segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

JOÃO ANTONIO DA SILVA FILHO Na barranca do mundo, FSP

 

João Antonio da Silva Filho

Mestre em filosofia do direito (PUC-SP), é presidente do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP)

Cheguei na barranca do mundo e fotografei o abismo. Não, não estou falando nem muito menos defendendo o terraplanismo. Busco na fantasia dos negacionistas a alegoria para descrever o momento. Para os defensores da democracia, a vida não anda fácil: vivemos numa era em que as versões viram verdades, e os fatos, meras alegorias a serviço de interpretações subjetivas, sem compromisso com autenticidade e coerência.

Falo das aberrações ditas em nome da liberdade, do negacionismo à ciência, dos autoritários travestidos de democratas e dos que incentivam a competição sem limites entre os indivíduos como mecanismo de desenvolvimento humano.

O presidente do Tribunal de Contas do Município de São Paulo (TCM-SP), João Antonio da Silva Filho - Marlene Bergamo 17.jan.18/Folhapress
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Para alguns que estão no poder no Brasil, de pouca leitura sobre liberalismo, o termo "liberdade" virou um mantra vazio a ser repetido sem compromisso com seu significado. Cultuam a narrativa da liberdade como valor absoluto, que hoje se encontraria ameaçada pelo "comunismo em ascensão". Quanto devaneio!

Como escreveu Aristóteles, "o homem é um ser gregário por natureza —nasceu para viver em comunidade". Portanto, a liberdade não é uma palavra vazia do tipo "direito de ir e vir", dissociada das relações intersubjetivas. Pelo contrário, pressupõe o reconhecimento das diferenças e se consolida no equilíbrio das relações entre indivíduos ou grupos de indivíduos. Aliás, a democracia é um mecanismo de composição das diferenças. É nela que se ancora a forma pactuada dos limites da liberdade.

Atravessamos um período histórico confuso. Talvez seja resultado de um mundo projetado para fazer da competição o mecanismo principal para medir o valor entre as pessoas. Essa é a lógica do ultraliberalismo. São da lavra dos ultraliberais a igualdade formal, ou igualdade do ponto de partida, a seleção natural dos melhores (meritocracia) e a competitividade como meio de impulsionar a construção de riquezas, relativizando a solidariedade como força motriz na construção de uma sociedade mais humana e fraterna, confundindo o termo liberdade com livre iniciativa.

Talvez esteja aí a explicação para a banalização da vida. Quando vemos uma criança descalça pedindo no semáforo ou milhares de pessoas morando em barracas ou viadutos —ou, ainda, na fila do osso ou disputando restos de comida no lixo— e todas elas passam a fazer parte da paisagem urbana sem que se tornem motivo de indignação coletiva é sinal da deterioração das relações humanas.

Os tempos atuais exigem que gritemos pela valorização da vida, por maior distribuição de renda, democratização do saber, mais solidariedade e pelo binômio liberdade-igualdade como expressão da libertação humana do jugo autoritário.

Do contrário, continuaremos sem olhar para cima, nem para os lados e muito menos para a frente. Seguiremos olhando apenas para os nossos celulares à procura de mais curtidas e na ilusão de que o ato de cancelar os indivíduos indesejáveis nos traga um sono tranquilo.

Joel Pinheiro da Fonseca A tentação dos cristãos brasileiros, FSP

 Na semana passada ocorreu a "Governe Conference", organizada pela Igreja Batista Lagoinha em Orlando, na Flórida. É raro ver uma instituição religiosa ser tão explicitamente instrumentalizada para um projeto político.

No evento, estavam presentes, entre outros, o ministro Fabio Faria e o jornalista foragido Allan dos Santos. A mensagem era clara: os cristãos têm que ocupar o poder e, no presente, isso significa apoiar Bolsonaro. Mas o que explica essa sede de poder justo num evento de igreja?

Allan dos Santos (de óculos) e Fábio Faria, ao centro, em evento nos EUA - @andrevaladao no Instagram

Afinal, ao contrário de líderes religiosos como Moisés ou Maomé, Jesus não fundou um Estado nem promulgou leis. Ele dizia que seu reino não era deste mundo. Segundo os evangelhos, ele foi acusado de fomentar a rebelião política, mas as acusações eram falsas.

Ademais, uma das três tentações a que o diabo submeteu Jesus foi justamente a do poder: "O diabo transportou [Jesus] a um monte muito alto; e mostrou-lhe todos os reinos do mundo, e a glória deles. E disse-lhe: 'Tudo isto te darei se, prostrado, me adorares'." Jesus, previsivelmente, recusou a proposta.

Então como algumas igrejas de hoje, que dizem seguir esse mesmo Jesus, justificam o prostrar-se perante Bolsonaro em troca da glória do reino deste mundo? Promovendo a pura e simples paranoia. No dizer de Allan dos Santos: "De um lado você tem psicopatas, assassinos, ladrões, satanistas e, do outro lado, gente normal." Se os cristãos não se mobilizarem, serão devorados por um projeto satânico-comunista --gestado pela todo-poderosa Escola de Frankfurt-- de destruição da família e da sociedade.

Não é a primeira vez que cristãos cedem à tentação do poder. Desde que o movimento inicialmente perseguido chegou ao poder com a conversão do imperador Constantino, foi colocado o problema da relação entre Estado e Igreja.

Em diversos momentos dessa história, movimentos cristãos buscavam se desvencilhar das roupagens mundanas, da tentação do poder, e retomar a mensagem radical de amor ao próximo e esperança no outro mundo: o surgimento dos monges ainda no Império Romano, o movimento de Francisco de Assis no século 12, os reformadores protestantes no século 16.

Lutero, frente uma igreja cujo chefe máximo, o papa, comandava exércitos e exigia dos reis a imposição da doutrina católica, defendeu a liberdade de crença e a doutrina controversa de que dificilmente um príncipe seria um bom cristão. Uma é coisa ser membro de uma igreja, ter um CNPJ, ostentar o título "cristão". Outra é de fato acreditar e seguir os ensinamentos de Jesus. Nem tudo que favorece o primeiro ajuda o segundo.

"Quanto mais poder cultural os cristãos tiverem, mais Nosso Senhor impera.", disse Allan sob aplausos. O poder cultural de cristãos no passado gerou catedrais e A Divina Comédia, mas também a Inquisição, a caça às bruxas, o antissemitismo e a pena de morte a homossexuais. Todos esses, é claro, feitos sob a mesma sensação de que o inimigo poderosíssimo (o judeu, o herege) tem um plano arquitetado nas sombras e está pronto para persegui-los.

O medo ilusório da perseguição assombra as igrejas brasileiras. Mas não vemos igrejas sendo queimadas (ao contrário de terreiros). Com a instrumentalização do medo, justifca-se a busca do poder como cerne da missão espiritual. Resta saber se, assim como em outras épocas, o cristianismo brasileiro saberá reagir. Ou se, com Nietzsche, teremos que admitir que "houve apenas um cristão, e ele morreu na cruz".