quinta-feira, 3 de outubro de 2019

Fernando Schüler - Normalidade à brasileira, FSP

O que falta ao governo Bolsonaro é exatamente um 'projeto nacional'

Dias atrás fiz uma análise do discurso de Bolsonaro na ONU e recebi um comentário interessante. O sujeito dizia que minha avaliação estava OK, mas tinha um problema.
Eu parecia supor que o Brasil vivia uma situação de “normalidade democrática”. Terminava dizendo achar completamente “anormal” qualquer pessoa que havia gostado daquele discurso.
Curiosa visão de pluralismo político contida nesta ideia: quem discorda de mim não é apenas alguém que pensa e defende valores diferentes dos meus. É simplesmente anormal.
O que poderia ser apenas mais uma besteira, típica da internet, me pareceu um sintoma do Brasil atual. Na outra semana, escrevi algo sobre as relações entre Executivo e Congresso e fui repreendido, por um velho amigo, dizendo que o simples fato de fazer analise política, no Brasil de hoje, sem “denunciar e tomar posição”, era uma “rendição à barbárie”. Seria o mesmo que analisar o quadro partidário na Alemanha à época da ascensão do Führer, nos anos 1930.
É isso. Fácil, fácil, escorregamos para a mesmíssima intolerância que imaginamos combater. Nos tornamos uma peça do tribalismo vazio que marca nossas democracias. As guerras culturais dão o tom, o nível de participação dos cidadãos explodiu e com ele a organização de interesses e visões de mundo, no que antes chamávamos de “sociedade civil”.
O fato é que vivemos um dualismo. No mundo da retórica e das redes sociais, reina a fantasia sobre a crise brasileira. A própria palavra “crise”, de tão abusada, perdeu o sentido.
Há um pouco de tudo neste mundo curioso. Na recente decisão do STF disciplinando as alegações finais, em processos com réus delatores, li gente bacana dizendo que nossa Suprema Corte havia transformado o Brasil numa “ditadura dos delinquentes de todo tipo”.
De um teórico governista, li a provocação tola: “Ainda não será mesmo a hora de falar em um cabo e um soldado?”. Do lado que perdeu a eleição, o conteúdo é farto. Os teóricos do “risco democrático” cada vez mais torcem para que esqueçam suas previsões de que o nosso hino seria trocado pela Giovinezzi fascista e camisas negras desfilariam, ao cair da tarde, pela orla de Copacabana. 
No mundo real da política, o cenário é outro. Vivemos um quadro típico da normalidade à brasileira.
Vimos se formar uma maioria reformista, no Congresso Nacional, que desde a PEC do teto, em 2016, obteve vitórias sistemáticas que chegaram a 353 e 345 votos, na Câmara, nas recentes votações da reforma da Previdência e MP da Liberdade Econômica. Este é, por certo, nosso principal ativo político.
Mas há zonas de sombras à frente. Não avançamos nada no plano da reforma das instituições políticas.
Ainda em junho, o TSE entregou a Rodrigo Maia um projeto de reforma que previa a introdução do voto distrital já para as eleições de 2020.
Coordenado pelo ministro Luís Roberto Barroso, o projeto era inteligente e factível, mas ninguém deu bola. Estávamos todos preocupados com a “barbárie” do último tuíte não sei de quem, enquanto o Congresso aprovava um afrouxamento geral dos controles sobre o uso do dinheiro público nas eleições. 
Acho curioso quando escuto falar no “projeto bolsonarista” para o país. Imagina-se que frases soltas, ditas aqui e ali, possam funcionar como uma ideia de país. Confesso não ver nada disso.
Este é um governo de baixo consenso em relação a sua própria agenda econômica de liberalização, e isso fica claro com as indefinições quanto à reforma tributária, a inexistência de um projeto minimamente consistente de reforma do Estado, a falta de apetite político para aprovar pautas que o próprio governo apresentou, como a autonomia do Banco Central, e à lenta desidratação a que foi submetida a reforma da Previdência.
Talvez a cara verdadeira do Brasil de hoje seja mesmo esta: a de um país que depende de um leilão do pré-sal para fechar as contas, não irá investir virtualmente nada, ano que vem, e fala em fazer uma reforma tributária sem reduzir um centavo sequer da carga tributária de 35% do PIB. 
O que falta é exatamente um “projeto nacional” ao governo. A última vez que ensaiamos algo parecido com isso foi à época do programa de estabilização econômica e reforma do Estado, nos anos 1990.
Projeto por certo inconcluso. Imaginar que as orações da ministra Damares, os tuítes da turma palaciana e as palestras metafísicas de nosso chanceler-filósofo expressem um “projeto de país” não passa de uma fantasia divertida. Estamos muito longe disso, neste país em que a normalidade beira ao tédio.
Fernando Schüler
Professor do Insper e curador do projeto Fronteiras do Pensamento. Foi diretor da Fundação

Mariliz Pereira Jorge A burrice e o atraso, FSP

Governo adora se espelhar em políticas de EUA e Israel, mas não quando assunto é legalizar a maconha

O Brasil foi o último na América Latina a abolir a escravidão, em 1888. Quase um século separa a mudança iniciada nas sociedades mais desenvolvidas, como a Dinamarca, que proibiu em 1792 o comércio de escravos. Pelo andar da carruagem, o mesmo vai acontecer com outros temas que já passaram a ter o entendimento revisado, como a legalização da maconha. 
Não temos mais as barreiras de informação, comunicação e tecnologia, que sempre contribuíram para nos deixar na lanterninha do desenvolvimento. Mas a chance de a Anvisa debater o assunto com seriedade e acompanharmos os avanços e as transformações pelas quais o mundo passa esbarra no pior tipo de combinação: o conservadorismo e a burrice de nossos governantes. 
De um lado, o ministro da (falta de) Cidadania, Osmar Terra, insiste numa epidemia de drogas inexistente e acusa o "lobby maconheiro" para melar a regularização do uso medicinal da maconha. Do outro, o titular da Saúde se posicionou contra o plantio mesmo para as necessidades terapêuticas, porque "seria uma droga a mais para lutar." 
Cerca de 35 países já deram um passo à frente. É curioso que este governo, que adora se espelhar nas sociedades americana e israelense, ignore suas políticas sobre o assunto. Nos EUA, em mais de 30 estados, remédio de maconha é legal. Cerca de uma dezena liberou geral.
Israel pesquisa a maconha desde os anos 1960. Na década seguinte, aprovou o uso mediante receita. Em janeiro, novas leis abriram caminho para a exportação do produto, e, mais recentemente, o uso recreativo foi flexibilizado. Há apostas de que o mercado da erva vá ser a próxima "grande indústria" no país, que já tem mais de cem startups, além do clima considerado perfeito para a plantação. 
E a gente aqui, na rabeta da história, juntinho com os países mais atrasados, na mão de gente tosca, vendo o bonde civilizatório passar.
Mariliz Pereira Jorge
Jornalista e roteirista de TV.