domingo, 8 de julho de 2018

A banalidade do arbítrio, Opinião OESP

O Estado de S.Paulo - 11/06

Parece livre de obstáculos o caminho de arbitrariedades trilhado por alguns membros da Polícia Federal (PF), do Ministério Público (MP) e do Poder Judiciário em uma autoatribuída cruzada anticorrupção. Ela não raro vem carregada de um ar messiânico na fala e nas ações de seus integrantes, mais preocupados com a opinião pública do que com o respeito às leis. Uma cruzada que seria por demais importante para ter de lidar com “óbices” como a Constituição.

O pedido de quebra do sigilo telefônico do presidente da República é exemplar destes tempos esquisitos, em que a banalidade do arbítrio se instalou justamente entre alguns dos que deveriam ser os primeiros a venerar a lei.

A quebra do sigilo telefônico do presidente Michel Temer foi requerida pela PF ao ministro Edson Fachin, relator da Lava Jato no Supremo Tribunal Federal (STF), no âmbito do inquérito que apura o suposto pagamento de R$ 10 milhões ao MDB pela Odebrecht. Em troca do financiamento ilegal de campanhas eleitorais do partido, a empresa teria sido favorecida em contratos com o governo federal.

De acordo com o inquérito – que, pasme o leitor, tramita em segredo de justiça –, a negociação para o repasse do dinheiro teria ocorrido em 2014 no Palácio do Jaburu, envolvendo Michel Temer, então vice-presidente de Dilma Rousseff; Marcelo Odebrecht, presidente da empreiteira; Moreira Franco, atual ministro de Minas e Energia; e Eliseu Padilha, atual ministro-chefe da Casa Civil. A PF também requereu a quebra do sigilo telefônico dos dois ministros de Estado.

À luz do que está escrito no artigo 86, parágrafo 4.º, da Lei Maior, o pedido de quebra do sigilo telefônico do presidente da República feito pela PF ao STF é mais um caso de audacioso abuso. Fosse respeitado o texto constitucional, um inquérito para apurar supostos crimes cometidos por Michel Temer em 2014 nem sequer deveria ter sido instaurado enquanto ele exercer seu mandato como presidente da República.

Isto acontece, primeiro, por conta de uma ferrenha campanha de desmoralização da atividade política que parece animar setores da PF, do MP e do Judiciário com o objetivo de nivelar por baixo todos os políticos. Desta forma, os gratos olhos da Nação se voltariam para aqueles empenhados em expurgar os malfeitores da vida nacional, malgrado as graves consequências de um hipotético estado de negação da política.

Segundo, porque uma leitura enviesada do texto constitucional dá azo a interpretações convenientes aos interesses daqueles que desejam atingir o político que tem maior expressão entre todos: o presidente da República.

A Constituição diz que o “Presidente da República, na vigência de seu mandato, não pode ser responsabilizado por atos estranhos ao exercício de suas funções”. A artimanha está na interpretação da palavra “responsabilizado”. Há quem diga que impedir que o presidente seja responsabilizado por crime anterior ao mandato não impede a sua investigação.

É evidente que tal forma de ler o comando constitucional se presta tão somente a legitimar a ação daqueles que têm por intento instalar um clima de instabilidade política no País ao enfraquecer o chefe do Poder Executivo. E aqui não se trata apenas do atual presidente, mas de todos os outros que lhe sucederem.

Uma investigação criminal já é, por si só, uma forma de responsabilização. Ela traz consequências sérias para a vida do investigado; em se tratando do presidente da República, implicações diretas nos rumos do País. Ao impedir a responsabilização do presidente por atos anteriores ao mandato, a Constituição visa justamente a proteger o País de aventureiros que, desestabilizando o chefe de Estado e de governo, ponham em risco os interesses da Nação.

O ministro Edson Fachin fez valer a Constituição e negou o pedido de quebra do sigilo telefônico do presidente Michel Temer, deferindo-o apenas em relação aos ministros Moreira Franco e Eliseu Padilha. Não é certo dizer que isso impedirá novos abusos, mas foi um sinal claro dado pelo STF de que eles não podem ser tolerados.


Trilhões de dívida sem freio - EDITORIAL O ESTADÃO


Trilhões de dívida sem freio - EDITORIAL O ESTADÃO

O Estado de S.Paulo -30 Junho 2018

Os R$ 5,13 trilhões devidos pelo governo correspondiam em maio a 77% do valor anual do PIB. Números mostram a urgência e a importância das reformas

Cada um dos 210 milhões de brasileiros devia em maio, mesmo sem saber disso, pouco mais de R$ 24 mil – sua parte na conta de R$ 5,13 trilhões pendurada pelo governo geral. Essa dívida aumenta mês a mês, porque o buraco nas contas oficiais cresce muito mais rapidamente que a população. A lista dos devedores inclui desde bebês ainda no berço até velhinhos centenários. Sem meter a mão no bolso, até porque nem todos têm bolso, cada um já suporta, no dia a dia, os efeitos econômicos da insegurança quanto ao futuro das finanças públicas, agravada neste ano pela incerteza política, pela paralisação da agenda de reformas e por novos maus-tratos impostos aos orçamentos, principalmente ao federal.

Os R$ 5,13 trilhões devidos pelo governo geral correspondiam em maio a 77% do valor anual do Produto Interno Bruto (PIB), segundo o balanço das contas públicas divulgado pelo Banco Central (BC) na sexta-feira passada. No mês anterior a proporção ainda estava em 75,9%. O avanço do programa de ajustes e reformas permanece “fundamental para a reversão da trajetória ascendente da dívida pública”, havia informado o BC em seu relatório trimestral de inflação, divulgado um dia antes das novas estatísticas fiscais.

A mesma preocupação quanto às finanças do governo aparece na Carta de Conjuntura publicada na quinta-feira pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea): “A grande fonte de incerteza na economia brasileira continua sendo a questão fiscal – agravada no momento pela indefinição do quadro eleitoral”. O aumento do déficit público, segundo os autores da Carta, “reflete a pressão das despesas obrigatórias”, puxadas principalmente pelos gastos da Previdência.

O efeito desastroso das despesas previdenciárias aparece, mais uma vez, no balanço de maio das contas públicas. Pelos cálculos do BC, o governo central fechou o mês com um déficit primário, isto é, excluídos os juros, de R$ 11,12 bilhões, embora o resultado conjunto do Tesouro e do BC tenha sido um superávit de R$ 3,98 bilhões. Houve saldo negativo porque o buraco de R$ 15,10 bilhões do INSS devorou aquela sobra e poderia ter devorado mais um pouco.

O descompasso entre as contas do INSS e as demais do governo central aparece mais dramaticamente quando se examinam os valores de 12 meses. Nesse período, o sumidouro da Previdência, de R$ 188,72 bilhões, engoliu com muita folga o superávit de R$ 92,05 bilhões acumulado pelo Tesouro e pelo BC. O resultado foi um saldo negativo de R$ 97,39 bilhões nas contas primárias do governo central.

Sem sobra nessas contas, o governo é incapaz de pagar os juros vencidos da dívida pública. Os juros se acumulam e, quando incluídos no cálculo, o resultado geral do setor público é um déficit nominal de R$ 480,16 bilhões, equivalente a 7,21% do PIB. Esse conjunto mais amplo inclui também os governos estaduais e municipais e algumas estatais (sem Petrobrás e Eletrobrás).

Por qualquer critério a condição das contas públicas brasileiras é uma das piores do mundo. O déficit nominal é muito maior que o máximo admitido na União Europeia (3% do PIB) e superior ao da maior parte das economias de renda média. Na Europa, a maioria dos países tem fechado seus balanços fiscais com déficits bem abaixo do teto.

Além disso, os governos do mundo rico normalmente conseguem financiar suas dívidas – em alguns casos maiores que a brasileira – com juros muito menores, e até negativos.

No Brasil, o déficit público muito grande, crescente e alimentador de uma dívida em expansão continuada, é um dos principais obstáculos à redução dos juros. Não se baixa o custo dos financiamentos com simples voluntarismo, embora muitos políticos pareçam acreditar nessa possibilidade. Quando o maior tomador de empréstimos é um setor público viciado em gastança e com o orçamento amarrado por despesas obrigatórias, cortar juros é uma tarefa extremamente complicada. Os números mostram a urgência da recuperação fiscal e a importância da pauta de reformas, a começar pela da Previdência.

Contra os monopólios, a abertura - EDMAR BACHA, O Globo




O GLOBO - 30/06

O próximo presidente deve anunciar logo após sua posse um amplo programa de abertura do Brasil à economia mundial


Nossas elites defendem com unhas e dentes os monopólios de bens e serviços através dos quais exploram os trabalhadores e os consumidores brasileiros.

Três exemplos recentes ilustram essa afirmação. Documento preparado pela Confederação Nacional da Indústria para os presidenciáveis defende uma política de comércio exterior com reforço dos mecanismos de defesa contra as importações. Ofícios da Ordem dos Advogados do Brasil advertem a Eletrobras e o BNDES para não contratarem escritórios de advocacia estrangeiros. Liminar do ministro do Supremo Ricardo Lewandowski proíbe a venda de empresas estatais sem prévia anuência do Congresso.

Os exemplos se multiplicam. Os ruralistas há tempos impedem a importação de bananas do Equador, café robusta do Vietnã, alho da China. A Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos) se insurge contra a proposta da equipe econômica do governo de reduzir as tarifas sobre bens de capital importados etc.

Essas manifestações caracterizam a atitude de nossas elites empresariais e corporativas de que podem continuar a explorar os brasileiros, contratando-os a salários baixos e vendendo-lhes bens e serviços caros e ruins, sem preocupar-se em gerar empregos melhores, com produção de qualidade para ser exportada. “Nossas” elites incluem as subsidiárias das empresas multinacionais que aqui se instalam para explorar o mercado interno, mas não reproduzem a experiência de suas congêneres na América do Norte, Europa e Ásia, que atuam de forma integrada nas cadeias mundiais de valor.

São poucos os países que desde a Segunda Guerra Mundial evoluíram da renda média e são hoje países ricos, mas todos chegaram lá através de uma integração crescente com o comércio internacional: Austrália, Cingapura, Coreia do Sul, Espanha, Hong-Kong, Irlanda, Israel, Grécia, Noruega, Portugal, Nova Zelândia, Taiwan. São países pequenos comparados com o Brasil, mas recentemente temos o exemplo da China, hoje o segundo maior PIB do mundo graças à decisão de Deng Xiaoping em 1978 de abandonar o maoísmo e abrir a economia para o comércio e o investimento internacionais.

A experiência desses países confirma que crescimento econômico deriva de aumento da produtividade e este de empresas que participam ativamente do comércio internacional. A razão é que ganhos de produtividade são gerados por empresas com acesso a tecnologia de última geração; com ampla escala de produção para reduzir os custos unitários; que se especializam em bens e serviços em que são mais competitivas; e que atuam num regime de concorrência indutor da inovação e da seleção empresarial.

As economias maiores que o Brasil são também grandes exportadoras. Já o Brasil tem 3% do PIB mundial, mas suas exportações alcançam apenas 1,1% das exportações mundiais. Um gigantinho em termos de PIB, o Brasil é um anão em termos de exportações. O que se constata nas exportações se repete nas importações. A parcela das importações no PIB brasileiro é de apenas 14%. Exceto por Nigéria e Sudão, esse é o menor valor entre todos os 160 países para os quais o Banco Mundial tem dados.

Impõe-se mudar esse estado de coisas e para isso é necessário confrontar as elites que travam uma maior integração do país ao comércio internacional. O próximo presidente deve anunciar logo após sua posse um amplo programa de abertura do Brasil à economia mundial. Um programa que reduza ou elimine a cornucópia de medidas protecionistas que hoje impede a geração de bons empregos e a melhoria do bem-estar da população: tarifas elevadas sobre bens industriais importados; proibições à importação de bens agrícolas; restrições à importação de serviços bancários e à contratação de profissionais estrangeiros; limitações à presença de empresas estrangeiras em diversos setores; requisitos de conteúdo nacional; preferências para compras governamentais; barreiras portuárias e alfandegárias.

A retomada de um crescimento econômico vigoroso tem mão dupla por estar associada a uma maior integração do Brasil ao comércio internacional. Ela implica um aumento substancial tanto das exportações como das importações no PIB do país. É abrir e abrir, não cabe um dilema hamletiano nesta questão.

Edmar Bacha é economista