

Não se trata apenas de gastar dinheiro. O governo federal produziu um déficit de R$ 743 bilhões em 2020 e não conseguiu disponibilizar vacinas suficientes, o que custaria uma pequena fração disso.

Trata-se de coordenar os atores, agilizar os trâmites, negociar incansavelmente com fornecedores internos e globais, recrutar o que há de melhor na competência técnica brasileira para cada tarefa. É preciso afastar os ineptos, os amadores, os preguiçosos, os arautos da desinformação e os sabotadores.

O brasileiro tem pressa de se vacinar para que possa retomar a confiança, sem a qual nenhum povo prospera. Conformar-se com o fracasso não é uma opção, nem quando ele é a decorrência lógica das atitudes do presidente da República.

editoriais@grupofolha.com.br

sábado, 30 de janeiro de 2021

O último Silveira, Sergio Augusto, Oesp

Sérgio Augusto, O Estado de S.Paulo

30 de janeiro de 2021 | 03h00

Perdi mais um amigo de covid. Virou rotina. Cismei de contabilizar as perdas que mais intensamente me atingiram nos últimos 10 meses, e só me lembrei de três exceções ao flagelo virótico: Nirlando Beirão, Pete Hamill e Zuza Homem de Mello, abatidos por outras enfermidades. No início da semana, o vírus nos levou José Silveira, um dos últimos moicanos da era de ouro do jornalismo.

Não conheci ninguém que não o admirasse como profissional, e daria para contar nos dedos os que não têm ao menos uma história divertida com ou sobre ele dentro de uma redação ou fora dela. Em todos os jornais por onde andou – Última Hora, Correio da Manhã, Jornal do Brasil, Folha de S. Paulo, além do Estadão – muito ensinou até a quem acreditava já saber tudo sobre como fechar uma edição, encontrar o melhor título para uma reportagem, limpar as impurezas de um texto e cortar uma foto para dar mais realce gráfico à primeira página.     

Secretário de redação incomparável, uma de suas mais decantadas proezas – reduzir um artigo de oito laudas de Antonio Houaiss a duas, sem deixar nada de fora – entrou para o folclore do jornalismo, com ajuda suplementar de Paulo Francis, que adorava relembrá-la, até porque achava Houaiss verborrágico e rebuscado além da conta.

Tive o privilégio de conviver com três Silveiras memoráveis: o editor de livros Ênio Silveira (1925-1996) e os jornalistas José e Joel Silveira, que não eram parentes e até hoje são vez por outra confundidos por quem não é do ramo. O gaúcho Zé Silveira, que morreu quatro dias atrás, aos 87, não foi o “melhor repórter da imprensa brasileira em todos os tempos” conforme exaltado e pranteado por mais de um internauta, no meio da semana. O repórter aludido era o sergipano Joel, que se foi com um ano a mais de idade, em agosto de 2008.

Nunca soube se os dois chegaram a ser amigos. Conheci ambos na mesma época, começo dos anos 60, mas, no Correio da Manhã, convivi apenas com o Zé Silveira, que, levado por Jânio de Freitas, chefiou por alguns meses o copy desk do jornal. Reencontrei-o, pouco tempo depois, no Jornal do Brasil e, em 1981, a ele e Jânio, na sucursal carioca da Folha. 

Poucos colegas me inspiraram tanto respeito e reverente temor quanto ele. E eu nem trabalhava no copy; receava-o a distância. Suas observações, com frequência irônicas, eram microlições de sabedoria e acuidade jornalística. 

Ele era o manual de redação antropoide do JB. Corrigia palavras que, nos textos, sobravam ou descabiam. Em seu índex abundavam as banalidades e os chavões consagrados pela imprensa como “via de regra”, “abordado pela reportagem”, “morreu ao dar entrada no hospital”, “o morto deixou mulher e filhos”. Embora pudesse dizer que “via de regra é vagina”, como outros já haviam dito, apenas comentava: “As mulheres sabem do que se trata”. 

Para o “Seu Silveira”, repórter não aborda, os piratas sim; e as pessoas só morrem na entrada do hospital se nela houver uma guilhotina. “Mulher e filhos nunca são deixados pelo marido ao morrer; eles é que não quiseram ir com ele de jeito nenhum”, esclarecia, em tom quase professoral.

Chefiado por Alberto Dines, ele ajudou a bolar aquela histórica primeira página sem manchete e sem foto, só com um texto corrido sobre a morte de Allende, em setembro de 1973. A Censura do general Médici proibira a publicação de manchetes e fotos sobre o golpe no Chile. Sem desobedecer à ordem dos milicos, o JB logrou chegar às bancas com uma primeira página dez vezes mais impactante.

Seu parônimo sergipano glorificou-se como repórter, o melhor de sua geração. Comandou algumas redações, mas se esbaldava mesmo era gastando a sola dos sapatos e esquentando as orelhas ao telefone, na trilha de uma reportagem. Até o final da vida, lamentou haver desperdiçado a chance de entrevistar Hemingway e nunca haver descoberto o que Tancredo Neves, tão logo eleito presidente, foi conversar, sigilosamente, com o general Ernani Ayrosal, um dos esteios do golpe de 1964, em seu apartamento (dele, Joel), em Copacabana. Pior: em seu quarto de dormir.

Joel cobriu a Segunda Guerra para os Diários Associados, por escolha pessoal de Assis Chateaubriand, impedido pela ditadura do Estado Novo de enviar para o front o repórter Carlos Lacerda. Seus relatos da campanha na Itália têm momentos de alta ficção e podem ser lidos até hoje, em livros antológicos, entre os quais destaco O Inverno na Guerra, com um tocante desfecho cinematográfico.

Por conta, sobretudo, de duas brilhantes reportagens sobre hábitos e extravagâncias da elite burguesa paulistana, publicadas na revista Diretrizes, de Samuel Wainer, Joel acabou justamente consagrado como o pioneiro entre nós do que se convencionou chamar de “jornalismo literário”. 

Nunca apurei por que, mas sempre que me encontrava, abria os braços e exclamava: “Flor do Lácio!”, como se fosse mais um apelido do que um elogio. Era uma víbora, no sentido de maledicente, traço que Chateaubriand talvez tenha sido o primeiro a perceber e exaltar como sua segunda maior virtude. Adorava Beethoven e execrava turistas, alpinistas, “tocadores de cavaquinho gordos” – e João Gilberto. 

Dos colaboradores do Pasquim, ninguém enviava mais notas para a seção de Dicas. Não dava para publicar todas; mas ele jamais se queixou da seleção que eu, como editor da seção, era obrigado a fazer. Se não tinha a quem pichar, mandava um pau, o mais das vezes gratuito, no seu Bei de Túnis, João Gilberto. Mas é claro que não foi por isso que o prenderam sete vezes durante a ditadura militar.

É JORNALISTA E ESCRITOR, AUTOR DE ‘ESSE MUNDO É UM PANDEIRO’