O Sistema Único de Saúde (SUS) está sendo corroído “por dentro”, em um processo gradual, porém permanente de mudanças mais ou menos sutis, que visam desmanchar a solidez institucional com que ele foi concebido na Constituição de 88 – e, assim, favorecer cada vez mais o setor privado de saúde, com respaldo do Estado brasileiro. É o que conclui a socióloga Letícia Bona Travagin, em dissertação de mestrado orientada pelo professor Eduardo Fagnani e apresentada no Instituto de Economia (IE). Em sua pesquisa, a autora mostra a influência do discurso privatista do Banco Mundial na década de 90 e, dentre inúmeros mecanismos visando esta desestruturação, ela analisa especialmente as renúncias fiscais e os contratos com organizações sociais (OS) no setor de saúde.
Letícia Travagin afirma que a disputa entre Estado e mercado de saúde, colocada pela ideologia neoliberal desde a crise do Welfare State (Estado do Bem-Estar Social) europeu na década de 1970, mostra-se muito acirrada no Brasil, sobretudo nas áreas de seguridade social e da saúde. “O conflito se manifesta de duas formas no país: com a aceitação rápida da ideologia neoliberal pelo mercado de saúde, já que o setor possui um histórico privatista bastante forte; e pela reorientação política, ideológica e econômica no Brasil na década de 1990. Eu quis demonstrar na dissertação que o Estado brasileiro atua como promotor do setor privado de saúde, em detrimento do SUS.”
Segundo a socióloga, a desestruturação do sistema de saúde não é coisa nova nem exclusiva do Brasil, inserindo-se em um programa mais amplo de desestruturação dos grandes sistemas de proteção social na Europa e nos países subdesenvolvidos. “A reorientação macroeconômica da década de 90 trouxe discursos direcionados a esses países sobre gestão de saúde, havendo documentos do Banco Mundial específicos para o Brasil: estavam preocupados com a Constituição de 88, que foi desenhada pelo movimento sanitarista, tratando sobre seguridade social e prevendo um SUS grande, forte, universal e gratuito. Os documentos do Banco apontam, explicitamente, que o Estado brasileiro não poderia sustentar um sistema deste porte, que estava gastando demais e que deveria se limitar a regulamentar e incentivar o mercado de saúde.”
A autora da dissertação acrescenta que o histórico privatista do sistema de saúde se consolidou na ditadura militar, quando o modelo vigente era a compra de serviços privados pelo Inamps (Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social). “O Inamps comprava o serviço de saúde do setor privado e emitia uma fatura para o Estado. Este modelo que elevava o setor privado e rebaixava o setor público foi institucionalizado na ditadura. Mais tarde, com a implantação da macroeconomia ortodoxa, Luiz Carlos Bresser-Pereira, ministro da Administração e Reforma do Estado de Fernando Henrique, trouxe da Inglaterra, em 1995, a ideia da ‘publicização’: a transferência de serviços estatais para o mercado, não apenas em saúde, como em educação, pesquisa científica, cultura, etc. A lógica é reduzir o tamanho do Estado, que passa a pagar pelo provimento destes serviços.”
Eixos do desmonteNa opinião de Letícia Travagin, diante da série de golpes no plano constitucional contra o SUS iniciada nos anos 90, seria mais correto dizer que o sistema sequer foi implantado. “O desmonte se dá em todos os eixos do SUS, como de financiamento, gestão de recursos humanos, atenção básica e regionalização da saúde. Como são muitos para analisar, eu privilegiei dois eixos, sendo um deles a questão do financiamento, que é gritante para um sistema dito universal: de tudo o que se gasta com saúde no Brasil, mais da metade é privado e menos da metade, público – está muito abaixo dos países desenvolvidos, inclusive do Reino Unido, que também possui um sistema de saúde universal.”
O segundo eixo investigado pela autora é da contratação de organizações sociais, questão que ela considera mais preocupante, por ser bem menos conhecida. “A OS é uma empresa de direito privado que assume um estabelecimento público de saúde. A Constituição prevê um setor complementar a ser contratado pelo SUS, visando prover ações de saúde e aumentar a cobertura quando as suas instalações forem insuficientes. Acontece que a OS não é complementar, é substitutiva: sai a gestão pública e entra a gestão privada, e sem controle de gastos, já que o contrato é superflexível, a fiscalização extremamente frágil e o dinheiro público utilizado conforme as condições de mercado, com dispensa de licitação. É uma relação completamente deletéria ao sistema.”
A dispensa também de concurso público, observa Letícia, resulta em sérios problemas trabalhistas, visto que a transição para a gestão de OS prevê a possibilidade de exonerar os servidores públicos. “Em Campinas, recentemente, o Hospital Ouro Verde passou para uma OS, que assumiu todas as funções hospitalares. A Prefeitura simplesmente repassa a verba municipal para a OS, e os funcionários não têm vínculo de servidor público. Usa-se dinheiro do SUS para favorecer o mercado da saúde, nas condições que essas organizações quiserem. Esse mecanismo é muito pernicioso em tempos de crise fiscal: rebaixam-se os gastos públicos transferindo-os para o setor privado, e também para que os gastos não esbarrem na Lei de Responsabilidade Fiscal.”
A socióloga afirma que o gasto tributário (ou renúncia fiscal) é um mecanismo mais conhecido, em que o Estado oferece uma série de desonerações e incentivos fiscais não apenas para quem utiliza a saúde privada (planos de saúde, mas não só), como também para a indústria de medicamentos, por exemplo. “O problema é que isso diminui a arrecadação, e num contexto de SUS subfinanciado; se o sistema tem menos dinheiro do que deveria, diminuir a arrecadação é muito contraditório.”
Na visão da autora da pesquisa, a renúncia fiscal também é regressiva, principalmente quando se trata de pessoa física, que ganha desconto de imposto ao pagar plano de saúde. “Isso significa que o Estado, indiretamente, está favorecendo a demanda de planos de saúde. A renúncia fiscal girava em torno de R$ 20 bilhões até 2012/2013, com previsão de R$ 31 bilhões para 2016; é muito dinheiro que o Estado vai deixar de arrecadar. Além disso, ela é concentrada, favorecendo as OS e os ricos, classe média e classe média alta do Sudeste e das capitais – o setor privado de saúde está concentrado nas regiões mais ricas e com maior dinamismo no mercado de trabalho, porque depende de renda. É algo muito regressivo, espacialmente e em termos de renda.”
Conclusão preocupanteA conclusão de Letícia Travagin é de que o SUS passa por um processo gradual, mas permanente de corrosão, existindo apenas formalmente no papel. “É como uma estrutura porosa, que vem ganhando pequenos furos desde a década de 90. Para refazer o SUS é preciso voltar atrás em tudo o que foi desconstruído durante 26 anos: valorizar o financiamento e a gestão de recursos humanos, promover a atenção básica, regionalizar a saúde. Na atual perspectiva, isso é problemático. Quando anunciam uma reforma privatista, eu me preocupo muito em relação às organizações sociais, desconhecidas até por alguns médicos sanitaristas, que não sabem a diferença entre gestão pública, gestão complementar e gestão de OS.”
A economista insiste que as OS representam um problema escondido, não divulgado, e que tende a aumentar chegando a cidades menores. “Hoje temos cerca de 260 estabelecimentos de saúde geridos pelas OS no Brasil. Parece pouco, mas é preciso observar que esses estabelecimentos estão concentrados no Sudeste e capitais. Os dados até o ano passado mostram uma curva de crescimento acentuado e, nesta situação de crise fiscal e limitação de gastos do Estado, a opção mais fácil é jogar a saúde para o setor privado.”
A autora termina a dissertação demonstrando sua preocupação e pessimismo diante da situação política e econômica vivida hoje, quando se anuncia uma reforma privatista na saúde e em outros setores de interesse social. “O Estado se eximir da gestão da saúde representa um problema sério em qualquer país – e pior no nosso, por causa das características de renda e epidemiológicas típicas de um país de desenvolvimento tardio e incompleto. Nenhuma outra esfera vai assumir a responsabilidade de prover saúde. O setor privado não faz o que o Estado faz, é infactível pensar que vai cumprir a demanda de saúde da população. No Brasil, todas as soluções em saúde levam ao SUS.”
Publicação
Dissertação: “O Estado e o setor privado de saúde no caminho da desestruturação gradual do SUS”
Autora: Letícia Bona Travagin
Orientador: Eduardo Fagnani
Unidade: Instituto de Economia (IE)