Há um claro distanciamento entre a imagem vendida e a realidade vivida. Na prática, poder público e sociedade dão muito pouca atenção e valor às questões ambientais. Elas fazem bonito nos discursos, mas no cotidiano só são lembradas e (mal) tratadas quando as calamidades batem à porta. Despertam solidariedade, provocam susto, mas logo se muda de assunto até que no ano seguinte as enchentes e a seca voltem a provocar desastres cada vez mais graves.
Dados do Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) mostram que de 2015 para cá os focos de incêndio no país mais que dobraram. Eram 69 mil há nove anos e já são mais de 180 mil nos nove meses de 2024. Foram quatro governos diferentes no período —Dilma, Temer, Bolsonaro e Lula.
Vê-se, portanto, que o descaso não tem ideologia. Tampouco diz respeito apenas ao Poder Executivo. A indiferença se alastra ao Legislativo e se reproduz na sociedade.
Se a população estivesse realmente sensibilizada e mobilizada em torno do problema, o Congresso não estaria entre a inércia e o modo contravapor, dedicado a prover os interesses de suas altezas.
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É só olhar para a agenda eleitoral das disputas municipais. À exceção de cidades gaúchas, o tema das mudanças climáticas não entrou na pauta dos palanques como se esperava no auge da tragédia no Sul.
Verdade que hoje o presidente da República não teria ambiente para repetir a piada da "perereca" que, na visão dele de 15 anos atrás, atrapalhava a execução de obras. Ainda assim, o Lula 3 cedeu a pressões para ignorar o compromisso de campanha de criar uma autoridade climática e só o fez agora em meio ao sufoco do fogaréu.
Terá de se esforçar muito mais se não quiser fazer feio na COP30. Falta pouco mais de um ano.
Amazôniaecerradoardem, cobrindo mais da metade do Brasil com um manto de fuligem. Entre as grandes cidades do mundo, São Paulo tem a pior qualidade do ar. Rio Branco, no Acre, sufoca com o dobro de poluentes da capital paulista.
Diante do sinistro ambiental e de saúde, o país descobre que a mangueira do Estado para debelar as chamas está furada. Isso quando não a utiliza para deitar mais combustíveis fósseis na fornalha da mudança climática.
De um Congresso de onde só se esperam coisas ruins veio isso mesmo. Os 290 deputados e 50 senadores da Frente Parlamentar da Agropecuária fingiram não saber que a culpa pelas queimadas é do agro e cobraram explicações da titular do Meio Ambiente, Marina Silva (Rede).
Ela as deve, por certo, como todo ocupante de cargo público. Mas até o carpete do Salão Verde danificado no 8 de janeiro por simpatizantes da bancada ruralista sabe que a ministra é uma das poucas na Esplanada a fazer algo contra os incêndios.
A incongruência mora no Planalto. Luiz Inácio Lula da Silva (PT) deu para posar de bombeiro, mas o que o presidente diz e faz na encruzilhada da floresta e do clima mostra que sua disposição para apagar a fogueira do aquecimento global é tão confiável quanto a liderança de um ex-coach debaixo de chuva no Pico dos Marins.
Lula sacou do bolso uma pseudossolução para a míngua do rio Madeira, que pela primeira vez em seis décadas exibe menos de 1 m de profundidade e isola ribeirinhos: asfaltar a rodovia BR-319 (Porto Velho-Manaus). Como na BR-163 (Cuiabá-Santarém), rasgará uma frente de desmatamento por madeireiros e grileiros piromaníacos.
Seus ministros das Relações Exteriores e da Agricultura mandaram carta à União Europeia, enquanto amazônia e cerrado queimavam, defendendo o agronegócio incendiário. Pedem adiamento do Regulamento para Produtos Livres de Desmatamento, que vigoraria em dezembro e afetaria 30% das exportações à UE.
Nada se compara, porém, com a obsessão varguista de Lula e do PT com o gigantismo da Petrobras e a exploração de petróleo e gás na margem equatorial da amazônia. O pretexto é usar a renda dos fósseis para financiar a transição energética, uma balela.
Levantamento da ONG Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) noticiado pela coluna Painel S.A. indica que empresas do setor petroleiro se beneficiaram com uma renúncia fiscal de R$ 260 bilhões de 2015 a 2023. Só a Petrobras foi agraciada com R$ 117 bi (R$ 13 bi/ano).
Por outro lado, a estatal tem planos de aplicar US$ 5,2 bi (R$ 29,2 bi) em energias renováveis até 2028. Isso dá R$ 5,8 bi/ano, menos da metade do que vem sugando de subsídios na forma de impostos reduzidos —isso numa década em que a alta finança impôs ao país uma obsessão com equilíbrio fiscal à custa de gastos sociais.
Resumo da ópera: nem o governo Lula, nem o Estado brasileiro como um todo, tem um plano de ação coerente para descarbonizar a economia e mitigar o aquecimento global, seja estancando a maior fonte de emissões de carbono (desmatamento e queimadas do agro), seja abandonando a ideia fixa do petróleo.
Prometer desmate zero em 2030 é tão fácil quanto descumprir essa meta.
"Tô balançando, mas não vou cair, mas não vou cair, mas não vou cair", entoam 14 pessoas abraçadas, a maioria idosos. São 10h de uma segunda-feira e está começando mais uma roda de terapia comunitária, iniciativa que acontece no SUS e que tem ajudado os participantes a lidar com o sofrimento mental.
Na capital paulista, o número de rodas disparou depois da pandemia. Saltaram de 298, em 2021, para 15.346, no ano passado. Nesse período, mais de 118 mil pessoas participaram dessas práticas nas 116 unidades de saúde que as ofertam, segundo a Secretaria Municipal da Saúde.
No âmbito federal, o número de participantes mais do que dobrou nos últimos anos, segundo o Ministério da Saúde. Passou de 40,2 mil em 2022 para quase 91 mil, em 2023.
Segundo o ministério, a literatura científica demonstra a TCI proporciona impactos positivos na saúde mental, como o autocuidado, autonomia, confiança, coragem e autoconhecimento.
A Folha participou de uma roda no último 9, no Cecco (Centro de Convivência e Cooperativa) da Vila Maria/Vila Guilherme, zona norte de São Paulo. A prática começa com cada participante relatando o que gostaria de comemorar naquele momento.
A aposentada Kiki, 75, conta que naquele dia almoçaria com a filha, após um longo tempo de afastamento. Maria José Lima, 56, afirma estar muito feliz pelo aniversário de dois anos da neta, que tinha acontecido no fim de semana. A menina tem uma doença rara e muitos amigos se afastaram após o nascimento dela. A mãe temia que ninguém aparecesse na festa. "O salão estava cheio", diz a avó, sorrindo.
O passo seguinte da roda é abrir para os relatos sobre os sofrimentos emocionais que afetam cada um. Para descontrair, o psicólogo Marcel Marigo toca antes no violão o refrão "a terapia vem aí, oh-lêo-lêo-lá, a terapia vem aí, oh-lêo-lêo-lá". A enfermeira Jussara Otaviano o acompanha com um ukulele. Os participantes batem palmas.
Edgar, 74, diz que está triste e angustiado pelo fato de o irmão estar internado em estado grave. Maria Neide, 65, relata a dor que sente pela perda da amiga por suicídio. "É muito triste, a gente fica sem chão." Kiki lamenta a solidão e a falta de amizades. "Nunca consegui fazer amizade com ninguém. Desde criança foi assim, as pessoas se aproximam e depois se afastam de mim."
Ao fim dos relatos, o psicólogo pergunta quem já passou por situações parecidas e o que fez para resolvê-las. Após mais uma rodada de conversas, o grupo elege qual o caso que merece ser discutido mais amplamente.
O drama de Kiki é o mais votado. Alguns participantes compartilham dificuldades semelhantes e as táticas que adotaram para superá-las. Outros fazem perguntas diretamente a ela, sempre orientados a não julgá-la ou criticá-la.
Kiki, 75 (ao centro, de cabelos grisalhos), bate palmas durante a roda de terapia comunitária integrativa em centro de convivência na zona nZanone Fraissat/Folhapress
Kiki responde um a um e, aos poucos, vai se abrindo. Diz que costuma agradar as pessoas que gostaria de ter como amigas ("chamo para minha casa, faço café, bolo") e que fica triste e magoada quando elas não correspondem às suas expectativas. Ao final, é abraçada pelas colegas do grupo e se emociona. A roda terapêutica termina uma hora depois com lanche, suco e café para todos.
Segundo Marigo, a lógica horizontal da roda, com cada um compartilhando experiências e elas servindo de caminho para o outro, é a chave para a criação de vínculos entre os participantes.
"O terapeuta apenas organiza a roda. O grupo fala e a pessoa decide o que tem a ver ou não com ela. É o indivíduo que decide os rumos da vida dele. Nada é imposto. Isso estimula a autonomia e o senso de comunidade", diz ele.
O terapeuta apenas organiza a roda. O grupo fala e a pessoa decide o que tem a ver ou não com ela. É o indivíduo que decide os rumos da vida dele. Nada é imposto. Isso estimula a autonomia e o senso de comunidade
Ele afirma que pessoas que já estão em tratamento psiquiátrico ou psicológicos também podem participar das rodas terapêuticas e também se beneficiam bastante. "Uma coisa não exclui a outra."
De acordo com a enfermeira Jussara, os participantes relatam que saem mais aliviados desses encontros por verbalizar o que está causando sofrimento ou por entender que não estão sozinhos. "Mesmo os que não falam nada [na roda], depois, no cafezinho, conversam e aí começa a se formar redes de apoio."
Para ela, essas redes de apoio ganharam mais importância após a pandemia. "As pessoas se sentiram muito sozinhas e, agora, cada vez mais, estão conseguindo enxergar que precisam das outras."
Segundo o médico Adalberto Kiochi Aguemi, diretor da divisão de saúde integrativa da gestão municipal, além de participar das rodas terapêuticas, muitas pessoas aderem a outras atividades oferecidas nesses espaços, como ioga, dança circular e artesanato.
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Ele afirma que observa um impacto positivo das atividades na redução do uso de medicamentos, como antidepressivos e ansiolíticos. Os dados, porém, ainda estão sendo mensurados em estudos.
"As pessoas têm sofrimentos que, se não verbalizados, crescem e tomam uma dimensão muito maior. A gente acaba medicalizando muitos os sentimentos. Em uma fase inicial, esse sentimento de tristeza precisa ser acolhido e não medicalizado."
As pessoas têm sofrimentos que, se não verbalizados, crescem e tomam uma dimensão muito maior. A gente acaba medicalizando muitos os sentimentos. Em uma fase inicial, esse sentimento de tristeza precisa ser acolhido e não medicalizado
A enfermeira Ione de Carvalho Gama, gestora do Cecco da Vila Maria/VilaGuilherme, diz que, quando há necessidade, a pessoa é encaminhada para um acompanhamento psicológico ou psiquiátrico. Em uma ocasião, por exemplo, uma participante chegou na roda já em surto psicótico.
"A gente acionou a rede de saúde e conseguiu um psiquiatra na hora. Aqui não é um lugar de procedimentos, mas é um lugar em que a gente cuida para que as pessoas também usufruam do que a rede oferece."
O médico Aguemi reforça o papel das rodas terapêuticas na promoção da saúde mental. "É uma tecnologia leve, simples, barata, mas muito potente e que pode ser multiplicada. Ela resgata os saberes ancestrais, a música, o movimento."
Segundo ele, essa promoção da saúde mental também atinge os profissionais de saúde, seja na participação das práticas integrativas seja na realização de cursos de TCI, que são voltados para eles, inclusive os agentes comunitários de saúde. O número de profissionais treinados para conduzir as rodas na capital paulista passou de 90, em 2022, para cem neste ano.