domingo, 29 de abril de 2018

Celso Amorim: O político e o humano, FSP

Celso Amorim: O político e o humano

Lula não saiu da vida para entrar na história, nem pôs em risco a integridade física dos seus apoiadores. Tampouco cedeu à coreografia planejada por seus algozes

Leonardo Boff, amigo de Lula, aguarda em frente ao prédio da PF, em Curitiba, pela autorização para visitar Lula, que lhe foi negada
Leonardo Boff, amigo de Lula, aguarda em frente ao prédio da PF, em Curitiba, pela autorização para visitar Lula, que lhe foi negada - Theo Marques - 19.abr.18/Folhapress
Uma imagem vale mais que mil palavras, diz o provérbio chinês. Mil palavras não serão capazes de descrever, de forma tão pungente, a tristeza profunda experimentada por milhões de brasileiros (e muitas outras pessoas em todo o mundo) quanto a foto de Leonardo Boff, sentado na soleira do prédio da Polícia Federal, em Curitiba, onde está preso o ex-presidente Lula.
Como muitos outros militantes e simpatizantes, acompanhei, no sindicato dos metalúrgicos, em São Bernardo do Campo, o desdobramento do drama político em que o país foi atirado após a decretação da prisão de Lula pelo juiz Sergio Moro, algumas horas depois da denegação do habeas corpus, por estreitíssima margem, pelo Supremo Tribunal Federal.

Nas horas que antecederam a partida do presidente, uma característica de sua personalidade sobressaiu em todos os seus gestos: a profunda humanidade, o interesse real e concreto pelo bem-estar material e espiritual dos que estavam dentro do edifício ou entre a multidão que o rodeava.

Lula não saiu da vida para entrar na história, nem pôs em risco a integridade física dos seus apoiadores. Tampouco cedeu à coreografia planejada por seus algozes. Não obedeceu ao ultimato disfarçado em deferência, mas não permitiu que o episódio da prisão constituísse pretexto para novas provocações por aqueles que desejam cerrar as cortinas sobre a democracia brasileira.
Na segunda-feira (9/4), após um domingo sem festa, muitos de nós fomos a Curitiba visitar o acampamento montado por movimentos sociais, em que gente humilde, juntamente com pessoas da classe média, dava testemunho de sua inconformidade com a violência contra Lula.

Se o afeto e o reconhecimento pelo ex-presidente ofereciam algum consolo à dor de sabê-lo preso, a visão do prédio dava absurda materialidade ao que até então parecia uma ideia abstrata: o encarceramento do ser humano em quem o povo pobre do Brasil vê o seu mais legítimo e querido representante.

Ao longo da minha vida como servidor público, a maior parte da qual no exercício de função diplomática, poucas vezes senti vergonha profunda (distinta de um mero incômodo passageiro) do meu país.

Uma delas foi quando, jovem funcionário servindo no exterior, abri uma revista que regularmente recebia do Brasil e li uma reportagem sobre a morte de um prisioneiro sob tortura. Uma brevíssima brecha na censura imposta pelo regime permitiu que a reportagem fosse publicada. Voltei a experimentar o mesmo sentimento com a recusa aos pedidos de visita a Lula feitos por Adolfo Pérez-Esquivel, prêmio Nobel da Paz em 1980, e pelo amigo de longa data, outro lutador pacífico da paz, Leonardo Boff.

Em 2002, quando o povo teve a coragem de eleger como seu presidente um operário com raízes no sertão do Nordeste, cunhou-se a expressão "a esperança venceu o medo". Neste momento sombrio, não sei o que lamento mais: a ignorância de nossos juízes quanto às normas internacionais sobre tratamento de presos ou a pequenez de espírito dos que se apegam à formalidade das regras para tomar decisões despidas de qualquer sentido de humanidade.

Em meio a tantas arbitrariedades postas a serviço dos poderosos dentro e fora do Brasil, temos que buscar força e inspiração nas atitudes desassombradas de Boff e Esquivel.

Necessitamos eleições livres e justas, com a participação dos candidatos mais representativos do povo, a começar por Lula, para que a paz e a confiança no futuro sejam devolvidas ao povo brasileiro. Não podemos permitir que o ódio e a mesquinharia vençam a esperança.
Celso Amorim
Ex-ministro das Relações Exteriores (2003-2010, governo Lula) e da Defesa (2011-2015, governo Dilma), é pré-candidato do PT ao governo do estado do Rio

Sonhos azuis, FSP

Sonhos azuis

Psicóloga conta em livro a história da clorpromazina e de outras drogas psiquiátricas

Até a primeira metade do século 20, hospícios eram lugares cheios e barulhentos. Os loucos gritavam muito, tanto por causa das alucinações que experimentavam como pelos maus-tratos a que eram submetidos. Mas, ao longo da década de 50, os asilos silenciaram.
O motivo foi a clorpromazina, a primeira droga antipsicótica. Sintetizada por Paul Charpentier em 1950 a partir do azul de metileno, ela se mostrou efetiva em evitar os surtos psicóticos de boa parte dos esquizofrênicos. Gente que parecia perdida para o mundo de repente passou a conversar e interagir quase normalmente. Era o início do movimento que depois levaria ao progressivo esvaziamento dos hospícios.
A história da clorpromazina (comercializada como Amplictil no Brasil) e de outras drogas psiquiátricas, incluindo lítio e várias gerações de antidepressivos, é contada de forma apaixonante por Lauren Slater em “Blue Dreams” (sonhos azuis).
Slater parte de um ponto de vista privilegiado. Além de escritora, ela é psicóloga e paciente psiquiátrica. Sofre de transtorno bipolar e diz estar convicta de que foi apenas o uso maciço de combinações variadas de antidepressivos e lítio que a manteve por mais de três décadas longe das internações de que precisou na juventude.
Ela é uma fã desses fármacos, mas nem por isso deixa de exercer o espírito crítico em relação aos laboratórios. O fato de as drogas funcionarem não significa que seja pelas razões alegadas pela indústria. O modelo da depressão como um desbalanço químico marcado por baixos níveis de serotonina, por exemplo, é mais furado do que um queijo suíço.
Slater mostra o que de bom essas drogas fizeram pelos pacientes, mas sem esconder os graves efeitos secundários que elas provocam e o tamanho da nossa ignorância em relação a seus mecanismos de ação. Como bônus, ela fala também de fármacos ainda ilegais, mas bastante promissores para uso psiquiátrico, como o MDMA e o LSD.
Hélio Schwartsman
É bacharel em filosofia e jornalista. Na Folha, ocupou diferentes funções. É articulista e colunista