Decio Zylbersztajn*, Especial para o Estado
30 de abril de 2020 | 05h00
Em tempo de incertezas as perguntas são mais importantes do que respostas. Vivemos a experiência da desinformação, do populismo oportunista e de intenções ocultas com vício totalitário.
As perguntas ajudam a construir cenários de como a vida poderá mudar após a pandemia. Vivemos uma experiência de comportamento de boiada em estouro que lembra o livro Massa e Poder de Elias Canetti (1905-1994). A obra do prêmio Nobel de Literatura é um tratado sobre o comportamento coletivo. No capítulo sobre epidemias, o autor cita o historiador grego Tucídides (460 a.C. - 400 a.C. ) que viveu a guerra e a epidemia. A descrição do isolamento, funerais e corpos empilhados poderia ter sido escrita hoje, seguindo citação do autor grego. “O mais seguro é permanecer isolado, aqueles que escaparam se isolaram dos todos, mesmo dos seus parentes próximos, maridos, esposas e filhos”.
Canetti explora o comportamento humano, o limite entre a racionalidade do indivíduo e o comportamento coletivo. Ele nos leva a pensar que guerras e terremotos diferem das epidemias por terem um final mais bem definido, ainda que deixem escombros. A memorável foto do marinheiro e da enfermeira em um beijo na Times Square, celebra o final da guerra. Na epidemia não é assim, ela termina de forma gradual, deixa evidente o fantasma da reincidência.
Cabe compreender as diferenças entre o comportamento individual e coletivo. O soldado que bombardeia à distância o anônimo batalhão inimigo, contrasta com o soldado que olha nos olhos do inimigo e o poupa. Atirar no batalhão anônimo é diferente do que atirar no inimigo presente, cuja respiração pode ser ouvida e de quem se pode sentir o cheiro. O individual se sobrepõe ao coletivo. Para aqueles que sobreviverem à pandemia, caberá refletir sobre três questões essenciais. No plano individual, como prosseguir a vida em uma sociedade focada no consumo e no individualismo. No plano das organizações, como as formas de produção e os mercados serão afetados. No plano institucional, qual o modelo de Estado que emergirá e como mudarão as instituições multilaterais globais.
A respeito do papel do Estado, a expansão do liberalismo demonstrou resultados inequívocos. Crescimento econômico, aumento do fluxo de comércio e retirada de grande contingente populacional da linha de pobreza, de modo especial na China e Vietnã. Em outros países asiáticos, africanos e latino-americanos o fenômeno não chegou a atingir as populações carentes. A agenda liberal aprofundou desigualdades nos países desenvolvidos e revelou-se inapta para lidar com choques reais. O mantra da redução do tamanho do Estado, da liberação dos mercados e da desregulamentação da economia prometia promover a integração, o aumento da riqueza e do progresso. Mas isto não ocorreu: de modo particular, o liberalismo não previu o que fazer com o contingente de perdedores que emergiram em todo o mundo, tema explorado por Abhijit Banerjee e Esther Duflo do MIT, que receberam o Nobel de Economia de 2019 pelos estudos sobre a desigualdade.
O pensamento liberal ganhara espaço com o declínio do modelo centralizado da finada União Soviética, que já ruía a olhos vistos. ‘Pari passu’ a China avançou com o modelo neocapitalista integrado aos mercados globais, sob a égide do Comitê Central. O modelo progrediu amparado pela associação entre o confucionismo e o neocomunismo. A China trocou liberdades democráticas, que não chegou a experimentar, por renda que engordou o consumo, gerou hordas de turistas e encheu os cruzeiros marítimos de chineses felizes. Para as vozes dissonantes como do artista Ai Weiwei, dos jovens na Praça da Paz Celestial ou em Hong Kong, o partido utilizou a força e recompôs a ordem. A Europa seguiu o caminho da integração tão plena quanto possível, sempre com o Reino Unido fazendo o papel do sétimo anão, o Zangado, opondo-se ao pan-europeismo, recusando-se a aderir à moeda comum, minando medidas de integração, postura que culminou com o Brexit.
A Europa, ao debater o contrato social pós-Brexit, rompimento ou aprofundamento da integração, terá de lidar com o crescimento das vozes ultraconservadoras que sugerem o caminho do nacionalismo. Nos EUA, os antigos argumentos de Raúl Prebish da Cepal a respeito de protecionismo, quem diria, são hoje adotados por Trump, que por certo desconhece a obra do economista argentino. A África e a América Latina se posicionam como neovassalos globais, fornecedores de matérias-primas minerais e agrícolas, sina que perdura. São continentes com instituições frágeis e incapazes de promover um modelo social equilibrado, um terreno fértil para o surgimento de lideranças populistas.
A agricultura, atividade importante na África e América Latina, permanece espremida entre dois setores altamente concentrados, das corporações fornecedoras de insumos e das tradings, ambos vivenciando nova onda de concentração com a chegada do capital chinês. Um risco para a agricultura que perde a resiliência por viver em um capitalismo sem concorrência.
Ao pensarmos nos chefes de Estado, o mundo foi tomado por tiranos, assim como são chamadas por Timothy Snyder, da Universidade de Yale, as lideranças populistas que vibram com a perda de espaço do socialismo democrático. Utilizam a tecnologia de informação e algoritmos matemáticos criando fake news capazes de interferir nos processos eleitorais das democracias ocidentais, destroem reputações, criam ídolos com os pés de barro. O surgimento de lideranças nacionalistas que negam o legado cultural ocidental gerou narrativas que encontraram um campo fértil como o terraplanismo, o descrédito na ciência, a revisão da tradição das relações internacionais, o revisionismo histórico e a perda de valores éticos calcados na cooperação e no humanismo. A realidade forjada tornou a sociedade um grande observatório de big brothers onde personagens construídos pela desinteligência artificial reinam invencíveis.
Os resultados desta lógica distópica se evidenciaram com o desmonte das redes sociais de proteção, cujo efeito ficou exposto pela pandemia. A concentração de renda, em escala inédita, criou um abismo para o acesso à educação e saúde. Os riscos do modelo do estado liberal associado a instituições frágeis foram apontados por lideranças intelectuais de diferentes escolas. A visão humanista de Amartya Sen (Nobel em Economia, 1998) ganhou a companhia de George Stigler (Nobel em Economia, 1982), de Thomas Piketty, de Yuval Harary da Universidade de Jerusalém e Timothy Snyder de Yale. Estes intelectuais criticaram o modelo concentrador onde o mercado impera sem freios institucionais e revelaram o risco do totalitarismo populista.
Vivemos em uma sociedade distópica que perdeu valores culturais e qualidade de vida. Uma sociedade na qual a massa de jovens da geração do milênio não consegue oportunidades para ascensão social e perde a motivação pelo engajamento em esforços coletivos. Uma nação é um esforço coletivo.
A pandemia expôs as feridas do modelo que conviverá com baixas taxas de crescimento, talvez negativas, aliada à perda da resiliência social e perpetuação de desigualdades extremas. Modelo que demonstra não estar preparado para lidar com choques reais como o que marcou o ano 2020 para a história. Cabe perguntar, dentro deste quadro, qual o Estado que desejamos.
Cada sociedade buscará respostas adequadas ao seu meio. Aquelas que construíram instituições fortes e que entendem a nação como um projeto comum entre os cidadãos, terão melhores condições para superação. A pandemia sugere que se negocie taxas menores de crescimento, em troca da desconcentração da renda e ampliação do bem estar da população com base no acesso à educação, serviços de saúde e cultura. O momento aponta para um projeto de nação que retome a proteção social perdida, onde lideranças sejam capazes de dialogar com a geração do milênio e com as massas marginais que não colheram fruto algum do liberalismo.
A pandemia deixa um legado de questões a serem elaboradas, e eu mantenho que as perguntas são mais relevantes do que as respostas que podem suscitar.
*É escritor e professor titular sênior da USP.