sexta-feira, 2 de outubro de 2020

Reciclagem pede investimento público e ainda depende do catador, FSP

 SÃO PAULO

O Brasil é o campeão mundial na reciclagem de latas de alumínio e, desde 2006, este índice permanece acima de 90%. Os bons números, porém, param por aí: se, por ano, o país gera cerca de 80 milhões de toneladas de resíduos sólidos, apenas 4% disso é reciclado e 40% têm destinação imprópria, mostram dados da Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais).

Essa discrepância ajuda a entender o cenário atual do país, dez anos após a implementação Política Nacional de Resíduos Sólidos (PNRS). Falta investimento em infraestrutura por parte de políticas públicas e a cadeia de reciclagem ainda depende muito do catador —por isso, tanta latinha reciclada—, que faz um trabalho mal remunerado. Essa é a avaliação dos debatedores do seminário Sustentabilidade e Saneamento, realizado em formato virtual pela Folha nesta terça (29).

A jornalista Fernanda Perrin em mediação do seminário virtual Sustentabilidade & Saneamento, realizado pela Folha, na terça (29) 
A jornalista Fernanda Perrin em mediação do seminário virtual Sustentabilidade & Saneamento, realizado pela Folha, na terça (29)  - Lucas Seixas/Folhapress

Além do impacto ambiental, isso também significa enterrar cerca de R$ 16 bilhões por ano. “Resíduo sólido é uma utilidade, como água e luz”, diz Luiz Gonzaga, diretor-presidente da Abetre (Associação Brasileira de Tratamento de Resíduos e Efluentes), lembrando que resíduos podem gerar emprego e renda, se descartados corretamente, com sua reutilização como matéria-prima ou tornando-se subprodutos.

Ao contrário de Gonzaga, que acha a PNRS moderna, a especialista em resíduos sólidos Sylmara Dias diz que a medida “pensa tecnologias do século 20” e mal dialoga com a realidade. “Pouco avançamos em pensar o resíduo e a multiplicidade de municípios do país, onde 70% é de pequeno porte, com baixa capacidade de investimento e de técnica para lidar com o tamanho do problema que é o resíduo sólido”, afirma.

Professora da Universidade de São Paulo, Dias diz que é preciso superar a lógica de enterrar resíduos e começar a pensar em valorizá-los. “Há uma lógica de levar tudo para o aterro, um sistema muito custoso. Precisamos valorizar o papel do catador e das cooperativas de reciclagem.”

Para o grafiteiro Mundano, que é ativista e fundador a ONG Pimp My Carroça, os catadores têm papel essencial e fazem serviços que deveriam estar a cargo de municípios e empresas: coleta seletiva, limpeza pública e logística reversa. “A maioria dos catadores está num sistema informal e eles fazem prefeituras e empresas economizarem bilhões de reais”, diz.

O ativista também é criador do aplicativo Cataki, que conecta catadores com pessoas que querem reciclar seu lixo. A plataforma é colaborativa e sem fins lucrativos.

Mundano diz que os catadores são mais capacitados do que o senso comum acredita. “No Cataki, 60% usam carros motorizados e muitos têm MEI [microempreendedor individual].”

Para ele, um sistema de inclusão com os catadores resolve a questão ambiental e a social. “O exemplo da lata de alumínio mostra que conseguimos avançar se promovermos disrupção da cadeia. Os catadores são uma força de trabalho que responde com estímulos ao ser reconhecida.”

Gonzaga diz que, em São Paulo, os problemas começam na base da cadeia. “Deveríamos ter uma coleta feita de outra forma, não com caminhões compactadores.”

Como uma bola de neve, se a coleta é feita de maneira inadequada, o resto do ciclo fica comprometido. Além de dificultar o trabalho dos catadores e cooperativas, que precisam gastar mais tempo para separar os materiais, o reaproveitamento cai porque o material fica contaminado.

Na mesma linha de Gonzaga, Dias chama a atenção para a importância de políticas preventivas: “Não podemos olhar para o resíduo só depois que ele foi formado, perturbando a cidade”.

Em São Paulo, todas as empresas com CNPJ precisam ter cadastro de resíduo após uma medida de 2019 instituída pela gestão Bruno Covas (PSDB).

As empresas grandes geradoras de lixo (com mais de 200 litros de resíduos comum por dia), precisam informar as terceirizadas contratadas para a coleta sobre o destino desse material.

Todos os debatedores concordam que a medida é necessária. Mas Mundano defende uma maior flexibilização nas exigências para quem faz a coleta. “Os requisitos só permitem você contratar outras empresas grandes. Uma cooperativa não pode participar de um processo como esse. Se queremos promover coleta seletiva, temos que olhar para o que nós temos, essa mão de obra de catadores.”

Com a proximidade das eleições municipais, Dias chama a atenção para a importância de transparência do poder público. “Precisamos pensar no plano de metas em todas as cidades, mas também no sistema de monitoramento cotidiano do serviço.”

Erramos: o texto foi alterado

Luiz Gonzaga é vice-presidente da Abetre (Associação Brasileira de Empresas de Tratamento de Resíduos e Efluentes), não Abrelpe (Associação Brasileira de Empresas de Limpeza Pública e Resíduos Especiais). O texto foi corrigido.

Ruy Castro Samuel, o homem que estava lá FSP

 Num curso para repórteres de uma revista de São Paulo, há uns 20 anos, um dos monitores aconselhou a classe a desconfiar de histórias muito contadas e dadas como verdadeiras. Fazendo parte da mesa, concordei. Mas, depois, ao ensinar que o bom repórter não pode perder uma oportunidade, citou a clássica história de Samuel Wainer, em 1949, indo ao Sul para uma reportagem qualquer e decidindo, de repente, mandar o teco-teco descer na fazenda do ex-ditador desterrado Getulio Vargas, em São Borja, para entrevistá-lo. E, então, por seu intermédio, Getulio anunciou que iria voltar à cena —o que aconteceu. Um furo, uma bomba, como se diz em jornalês.

Aí discordei. Essa não seria uma típica história a se desconfiar? Quem garantia que fosse verdade? Silêncio na mesa. Foi como duvidar da ressurreição de Cristo. Wainer era um ídolo em São Paulo. Sua palavra era lei, e eu não tinha nenhum fato a apresentar. A meu favor, apenas a convivência com jornalistas do Rio que haviam trabalhado com Samuel e, por conhecê-lo bem, não comprariam dele uma rotativa usada.

Não que não o admirassem por seu dinamismo, generosidade e genialidade para fazer jornal. Sua maior criação, a Última Hora, marcara época. O que censuravam nele era a maravilhosa falta de caráter, a aptidão para certos negócios, as relações nem sempre lisas com dinheiro —e isso antes mesmo do financiamento de Última Hora pelos bancos oficiais de Getulio.

As peripécias de Samuel tornam irresistível a leitura de "Samuel Wainer - O Homem Que Estava Lá", sua biografia por Karla Monteiro, que acaba de sair. Entre elas, a que ele tomou de seu amigo Azevedo Amaral a revista Diretrizes, registrando-a em seu próprio nome sem que Amaral se desse conta —por ser cego.

Ah, sim, a entrevista de Getulio. Não foi tão de repente. Já tinha sido agendada por seu patrão, Chateaubriand, com Alzirinha, filha do homem.

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samuel escreve em máquina com charuto na boca
O jornalista Samuel Wainer - Acervo Ana Chafir/Reprodução
Ruy Castro

Jornalista e escritor, autor das biografias de Carmen Miranda, Garrincha e Nelson Rodrigues.

quinta-feira, 1 de outubro de 2020

Eleições 2020 terão o maior número de candidatos militares dos últimos 16 anos, FSP

 A eleição de 2020 já é a disputa municipal com o maior número de candidatos policiais e militares dos últimos 16 anos. Em números absolutos, são 6,7 mil postulantes aos cargos de prefeito, vice-prefeito e vereador em todo país, superior ao total registrado em 2012. O aumento dessas candidaturas também é de 12,5% em relação à eleição de 2016. Esses números, no entanto, podem ser ainda maiores, segundo especialistas, porque há casos de policiais ou militares que se autodeclaram apenas servidores públicos.

No levantamento feito pelo G1 na base do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) foram considerados policiais militares, civis, bombeiros militares, integrantes das Forças Armadas e militares reformados. Entre essas categorias, a que apresenta a maior variação proporcional é a de integrantes das Forças Armadas, com aumento de 48% no comparativo com 2016. Mas em números absolutos essa categoria soma apenas 182 militares. Policiais militares, por outro lado, mantêm o maior número de candidatos de toda a série, chegando agora a 3,5 mil postulantes a um cargo político.

Como variou o número de candidatos de militares, por patente, em cada eleição municipal entre 2004 e 2020 — Foto: Wagner Magalhães/G1

Como variou o número de candidatos de militares, por patente, em cada eleição municipal entre 2004 e 2020 — Foto: Wagner Magalhães/G1

O aumento das candidaturas de militares neste ano é levemente maior que o total das candidaturas, que teve um crescimento de cerca de 10% quando comparadas com as de 2016. A maior parte dos militares candidatos disputa uma vaga para as Câmaras municipais (5,9 mil). Outros 387 são postulantes ao cargo de prefeito.

Quantos militares disputam cada cargo nas eleições municipais de 2020 — Foto: Wagner Magalhães/G1

Quantos militares disputam cada cargo nas eleições municipais de 2020 — Foto: Wagner Magalhães/G1

A distribuição dos candidatos militares por partido mostra que o PSL, partido pelo qual o presidente Jair Bolsonaro foi eleito em 2018, apresenta o maior número de registros. São 649 candidatos. Logo depois aparecem Republicanos (433), PSD (422) e MDB (402).

Número de candidatos militares, por partido, nas eleições municipais de 2020 — Foto: Wagner Magalhães/G1

Número de candidatos militares, por partido, nas eleições municipais de 2020 — Foto: Wagner Magalhães/G1

Na avaliação do professor de ciência política da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Adriano Codato, o crescimento de candidaturas de militares costuma estar associada a crises na área da segurança, quando o tema ganha muita visibilidade e acaba estimulando a participação de agentes da segurança nas eleições. O aumento neste ano, no entanto, pode estar associado à eleição de Bolsonaro.

“Como a crise de segurança pública já se tornou uma questão obrigatória da agenda política, como acesso à saúde, a questão da política de educação, e não houve um grande evento crítico, exceto as execuções aleatórias no Rio de Janeiro, a eleição de Bolsonaro em 2018, um candidato cuja carreira política esteve bastante identificada com os agentes de segurança, funcionando como um ‘super-sindicalista’ dessas categorias sociais de Estado, é razoável especular que sua presidência tenha trazido mais visibilidade a esses atores políticos e, assim, aberto uma janela de oportunidade a mais”, diz Codato, que é também coordenador do Observatório de Elites Políticas e Sociais do Brasil na UFPR.

A participação de mais candidatos militares altera o tipo de campanha. Segundo Codato, militares na política tendem a estimular discursos mais radicais de lei e ordem, mas ele destaca outro ponto relativo à atuação de políticos militares nas casas legislativas.

“A presença de forças repressivas do Estado nas campanhas eleitorais em geral traz mais radicalização para o discurso político, mas, também em termos gerais, é uma pregação aos radicais já convertidos ao radicalismo. O que um estudo recente aqui da UFPR mostra é que a atuação parlamentar dos policiais militares nas Assembleias Legislativas mostra baixa iniciativa e baixa capacidade de aprovação de temas ligados à segurança”, observa Codato.

Diretor presidente do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, Renato Sérgio de Lima considera negativa a eventual eleição de candidatos militares porque se cria mais confusão entre os papeis que eles terão que desempenhar. Ele defende o afastamento definitivo de servidores que desejam concorrer a cargos eletivos.

“Não há fronteiras nítidas entre polícia e política e isso é ruim. O uso de títulos militares ou cargos como ‘delegados’ pelos candidatos estimula a confusão e a ideia de voto pela ‘ordem’. Isso é ruim e o Brasil precisa olhar com cuidado. Juízes e promotores precisam sair das carreiras caso queiram ser candidatos. Agora, se saírem das carreiras, é legítimo, é saudável que exista o interesse pela política. É do jogo democrático. O que não dá é querer o melhor dos dois mundos”, afirma Lima.

Segundo o diretor-presidente do Fórum de Segurança, o interesse dos militares pela política vem crescendo antes mesmo de 2018, e parte disso se deve ao que ele chama de uma “convergência ideológica”, que uniu interesse pela pauta da ordem e dos costumes, e não um interesse pela política de segurança em si.

“Vejo o movimento de crescimento dos policiais na política como um processo que teve início muito antes do que 2018, que foi apenas o ápice de um processo de convergência ideológica entre pautas policiais e a pauta bolsonarista. Os policiais são peças-chave para entender o bolsonarismo, que não é só um projeto da família Bolsonaro. É a tradução de uma retomada conservadora mais ampla no Brasil. O foco deles não é a segurança pública em si, mas o debate sobre ordem e costumes, onde a ideia de autoridade ganha relevo”, aponta Lima.