terça-feira, 3 de março de 2020

Os méritos da arte não podem ser descompensados pelos delitos do artista, João Pereira Coutinho, FSP

Confundindo biografia com filmografia, críticos de Polanski misturam repulsa instintiva com justiça básica

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Acabo de assistir a “O Oficial e o Espião”, o mais recente filme de Roman Polanski —que estreia no Brasil no dia 12 de março. É bom? É ruim?
Essas perguntas, para o espírito do tempo, não fazem mais sentido. O filme, repito, é de Roman Polanski. O diretor que estuprou uma menor nos Estados Unidos em 1978.
Ilustração mostra homem de terno e gravata borboleta (Roman Polanksi) desenhado em preto. Ao fundo diversos soldados franceses desenhados em vermelho, alguns são esqueletos.
Abu/Folhapress
Após acordo judicial, a acusação baixou a fasquia para relações sexuais com menor. Mas Polanski não esperou pela sentença. Fugiu para a Europa e nunca mais regressou aos Estados Unidos para cumprir a sua pena.
Para piorar as coisas, uma fotógrafa francesa também acusou recentemente o diretor de a ter violado. Em 1975. Polanski nega tal fato, mas a presunção de inocência é hoje artigo raro nas democracias midiáticas.
É com esse historial que se entende a polêmica com “O Oficial e o Espião”. Quando o filme foi indicado a vários prêmios César (o Oscar do cinema francês), a direção da academia não aguentou o clamor dos críticos e se demitiu.
Mas o melhor, ou o pior, ainda estava por vir: Polanski venceu o César de melhor diretor. Várias atrizes presentes na cerimônia abandonaram a sala em protesto. Tal como afirmou o ministro da Cultura francês, em frase que resume bem a polêmica, os delitos de um artista não são compensados pelos méritos da sua arte.
Boa frase. Verdadeira, também. Mas, se o ministro me permite, quem disse o contrário?
Eu, não. Juridicamente falando, Polanski deve ser julgado pela Justiça americana; caso seja condenado, deve cumprir pena, como qualquer criminoso. E a acusação recente de estupro deve ser investigada; caso o diretor seja culpado, deve pagar pelo crime.
O ponto não é jurídico. É artístico. Se os delitos de um artista não são compensados pelos méritos da sua arte, então os méritos da sua arte não podem ser descompensados pelos delitos de um artista.
Negar essa simples asserção —no fundo, negar a autonomia da arte por causa da conduta imoral ou ilegal do homem que a produz— implicaria repudiar uma parte substancial da história da cultura.
Caravaggio foi um homicida. Cellini foi pior: um serial killer. Wagner era antissemita. Tal como Pound ou Céline. D. W. Griffith era racista. Eric Gill era pedófilo. Vamos jogar na fogueira os quadros, as músicas, os livros, os filmes ou as esculturas de todos eles? Ou devemos distinguir universos morais distintos?
A resposta a essas questões encontra-se, ironicamente, em “O Oficial e o Espião”. O filme, que é a melhor colheita de Polanski desde 2010 (“O Escritor Fantasma”), reconstitui o caso Dreyfus, que dividiu a França na última década do século 19.
Conto rápido: Alfred Dreyfus, capitão do Exército francês, foi acusado de passar informações militares para a Alemanha. Acusação grave: a França tinha sido derrotada pelos alemães na Guerra Franco-Prussiana, em 1871, o que significava que Dreyfus espiava para o grande inimigo da República.
Julgado em tribunal militar, foi condenado a cumprir prisão perpétua na Ilha do Diabo, na Guiana Francesa, em 1894. Pelo menos, até Marie-Georges Picquart assumir o cargo de chefe da inteligência militar, em 1896, e descobrir que o verdadeiro “crime” de Dreyfus era ser judeu. As provas que o condenaram tinham sido forjadas —ou erroneamente interpretadas.
Dreyfus só seria completamente exonerado e reintegrado ao Exército em 1906. Mas o filme de Polanski, um prodígio de reconstituição histórica e elegância formal, não se concentra em Dreyfus.
O seu objeto principal é Picquart, que batalhou pela inocência do capitão e enfrentou o antissemitismo institucional da Terceira República apesar de também ser um antissemita.
É o próprio Picquart quem o confessa a Dreyfus, anos antes da condenação, quando era seu professor na academia militar. O jovem Dreyfus acusa Picquart de não ser justo nas notas porque não gosta de judeus. 
O professor responde: sim, não gosta de judeus; mas jamais confundiria as suas inclinações pessoais com os seus deveres.
No fundo, Picquart é essa ave rara: alguém que sabe distinguir duas esferas morais distintas, algo que os acusadores de Polanski não conseguem.
É por isso que o título do filme (“J’Accuse”, no original, que significa “eu acuso”) não é apenas uma homenagem ao artigo com o mesmo nome que Émile Zola publicou em 1898, no jornal L’Aurore, defendendo Dreyfus e acusando o governo e o Exército de conduta ignóbil.
É também uma acusação de Polanski a todos aqueles que, confundindo biografia com filmografia, misturam suas repulsas instintivas com questões de justiça básica.
João Pereira Coutinho
Escritor, doutor em ciência política pela Universidade Católica Portuguesa.

Repórter e analista, Celso Pinto foi o melhor de sua geração na cobertura de economia, FSP

SÃO PAULO
Celso Pinto foi o melhor jornalista de economia de sua geração, o melhor entre aqueles que estão na lida desde meados dos anos 1970, como era o seu caso.
Tinha a capacidade rara de ser repórter, de revelar informações importantes, e também de ser um analista profundo. Combinava conhecimento técnico com a agilidade de cavucar e perceber o que é a grande notícia. Como se não bastasse, era um grande editor. Criou e dirigiu o melhor jornal especializado que já tivemos, o Valor Econômico, fundado em 2000.
Jamais cedeu à tentação “pop”, ao que é ou parece mais sensacional. Seus furos de reportagem não deixavam de ser também textos analíticos.
A informação nova era matizada pelo contexto; sua relevância e seu alcance eram explicadas sem o tempero do espetacular. Essa qualidade ficou ainda mais evidente nas colunas da Folha, que escreveu de 1996 a 2000.
O jornalista Celso Pinto, que morreu nesta terça (3)
O jornalista Celso Pinto, que morreu nesta terça (3) - Cacalos Garrastazu - 3.jan.00/Valor/Agência Globo
O Plano Real, lançado em 1994, foi o grande momento da carreira desse repórter analítico. Desde meados da década anterior, Celso conhecia bem alguns dos economistas que formularam o plano.
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Chegou a ser convidado a fazer parte da equipe econômica, como uma espécie de memorialista da empreitada. Sabia muito do que se passava na cozinha do plano e no governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002).
Sabia, porém, o que se passava fora do governo, das dificuldades criadas pela valorização da moeda brasileira, um dos pilares e um grande problema do Real. 
Por exemplo, revelou as operações do governo no mercado futuro de moedas, com o que ganhou a antipatia de alguns dos economistas de FHC. Mostrava como os desarranjos fiscais ameaçavam de morte o plano de estabilização, em fins de 1998.
Seu assunto predileto era a política macroeconômica, de resto inevitável em um país quebrado pela hiperinflação, pela desordem das contas públicas e pelas crises externas. Mas tratava com desenvoltura de grandes empresas e de meandros da finança.
Era lido por banqueiros e empresários que se ocupavam de questões públicas; era respeitado por suas fontes, no establishment da economia ou na alta tecnocracia do FMI, não raro matriz dos programas econômicos de um país arruinado do começo dos anos 1980 até o Real.
Entende-se, pois, sua animação com o Plano ou com tentativas de estabilização em geral, seu desencanto com a ação do Estado, sua indignação com a baderna fiscal.
No auge da carreira, era tido como “liberal”. Apesar do rigor analítico, não era nem poderia ser uma encarnação da neutralidade. Acabou na prática por se alinhar ao “consenso central” do que fazer com a política econômica, comunhão formada nos anos FHC. Abstinha-se de opinião e muito menos escrevia editoriais favoráveis, mas sua perspectiva ficava nítida nas questões que levava a seus entrevistados.
Eram assuntos e enfoques evidentes nos textos e nas suas entrevistas, que frequentemente pareciam um debate exasperado com as fontes, conversas entreouvidas divertidamente por este jornalista, que foi vizinho da sala de Celso na Folha, na segunda metade dos anos 1990. A criatura indignada e apaixonada em pessoa em nada parecia com seus textos em geral fleumáticos.
Relatou com detalhes iluminadores como se montaram governos, desde Tancredo até Lula, os embates das políticas econômicas da Nova República, a crise de Collor, o pânico com a eleição de Lula, em 2002. Não pudemos saber o que diria ou descobriria dos governos petistas. 
Afastou-se em 2003 para cuidar dos problemas de saúde decorrentes de uma parada cardiorrespiratória em uma quadra de tênis, seu esporte querido.
Em 1997, Celso acabava uma entrevista cabeluda qualquer e nos dizia “vamos botar a TV no jogo do Guga [Kuerten]”. Guga quem? Apenas ele conhecia bem o tenista que ganharia Roland Garros naquele ano.
Celso saía da sua mesa, descalço, de meias, como de costume, para dar uma olhada rápida nos jogos, vibrando como um torcedor de arquibancada de futebol. Via um final do set e voltava logo para a mesa, para tratar com um alto burocrata do FMI do balanço de pagamentos, que parecia embicar para uma crise. Batia o telefone e dizia, alto: “Essa coisa pode ficar feia, esse pessoal está mal informado”.