quarta-feira, 5 de fevereiro de 2025

'Construir leva décadas, destruir basta um aloprado ganhar as eleições', diz Lula, sem citar Bolsonaro, FSP

 

Brasília

O presidente Lula (PT) aproveitou um evento sobre alimentação escolar nesta terça-feira (4), em Brasília, para criticar a gestão do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL), que ficou marcada por escândalos no Ministério da Educação, como mostrou a Folha em uma série de reportagens.

"Nós temos mais dois anos de governo. E vocês aprenderam uma lição: construir leva décadas, destruir basta um aloprado ganhar as eleições que ele destrói em quatro anos o que a gente fez em 20 ou fez em 30", disse o petista.

"A gente passa horas e horas, meses e meses construindo uma coisa. Entra um cara, num decreto e ele destrói tudo. Porque fica melhor criar CAC [referência a colecionadores, atiradores e caçadores] para as pessoas aprenderem a atirar do que que escola para as crianças aprenderem a estudar."

Lula participa da abertura do encontro nacional do Programa Nacional de Alimentação Escolar - Gabriela Biló/Folhapress

Leia aqui reportagem sobre a redução do limite de ultraprocessados na merenda escolar, medida anunciada nesta terça pelo governo federal.

Trump põe todos no colo da China, Elio Gaspari, FSP

 Donald Trump entrou na Casa Branca com a cabeça no fim do século 19. Naquele tempo o vigor da economia americana contrapunha-se a uma Europa dividida e a uma América Latina sonolenta. Se os Estados Unidos tinham rivais, depois de 1914 eles resolveram brigar com duas guerras. Em 1945, terminada a briga, a economia americana era, disparada, a mais forte do mundo. Do outro lado estava a falecida União Soviética. Veio a Guerra Fria e ela desmoronou.

Em poucas semanas o presidente americano ameaçou a Europa, encrencou com os dois vizinhos e com a China, a segunda economia do mundo.

O presidente dos Estados Unidos, Donald Trump - Carlos Barria - 31.jan.25/Reuters

Falta ao trumpismo a percepção de um lugar comum: a paciência chinesa. No final do século 19, o Império do Meio estava em franca decadência e ao final da Segunda Guerra, em 1945, era uma nação conflagrada pela guerra civil. Hoje, a situação é outra, misturando protecionismo e expansionismo, Trump joga uma parte do mundo no colo da China.

No dia de sua posse, Trump teve um sinal de que a famosa "destruição criadora" do capitalismo está num país teoricamente socialista. Na verdade, trata-se de uma ditadura de partido único, economicamente capitalista. Trump reclama porque consórcios chineses mandam no canal do Panamá, mas isso só acontece porque as empresas americanas deixaram de competir.

Foi-se o tempo em que a China treinava guerrilheiros. De 1964 a 1968, cerca de 40 militantes do Partido Comunista do Brasil receberam treinamento militar em Pequim e pelo menos dez morreram na guerrilha do Araguaia. Naquele tempo, a China e a União Soviética competiam com os Estados Unidos ideologicamente. Hoje a competição é exclusivamente econômica.

A visão de mundo do trumpismo quer ser expansionista e, ao mesmo tempo, isolacionista. O sonho dos Anos Dourados, que ficaram no passado, é hoje uma contradição em si mesma e a China se beneficia disso. Ela investe na infraestrutura pelo mundo afora, ocupando o espaço dos Estados Unidos. Além disso, se os chineses fazem carros numa fábrica que foi da Ford, o problema é da Ford e, portanto, da indústria americana. Para ficar no caso panamenho, são os chineses que constroem a ponte sobre o canal, coisa de US$ 1,3 bilhão. Os americanos sequer competiram.

No dia em que Trump encrencou com a Colômbia, o embaixador chinês em Bogotá disse que as relações entre os dois países estavam em "seu melhor momento". Aí está a vulnerabilidade do surto trumpista: onde ele encrenca, lá entra o chinês.

O trumpismo tem algo de subversivo em relação aos valores seculares da democracia americana, enquanto o governo chinês prossegue na tradição milenar de seus imperadores. Às vezes essa tradição leva a desastres, com fome e até mesmo casos de antropofagia. Há décadas, nem mesmo Donald Trump é capaz de achar que a máquina chinesa anda para trás.

O presidente americano tem um gosto pela bravata e esse é mais um problema. O Império do Meio tem horror a estridências. A ideia de impor tarifas ao México e ao Canadá para suspendê-las temporariamente dias depois é coisa que a China jamais fez, nem durante seus momentos de delírio. Afinal, seus governantes não precisam cultivar diariamente o público interno.

terça-feira, 4 de fevereiro de 2025

A extrema direita sequestrou a rebeldia, Wilson Gomes - FSP

 Há, evidentemente, muitas razões pelas quais pelo menos metade dos eleitores norte-americanos tem preferido Trump nas últimas três eleições. E essas razões provavelmente são muito parecidas com aquelas que levam pelo menos metade dos eleitores brasileiros a continuar optando por candidaturas presidenciais da extrema direita desde 2018.

O que me preocupa, no entanto, é a resistência da esquerda e dos progressistas em se implicar nessa virada eleitoral para a extrema direita, que tem se repetido ao longo desta última década.

"Implicar-se" significa reconhecer que a própria esquerda está errando e que seus erros são parte das razões que alimentam o vertiginoso crescimento do apoio a extremistas, desta vez em conformidade com as regras do jogo da democracia eleitoral.

O que tem sido constante nas promessas de campanha de Trump, no seu discurso de posse, nas suas primeiras ordens executivas e em suas declarações? Duas coisas. Um etnocentrismo sem limites, expresso na retórica radical de colocar os interesses americanos acima de tudo, proteger a segurança nacional, romper com compromissos multilaterais e restaurar o orgulho e a prosperidade do país. E uma promessa direta e sem concessões de desmontar a agenda e a cultura progressista e de esquerda, especialmente no que diz respeito à ideologia e às práticas identitárias.

O que há em comum entre essas duas diretrizes? Uma posição moral baseada na força e na audácia e um líder que se vende como inabalável, sem compaixão, que nunca pede desculpas, recua ou demonstra vulnerabilidade. Esse é um etos vitalista e afirmativo, não há margem para dúvida.

Na ilustração, em bico de pena colorido sobre fundo branco, dois indivíduos vistos da cintura para cima ocupam o espaço. A ação entre as duas traduz o título da coluna. À frente, um indivíduo desenhado com traços em vermelho está começando a murchar, como se fosse um boneco plástico inflável, seu rosto está já deformando. No topo da cabeça, uma tampa de café para viagem, com o orifício para canudinho, que deixa ver o conteúdo vermelho. Atrás, a figura de Trump, vestindo paletó, gravata e na lapela, um pin presidencial da bandeira americana. Trump tem duas mãos direitas. Com uma delas, segura um triangulo amarelo com o olho de Deus gravado nele. Com a segunda mão direita, pressiona a tampa para não se mexer. Ele suga com força o conteúdo do individuo à frente, através dum longo canudo com listras azuis e brancas, flexível e sinuoso. Completando a ilustração para destacar a figura de Trump, a sombra dele em textura cinza escura se projeta sobre o fundo branco.
Ariel Severino/Folhapress

Enquanto isso, para qualquer lado que se olhe, o que os progressistas estão fazendo? Na semana passada, exigiam o desligamento de um sócio de uma editora que se comportou mal com sua mulher há 15 anos. Nesta semana, pedem que uma cantora seja condenada por racismo religioso, proibida de se apresentar e obrigada a pagar uma indenização milionária por ter trocado o nome de Iemanjá pelo de Jesus em uma performance.

Os progressistas estão presos a uma lógica de retaliação e revanche. O que oferecem não é uma nova cultura afirmativa, mas uma ênfase na culpa coletiva e histórica, que reforça a ideia de que o indivíduo está eternamente preso a um passado que o condena. Seu motor é, em grande medida, o ressentimento.

Uma grande parcela da sociedade experimenta o identitarismo como uma moralidade imposta, em que a linguagem deve ser reformulada (novos pronomes, palavras proibidas, vocabulário "neutro") e o passado deve ser reescrito. Direitos considerados básicos passam a ser vistos como privilégios injustificáveis, e o indivíduo deve carregar culpas históricas e sociais que não são diretamente suas.

Quando o politicamente correto é vivido e sentido por milhões de pessoas como uma forma de opressão, a alternativa a ele aparece como libertação. É perfeitamente plausível afirmar que um dos principais atrativos do trumpismo reside na oferta de um vitalismo afirmativo para amplos segmentos da população que se sentem oprimidos por essa mentalidade e suas formas institucionais.

Essa dinâmica se assemelha muito às revoluções morais do passado. Em certo sentido, o trumpismo promete ser para os conservadores o que os movimentos contraculturais dos anos 1960 foram para os progressistas —uma rebelião contra normas repressivas e sufocantes. A diferença é que, agora, a rebelião é contra a esquerda, seus novos dogmas, sua insaciável sede de compensações e cotas.

A extrema direita sequestrou o imaginário da rebeldia, um papel que por muito tempo foi exclusivo da esquerda. Durante o século 20, eram os progressistas que desafiavam normas conservadoras e pregavam a liberdade contra a repressão. Agora, com o politicamente correto transformado na nova ortodoxia cultural, a extrema direita se apresenta como a verdadeira força rebelde.

Isso permite ao trumpismo se vender como um movimento de insubmissos, de gente que não se dobra à patrulha ideológica. E, pelo menos na fachada, isso evoca o "sim à vida" do vitalismo positivo, exalta o impulso, a espontaneidade e o desprezo pelo conformismo social e moral.

Se a esquerda quiser reconquistar o terreno perdido, precisa abandonar a lógica da punição e do ressentimento e oferecer algo mais do que culpa e vigilância moral. Enquanto continuar gritando por mordaças, reparações e humilhações, seguirá entregando à extrema direita o argumento da rebeldia e da liberdade. Mas é claro que continuar pensando que quem vota em Trump é fascista é muito mais consolador.