domingo, 14 de janeiro de 2018

Uma breve defesa do cromossomo Y - VILMA GRYZINSKI


REVISTA VEJA

O conceito de igualdade foi carregado nas costas do homem branco


O poderoso de Hollywood vê uma reportagem que exalta partes corporais de uma atriz iniciante, manda chamá-la para um teste, pede para ver as tais partes. Tornam-se amantes, e ela aparece em muitos filmes dele.

Harvey Weinstein ou Cecil B. DeMille? O segundo, é claro. A atriz era Julia Faye e a parte anatômica eram os pés, fetiche do diretor de ego de proporções bíblicas, como seus filmes mais conhecidos. Era também republicano, macarthista (amigo do Joe McCarthy original) e até antissemita, pelo menos antes de descobrir que a mãe era de origem judia. “Vocês estão aqui para me agradar, nada mais interessa”, dizia, à la Trump, para atores e extras, a quem tratava com igual desprezo, passando-lhes sermões de horas (“Posso deixar Jesus se sentar? Estou segurando ele há um tempão”, pediu numa dessas “fideladas” o intérprete cansado de Judas Iscariotes em Rei dos Reis).

Quem se lembra dessas coisas certamente não falou nada durante a festa de premiação do cinema em que muitas das mulheres mais lindas do planeta usaram vestido preto para enterrar o Homo hollywoodianus branco e eleger a apresentadora negra Oprah Winfrey, contemplada com o prêmio que leva o nome de DeMille, como a próxima presidente dos Estados Unidos. Dificilmente as muitas contradições desse espetáculo da elite da beleza e da fama teriam resumo mais realista do que o comentário de um leitor algo exasperado diante dos decotes até a cintura das militantes mulheres de preto: “Elas mostram os peitos e não querem que a gente olhe”.

No mundo habitado pela “gente”, um decote infinito numa mulher bonita desencadeia olhares e talvez até alguma ­outra coisa, mas as noções fundamentais do que é certo e do que é errado, geralmente “como meu pai ensinou”, não permitem que o envolvido faça alguma coisa mais séria do que a si mesmo de bobo. Quanto mais enraizadas essas noções, que também podem ser chamadas de superego, mais os homens são seguros de si mesmos e do papel que a força física superior lhes confere. Proteger os mais fracos e até se sacrificar por eles não são responsabilidades fáceis. Faça-se o “teste do Titanic”. Das 2 200 pessoas a bordo, salvaram-se 700. Entre as 425 mulheres, foram 316 sobreviventes. Dos 1 690 homens, 338. Leonardo DiCaprio não estava entre eles.

Em defesa do cromossomo Y — descoberto por uma mulher, a bióloga americana Nettie Stevens —, também não custa lembrar o arco histórico que começa em algum ponto da Grécia antiga e desemboca nos conceitos contemporâneos de igualdade. No lugar onde nasceram a democracia, a filosofia e os fundamentos do pensamento científico, as mulheres ficavam trancadas no gineceu e todo homem com alguma posição social só queria saber de seu paidika, ou seu garoto. Tipo o roteirista bonitão por quem a atriz decadente Norma Desmond se apaixona e que termina assassinando em Crepúsculo dos Deuses, o filme em que DeMille faz o papel de si mesmo. Sem os cromossomos Y e sua extraordinária trajetória no mundo ocidental, seria possível uma mulher protagonizar em 1950 a autorreferente versão hollywoodiana de uma tragédia grega?

terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Banda ultralarga é utilizada para localizar veículos em ambientes fechados, Fapesp



09 de janeiro de 2018
Suzel Tunes  |  Pesquisa para Inovação - A KartFly, empresa de entretenimento localizada em Campinas, está desenvolvendo uma nova tecnologia para a localização precisa e imediata de veículos em ambientes fechados. O sistema já é utilizado em pistas de corrida de karts elétricos, a especialidade da empresa. Mas os sócios da KartFly – os engenheiros Fellipe Saldanha Garcia, Guilherme Mariottini Alves e Caê Castelli – vislumbram aplicações adicionais à tecnologia, como a localização de veículos e equipamentos dentro de plantas industriais.
O projeto foi desenvolvido com apoio do Programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (PIPE) e encerrou a Fase 1, de demonstração da viabilidade tecnológica, em maio de 2017. Segundo Fellipe Saldanha, pesquisador responsável pelo projeto, foi possível, inclusive, chegar a um protótipo com resultados considerados promissores. “Conseguimos chegar a uma precisão de 40 centímetros nessa primeira fase, mas a meta é atingir os 20 centímetros”, afirma.
Ele explica que o GPS (Global Positioning System), um dos sistemas de localização mais utilizados para veículos, que utiliza sinais de satélite, só é realmente eficaz em ambientes abertos e, mesmo assim, com precisão de cerca de 2 metros – o que pode ser suficiente para o motorista identificar a rua em que está, mas é ineficaz para identificar a localização de um veículo dentro de uma pista de kart ou um galpão industrial.
Os pesquisadores da KartFly optaram pelo uso da tecnologia conhecida como UWB (Ultra Wide Band) ou “Banda Ultralarga”, que usa sinais de rádio e é capaz de obter maior precisão em ambientes fechados, dependendo do algoritmo desenvolvido. Esse, aliás, foi o grande desafio da pesquisa: criar um modelo matemático para o cálculo da localização a partir do envio de sinais de rádio, que se propagam à velocidade da luz.
“Os karts possuem sensores que recebem sinais de rádio emitidos a partir de pontos fixos de referência espalhados pela pista. A partir da diferença de tempo em que o sinal se propagou, é possível calcular a distância do kart em relação à antena e, consequentemente, sua localização na pista”, diz Fellipe Saldanha.
No entanto, o uso do sinal de rádio não é apenas uma vantagem, mas, também, um problema a ser solucionado. “Os sinais de rádio propagam-se à velocidade de cerca de 300 mil km/s. Os relógios convencionais não conseguem medi-lo com exatidão, cabendo ao sistema matemático a tarefa de anular as imprecisões para obter a localização correta”, explica o pesquisador. Segundo Saldanha, o mercado já oferece sistemas de localização indoor com precisão de 20 centímetros, mas não com a velocidade em que correm os karts elétricos. “Na pesquisa que fizemos sobre sistemas de localização em ambientes fechados, todos os sistemas encontrados são para localização lenta de objetos, atualizando até cinco vezes por segundo quando mais de um objeto é rastreado. Já o sistema da K artFly foi testado com a velocidade de 25 atualizações por segundo, sendo que pode manter este desempenho com mais de 100 objetos rastreados simultaneamente. O sistema de localização foi projetado inicialmente para a velocidade dos karts (70km/h), podendo ser aprimorado para velocidades de até 300km/h.”
Videogame na vida real
Identificar com precisão de centímetros a posição em que cada kart circula em uma pista de corrida tem um propósito bem determinado no modelo de negócios da KartFly. A empresa pretende oferecer uma nova modalidade de corrida que reproduza, na vida real, algumas funcionalidades do videogame. “Será possível instalar na pista alguns sensores que alterem a velocidade do carro no momento exato em que ele passar pelo local. Assim, por exemplo, ao passar por um ponto da pista marcado com o adesivo ‘turbo’, ele terá a velocidade aumentada em alguns segundos, ou ao passar pela ‘lama’, terá a velocidade diminuída”, explica Guilherme Mariottini Alves, sócio responsável pela área administrativa da empresa.
Alves explica que o propósito inicial da empresa era criar uma experiência interativa em corridas de kart e ampliar as perspectivas do negócio. Inicialmente, a ideia era utilizar o sistema em pista própria e, numa segunda fase, expandir a empresa a partir de franquias e do licenciamento da tecnologia no mercado de entretenimento. Contudo, a participação da empresa no 2º Treinamento PIPE em Empreendedorismo de Alta Tecnologia (programa de capacitação de sete semanas que teve encerramento em dezembro de 2016) ampliou as perspectivas dos sócios da KartFly. Agora, para além do mercado de entretenimento, eles buscam parceiros no setor de logística. “A ideia é criar um novo modelo de negócio, sem excluir o antigo”, diz Guilherme Mariottini. Em futuro próximo, prevê o engenheiro, a tecnologia poderá ser aplicada amplamente em veículos autoguiados.
Adrenalina sem poluição
O próximo passo da empresa é estabelecer parcerias comerciais antes de aprimorar a tecnologia, pela qual pretendem expandir a empresa. Atualmente, a KartFly está consolidada no mercado de entretenimento: é dona de uma pista de kart elétrico na América Latina e produz seus próprios veículos, a partir de conhecimentos adquiridos nas pesquisas sobre baterias que Fellipe Saldanha vem realizando desde o mestrado em Engenharia Elétrica pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), entre 2008 e 2010.
Em 2012, Fellipe Saldanha uniu-se a Guilherme Mariottini e Caê Castelli, ambos engenheiros químicos formados pela Unicamp, para a participação do “Desafio Unicamp de Inovação Tecnológica”, competição de modelo de negócios idealizada pela Agência de Inovação Inova Unicamp. Os três (que logo se tornariam sócios) desenvolveram, juntamente com a engenheira de alimentos Marina Sodini, um modelo de negócios baseado em um sistema híbrido de armazenamento de energia elétrica, tema da pesquisa que Fellipe Saldanha havia desenvolvido em 2011, com o apoio do Programa PIPE. À época, Saldanha tinha uma empresa incubada na Unicamp, a Ekion Tecnologia de Veículos Elétricos.
O primeiro kart elétrico surgiu quase como uma brincadeira dos três amigos: “decidimos montar um kart com baterias que usávamos na produção de bicicletas elétricas”, lembra Saldanha. Nascia aí a KartFly, em 2013, disposta a inovar nesse ramo de entretenimento, oferecendo veículos que não emitem gases poluentes nem altos ruídos. Segundo Guilherme Mariottini, nos Estados Unidos já existem cerca de 100 pistas de karts elétricos e, na Europa, cerca de 150. A primeira pista brasileira foi instalada pela KartFly em 2014, em um shopping de Campinas.
Atualmente, Fellipe Saldanha está na Inglaterra e acompanha a empresa a distância. Recebeu convite para atuar na área de Pesquisa e Desenvolvimento de uma empresa de eletrônica. Ainda na condição de sócio, atua como consultor. O engenheiro eletricista Marcos Ferretti é o pesquisador principal. E enquanto buscam a aplicação do sistema de localização em novos negócios, os sócios da empresa continuam investindo no kart: “Estamos fazendo agora karts menores e de menor velocidade, que gastam menos energia e requerem menor investimento. Esses são voltados especialmente ao público infanto-juvenil. Com a possibilidade da localização indoor e da interatividade, esse será nosso principal público”, antevê o pesquisador.
Kartfly
http://kartfly.com.br
Telefone: (19) 99921-1254
Contato: http://kartfly.com.br/contato/
Palavras-chave: sistema de localização, entretenimento, Ultra Wide Band, kart, rádio

Excelência acadêmica requer custeio público, OESP


As boas universidades no Brasil custam pouco, caro mesmo é não saber criar conhecimento

*Fernanda de Negri, Marcelo Knobel e Carlos Henrique de Brito Cruz, O Estado de S.Paulo
05 Janeiro 2018 | 03h08
A crise fiscal dos Estados e da União e de várias universidades importantes tem suscitado um debate sobre modelos de financiamento da universidade e da pesquisa científica no País. O debate é bem-vindo, assim como a proposição de alternativas que possam impulsionar a formação de pessoas e a produção de conhecimento no Brasil.
Várias universidades de ponta pelo mundo, públicas ou privadas, têm fontes de receitas mais diversificadas – doações, fundos patrimoniais e mensalidades, entre outras – do que as universidades públicas brasileiras. Mesmo assim, quem mais paga pelos custos das grandes universidades do mundo, sejam elas públicas ou privadas, continua sendo o Estado.
Endowments são fundos patrimoniais, em geral provenientes de doações, comuns nas universidades norte-americanas. As receitas de tais fundos usualmente cobrem algo como 5% das despesas anuais. As mensalidades, por sua vez, também não são, por si sós, a solução, pelo menos não para universidades de pesquisa. No Massachusetts Institute of Technology (MIT), por exemplo, elas equivalem a cerca de 10% das receitas.
O mesmo vale para recursos de pesquisa oriundos de empresas, que no MIT são cerca de 5% da receita anual. Na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) têm ficado próximos de 3% nos últimos anos. Nenhuma diferença abissal aqui.
As melhores universidades do mundo, além do ensino, produzem pesquisa de alta qualidade e impacto, com benefícios sociais e econômicos acima de seus custos. Por isso o Estado é um dos seus principais financiadores. No MIT, os contratos de pesquisa e subvenções do governo norte-americano são a principal fonte de receitas da instituição: 67% do total para pesquisa no quinquênio 2011-2015. Em Oxford, cerca de 50% das receitas vêm do governo. Na Alemanha, onde as universidades são, em sua maioria, públicas, esse porcentual é ainda maior. Na Universidade Tecnológica de Munique, por exemplo, mais de 60% das receitas correntes são provenientes do governo.
Quando se fala no financiamento da pesquisa, o papel do Estado é ainda maior. Na Inglaterra, estima-se que 66% dos recursos de pesquisa das universidades sejam provenientes diretamente do governo inglês e outros 11%, indiretamente, venham da União Europeia.
No Brasil, as fontes de receitas não são tão diversificadas como em outros países. E também é verdade que nossas melhores instituições custam relativamente pouco ao Estado brasileiro. Uma comparação entre a Unicamp e o MIT, duas universidades de excelência em seus países e com grande vocação para a produção de tecnologia, evidencia esse fato. A Unicamp tem, somando repasses do governo do Estado e receitas extraorçamentárias, uma receita anual, em paridade do poder de compra, de cerca de US$ 1,1 bilhão, menos da metade da do MIT.
Acontece que o MIT possui 4.500 estudantes de graduação e 6.800 de pós-graduação, enquanto a Unicamp tem 19 mil alunos de graduação e 16.600 estudantes de pós-graduação. O número de professores, por sua vez, é praticamente igual, pouco menos de 1.900 docentes nas duas instituições, e o número de funcionários técnico-administrativos é um pouco superior no MIT. A Unicamp tem mais que o triplo dos estudantes, com metade do orçamento e o mesmo número de funcionários e professores, sendo um dos mais importantes centros de pesquisa no País.
O volume de recursos que o MIT recebe a mais do que a Unicamp é, provavelmente, o que faz a instituição norte-americana ser uma das melhores universidades do mundo. Esses recursos são investidos em novos centros de pesquisa, laboratórios e equipamentos e na contratação temporária de pesquisadores – os pesquisadores estagiários de pós-doutorado no MIT são mais de 5 mil, enquanto na Unicamp são apenas 270. Esses profissionais são definitivos para fazer a máquina de pesquisa do MIT funcionar tão bem. Ainda assim, a Unicamp é a universidade brasileira com o maior número de patentes solicitadas ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (Inpi).
Pesquisa científica é essencial não apenas para estimular a inovação e o crescimento econômico, mas também para resolver questões críticas do nosso desenvolvimento. Novas vacinas e novos tratamentos para doenças que afetam a população brasileira, tecnologias capazes de ampliar a produtividade agrícola e industrial, conhecimento capaz de mitigar os efeitos do aquecimento global sobre a nossa produção agropecuária são alguns dos exemplos. E é o Estado o grande financiador da ciência no mundo todo. Já a inovação exige investimentos empresariais.
As boas universidades no Brasil estão cada vez mais abertas às demandas da sociedade – incluídas aí as empresas. Precisam, além disso, buscar alternativas de financiamento e demonstrar transparência e visibilidade sobre os custos e resultados. Também precisam estar atentas às necessidades de uma das sociedades mais desiguais do mundo. Afinal, é o conjunto da sociedade que define, e assim deve ser numa democracia, os recursos que serão alocados para o ensino superior e a pesquisa científica.
As boas universidades no Brasil precisam e podem mostrar à sociedade que custam pouco, considerando sua qualidade e seus resultados. Precisam modernizar a gestão do orçamento, criando mecanismos internos de controle que permitam que as decisões sejam compartilhadas, transparentes e consistentes com nossa realidade econômica, demonstrando à sociedade os custos e impactos. E o Brasil precisa definir quantas boas universidades intensivas em pesquisa e ensino consegue manter em condições competitivas internacionalmente, considerando que caro mesmo para um país é não saber criar conhecimento.
*Respectivamente, técnica do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), reitor da Unicamp e diretor científico da Fapesp