domingo, 17 de agosto de 2014

Os pais e a escola - CONTARDO CALLIGARIS


FOLHA DE SP - 14/08


Quase todo envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos não tem efeito --ou tem efeito negativo


Alguém, na burocracia da Educação Nacional francesa, já atribuiu notas boas a meus desenhos, tanto de tema livre (mais "artísticos") como figurativos (uma banana, uma laranja, uma maçã ou, mais difícil, uma alcachofra).

De qualquer jeito, não tenho do que me gabar. As notas foram decididas pensando que o autor dos desenhos fosse meu filho, que na época tinha dez anos.

Não havia outro jeito. A mãe de meu filho, de quem eu tinha me separado, aceitara que ele morasse um ano no Brasil comigo, mas à condição que ele não interrompesse sua escolaridade francesa. Em Porto Alegre, onde eu morava, isso só era possível se ele fosse escolarizado por correspondência.

A cada sexta-feira, chegava da França um temível envelope da Educação Nacional, com todo o necessário para cumprir o programa escolar da semana. A dose de lições de casa era assustadora e inesgotável.

Durante um ano, fiz lição de casa com meu filho. No domingo acontecia a arrancada final, pois o envelope das lições feitas devia imperativamente sair pelo correio na segunda: a gente trabalhava até as primeiras horas da madrugada, quando eu me encarregava dos desenhos de artes, enquanto ele completava o resto.

1) A quantidade de lições era insensata; 2) Estudar por correspondência era insensato, porque a escola deveria servir para estudar, mas também para socializar as crianças; 3) Eu fazer parte das lições dele (não só de artes) era insensato.

Apesar disso, num tributo ao espírito da pedagogia contemporânea, pela qual é bom que os pais se envolvam quanto mais possível na escolaridade dos filhos, eu imaginava que nossa "colaboração" criaria uma grande motivação futura.

Hoje, enfim, dá para afirmar que eu estava errado. Foi publicado em 2013 "The Broken Compass: Parental Involvement with Children Education" (a bússola quebrada: envolvimento dos pais na educação das crianças - Harvard University Press), em que os autores, K. Robinson e A. L. Harris, sociólogos, verificaram a eficácia (ou não) do envolvimento dos pais nos estudos dos filhos.

Eles estabeleceram 63 critérios para medir o envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos e procuraram os efeitos desse envolvimento ao longo de três décadas. Pois bem, eles chegaram à conclusão que quase todo envolvimento dos pais na vida escolar dos filhos é sem efeito, quando não tem efeito negativo.

Se você ajuda as crianças a fazer a lição de casa, isso vai melhorar temporariamente as notas, mas, a médio e longo prazo, isso não melhorará a performance escolar dos seus rebentos. Apenas satisfaremos nossa vontade imediata de ver notas melhores nos cadernos de nossos filhos.

Se você sacrifica seu fim de semana para estar na escola, vendendo cupcakes na festa junina porque ouviu dizer que o envolvimento dos pais na vida da escola é um grande motivador para as crianças, saiba que, realmente, não é preciso.

Claro, sou parcial (não gosto de cupcakes e não gosto de festa junina), mas está provado que esse tipo de envolvimento dos pais não tem efeito constatável.

Diga-se o mesmo para as reuniões trimestrais com cada professor de nossas crianças, matéria por matéria: você pode ir, mas quando der, ok?

Robinson e Harris, em suma, sugerem que voltemos à antiga separação de casa e escola, as quais não precisam compartilhar problemas num excesso de fala sobre a criança.

Desde os anos 1970, acreditamos que uma aliança escola-família seja boa para a performance escolar dos nossos filhos. Descobre-se que, às vezes, é bom que a criança possa descansar dos pais quando está na escola --e descansar da escola quando está em casa.

O que se salva da ideologia da aliança casa-escola? Robinson e Harris acham que três coisas, principalmente, têm efeito positivo: 1) o valor que os pais atribuem à educação, 2) sua capacidade de conversar com os filhos sobre o futuro deles, 3) a leitura em voz alta com os pequenos.

O engraçado é que são coisas que os pais fazem em casa, com filhos e filhas --coisas, em suma, que não pedem nenhuma aliança especial entre a casa e a escola.

As universidades estão fora da agenda


Em janeiro passado, o governo federal fechou a maior faculdade de medicina do país, a Gama Filho. Era uma catedral de mutretas, mas tinha 2.400 alunos que pagavam regularmente suas mensalidades e foram mandados para o inferno burocrático das transferências. Em abril, o reitor da Universidade de São Paulo, a maior e melhor do país, anunciou que em dois anos a instituição poderá esgotar suas reservas financeiras, pois em 24 meses comeu R$ 1,3 bilhão de um caixa de R$ 3,6 bilhões.
Claro, os doutores gastam 105% do orçamento de R$ 4,5 bilhões para pagar a folha de pagamento. Até 2012 o atual reitor, Marco Antonio Zago, e seu antecessor, João Grandino Rodas, ganhavam acima do teto legal de R$ 18 mil mensais. Um, R$ 24 mil. O outro, R$ 23 mil.
Esses assuntos estão fora dos palanques. Se coisa parecida estivesse acontecendo no Uzbequistão, alguém estaria reclamando. Nos dois casos, a ruína foi construída ao longo dos anos. A fiscalização do Ministério da Educação sabia que a Gama Filho acabaria explodindo. Os doutores da USP sabiam que estavam arruinando as contas da Casa. Em janeiro de 2013, ela já gastava 93% do orçamento com a folha. Em julho passado, a conta chegou a 105%.
Nas duas outras universidades do Estado, a Unicamp e a Unesp, a situação é parecida. Não se pode dizer que o governo de São Paulo lhes nega dinheiro, pois suas receitas estão fixadas na Constituição: para elas vai 9,57% da arrecadação do imposto de circulação de mercadorias que fica para o Estado. Num cálculo grosseiro, quem compra uma mercadoria de R$ 1.000 pinga uns R$ 13 na USP, Unesp e Unicamp.
Esse dispositivo sustenta a autonomia financeira das universidades, mas elas detonaram suas autonomias contábeis. Como o dinheiro é público, a cada estouro os hierarcas falam em austeridade, prometem cortes e obtêm greves. Há departamentos da USP nos quais, em 13 anos, aconteceram 12 greves. No ano passado, a reitoria esteve invadida durante 42 dias. As últimas greves parciais de USP, Unicamp e Unesp duraram mais de 70 dias. Na Unesp de Araraquara, 136 dias, sempre com a expectativa do pagamento dos dias parados. Se os recursos aumentam, a ciranda recomeça com mais expansões, contratações e gestão temerária.
No debate dessa questão superpõem-se conflituosamente diferentes visões da universidade. Admita-se que todos têm razão, ainda assim a aritmética prevalece. Briga-se por qualquer coisa. A família do banqueiro Pedro Conde deu R$ 1 milhão à Faculdade de Direito para a construção de um auditório que levaria seu nome. Envolvida em picuinhas e paixões políticas, a doação virou um litígio judicial. Bilionários brasileiros já deram mais de 100 milhões de dólares para universidades americanas, nenhum passou por esse tipo de constrangimento.
Panelinhas, inépcias e esbanjamentos fazem parte do cotidiano de todas as universidades do mundo. Elas se diferenciam na extensão dos danos que causam às instituições e na rede de cumplicidades e/ou tolerâncias em que se amparam. Uma piada preconceituosa contra mulheres disparou um processo que acabou no defenestramento do presidente de Harvard, em 2006. De lá para cá, pelo menos seis reitores foram mandados para casa.
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DILMA
A doutora Dilma pisou no freio e pediu que o projeto PLS 559 fosse retirado da pauta de votação do Senado para que o Planalto estudasse e discutisse melhor o caso.
Ele praticamente revoga a lei das licitações em vigor e cria diversas gracinhas ao gosto de todos, das empreiteiras que fazem hidrelétricas federais aos fornecedores de papel higiênico municipal. Acredita-se que ele voltará à pauta do Senado daqui a uns 30 dias. No crepúsculo dos mandatos, setembro será o grande mês da safra arrecadatória dos candidatos.
A melhor das gracinhas era uma emenda segundo a qual uma empresa ganhava a licitação para construir um aeroporto, ou seja lá o que for, e levava junto o direito de administrar o shopping e os hotéis que estivessem no projeto.
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BARBOSA NO TWITTER
Joaquim Barbosa saiu do Supremo Tribunal, mas foi para o Twitter. Tem 26 mil seguidores e já deu os primeiros tiros, prometendo continuar.
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MADAME NATASHA
Natasha concedeu sua enésima bolsa de estudo à doutora Dilma pela revelação de que "há uma assimetria de informações entre nós, mortais, e o setor de petróleo". O mundo do petróleo pode ser complicado, mas a doutora cria assimetrias de compreensão quando fala em dilmês.
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HUMOR
Há prefeitos que colocam seus retratos nas páginas de suas administrações no Facebook. Fernando Haddad inovou. No dia 29 de julho, aparecia uma fotografia de um detalhe do prédio da prefeitura. Em primeiro plano, um poste.
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ENFIM, O INÍCIO DA CAMPANHA
No próximo dia 19 começam o horário de propaganda gratuita na televisão e a campanha eleitoral a vera. Se Deus é brasileiro, os candidatos começarão a falar língua de gente. Por enquanto, falam em "reforma tributária". É uma lorota, porque só tem sentido se for detalhada.
No mais, coisa tributária é assunto relacionado com tribos indígenas. "Centro da meta", numa hipótese bem educada, é a marca do pênalti. Além disso, há excesso de cerebrações em torno das pesquisas eleitorais. Desde maio, elas dizem mais ou menos a mesma coisa. A doutora, submetida a uma saudável contradita, arrisca ser levada a um segundo turno.
Pesquisas têm seu valor, mas, divinizadas como se fossem o centro da questão, viram um blá-blá-blá dispersivo. Por exemplo: o que sua família fará no domingo? Resposta: na segunda, tínhamos 35% de vontade de ir para a praia; na sexta, ficamos com apenas 32%, dentro da margem de erro. E daí? Vale lembrar que nas velhas democracias as pesquisas são subsídios acessórios.
Grosso modo, um terço do eleitorado não vota em Dilma. Esse é o índice de rejeição do PT desde 2002. Aécio Neves e Eduardo Campos continuam fazendo campanhas destinadas a converter os crédulos. O crédulo dobra seu ódio ao PT, mas seu voto continua do mesmo tamanho.
Na televisão, Dilma entrará com o dobro do tempo dos seus dois adversários, os efeitos especiais de João Santana e, para o bem ou para o mal, 12 anos de poder.
Imaginando-se um casal –Waldemar e Mariluce– com os problemas e projetos de uma família com renda de três salários mínimos, o que é que Aécio e Campos vão botar na mesa? Quem souber, como diria Ancelmo Gois, mande cartas para a Redação. 

Alternativas da Justiça - EDITORIAL FOLHA DE SP (pauta Nalini)


FOLHA DE SP - 17/08


Presidente eleito do STF e do CNJ acerta ao apontar necessidade de desafogar o Judiciário, estimulando mecanismos extrajudiciais


Eleito para presidir o Supremo Tribunal Federal (STF) e o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) pelos próximos dois anos, o ministro Ricardo Lewandowski sinalizou, na última quinta-feira (14), que sua gestão à frente do Poder Judiciário terá como uma de suas marcas o estímulo aos meios alternativos de solução de conflitos.

Há, de fato, enorme descompasso entre a estrutura judiciária nacional e o número de ações a ela submetidas. São, como calculou Lewandowski, "quase 100 milhões de processos em tramitação para apenas 18 mil juízes, dos tribunais federais, estaduais, trabalhistas, eleitorais e militares".

Na opinião do ministro, a situação decorre de uma certa mentalidade vigente no universo jurídico brasileiro, segundo a qual "todos os conflitos e problemas sociais serão resolvidos mediante o ajuizamento de um processo".

O resultado é conhecido: juízes assoberbados e uma Justiça que, pela sobrecarga, demora demais a dizer quem tem razão em uma controvérsia. A lentidão custa caro não só às partes diretamente envolvidas mas também ao país, incapaz, por exemplo, de oferecer um ambiente atraente para os negócios.

Felizmente, avolumam-se os sinais de que os operadores do Direito dão conta do esgotamento dessa visão tradicional da profissão. Em artigo publicado nesta Folha, Marcos da Costa, presidente da seccional paulista da Ordem dos Advogados do Brasil, defendeu maior estímulo às vias de negociação que dispensam a interferência do Judiciário.

Enquadram-se nessa categoria mecanismos como a mediação e a conciliação --em que os próprios envolvidos buscam um acordo--, além da arbitragem, em que as partes se submetem à opinião de especialistas no assunto e aceitam a decisão por eles emitida.

Todos esses instrumentos já vinham sendo estimulados por Joaquim Barbosa à frente do CNJ. É alvissareiro, por mais desavenças que o recém-aposentado ministro e Lewandowski tivessem, que prevaleça a orientação institucional desse órgão de importância crescente na organização da Justiça.

Se quiser dar uma contribuição específica nessa seara, Lewandowski poderia expandir os esforços para que também o Estado brasileiro, em todas as suas figuras jurídicas, use os meios alternativos nos processos de que é parte.

Afinal, não há como desafogar o Judiciário sem considerar o peso do maior litigante do país --o poder público está em 51% dos processos em tramitação nos tribunais.