O pesquisador Samuel Pessôa tem uma convicção sobre a economia
brasileira: “Vai piorar muito antes de melhorar”, em especial no que se refere
ao desemprego, que pode bater em 12% e ser o maior da história do País. Na
política, o especialista vê um cenário de dúvidas. Mesmo a favor do impeachment,
vê as chances da presidente Dilma Rousseff permanecer no cargo melhorando. “Com
ou sem mortadela, a reação a favor aumentou.”
Além disso, ele não tem certeza se o PMDB pode fazer as reformas
necessárias para tirar o País da crise. Segundo pesquisa que ele acompanha, o
partido prefere os bônus aos ônus do poder.
Leia abaixo os principais trechos da entrevista.
A crise está se acentuando. O sr. consegue ver uma saída?
Na minha conta, sem considerar receitas não recorrentes, apenas
receitas normais, o déficit primário do setor público neste ano vai a R$ 150
bilhões. No ano que vem, serão isso mais R$ 30 bilhões, ou R$ 180 bilhões no
total. No outro, R$ 210 bilhões. A fonte secou. A gente precisa zerar o jogo. A
solução passa pela sociedade toda. Para tirar o Brasil da crise, todo mundo vai
ter de perder.
O sr. está dizendo que não há como escapar de reformas profundas?
Para não ser isso aí, sim. Evidentemente, quem deve perder menos
são os pobres. No Bolsa Família não dá para mexer. No caso da aposentadoria de
assistência social, vai ter de desvincular o piso do salário mínimo – e aí
começa a mexer um pouquinho. Mas enquanto a gente não reconstruir uma estrutura
fiscal saudável, a gente não consegue manter a regra do salário mínimo. Vai ter
também de repensar todo mundo que está no lucro presumido do Simples, o que
pega as classes A e B. Repensar os grupos que têm receita especial,
penduricalhos, como o Sistema S, com uma regra de transição. Esses caras vão
ter de viver com o dinheiro deles, da capacidade de arrecadar. Vamos cortar
subsídios e desonerações. Tem de fazer uma reforma da Previdência, com idade
mínima, e aumentar a contribuição do servidor público que tem aposentadoria
integral. Tem de cobrar mensalidade em universidade federal. Tem alguém com
quem eu não mexi?
Parece ter mexido com todos.
Tem uma agenda para União e outra para Estados e municípios. A
agenda da União a gente compreende mais. Precisa redesenhar nosso Estado de
bem-estar social. Redesenhar, inclusive, para que possa atender melhor aos mais
pobres. Tenho visto o professor Belluzzo (economista Luiz Gonzaga Belluzzo) – e
me chateia muito ele falar isso – dizer que os liberais querem jogar a conta
nos mais pobres. Bom, nunca emiti essa opinião. Ele não cita o meu nome, mas
sei que está pensando em mim. Ninguém entre nós, os liberais, quer tirar
dinheiro de pobre. Não é isso. É preciso redesenhar esse Estado, exatamente
para atender os mais necessitados.
E para Estados e municípios?
Aí o ajuste fiscal é uma agenda com servidores. Tem de poder
demitir, cortar salário, principalmente quando não se tem dinheiro.
Que é o caso agora.
Sim. Que é o caso agora. Se não cortar gastos, voltamos à
hiperinflação.
Nós estamos no meio do processo do impeachment. Qual é o cenário
para a economia se Dilma ficar no cargo?
Esse era o cenário até um mês atrás. Eu achava que era muito
fácil conseguir os votos. Já não sei. E eu sou favorável ao impeachment.
Declarei. Acho que ela cometeu crime mesmo. Fez diferente do que os outros
governos. Não essa coisa de meia gravidez. Na pedalada, a quantidade importa.
Uma coisa é você ter um contrato de 100 com a Caixa, para a Caixa pagar os
programas sociais X, Y e Z e, nesse fluxo de caixa, às vezes, vira um mês ou o
ano, tem um negativo. Isso acontecia. Outra coisa é isso chegar a 500. Quem
lida com banco sabe. Uma coisa é o seu fluxo de caixa ficar 1% negativo e o
banco cobrir. Outra coisa é ficar 500% negativo. Assim, com Dilma, eu vejo um
cenário de empurra com a barriga o que esta aí. Não vejo mais catástrofe.
Não vê?
É assim: já estamos dentro de uma catástrofe. O PIB (Produto
Interno Bruto) caiu 3,8% no ano passado. Na nossa conta no Ibre (Instituto
Brasileiro de Economia da Fundação Getúlio Vargas), que é uma das mais
otimistas, vai cair 3,4% neste ano e 0,4% no ano seguinte. Ou seja, em 4 anos,
a gente vai ter um perda de PIB per capita de 10%. Se isso não é uma
catástrofe, eu não sei o que é. Perda de 10% de PIB per capita é motivo para ir
à guerra. A taxa de desemprego vai atingir 12,5% no fim do ano. Na Pnad Contínua
(Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios), 12,5% é mais do que na PME
(Pesquisa Mensal de Emprego), que só cobre regiões metropolitanas. Dos anos
1980 ao início dos anos 2000, medíamos o desemprego nas regiões metropolitanas.
Na época em que tínhamos desemprego de 12% nas regiões metropolitanas, com a
PME, o desemprego no País era 9%. Se pegar a Pnad anual em 2002 e comparar com
a PME da época, vai ver essa diferença.
O sr. está dizendo que vamos viver um desemprego recorde?
Estamos caminhando para isso. Se chegar a 12% na Pnad Contínua,
que é todo território nacional, será um desemprego nunca visto na história.
E qual é o cenário num eventual governo de transição com o PMDB?
Vou contar uma história. Há um ano, eu fui no lançamento de um
livro de Carlos Pereira e Marcos Mello, que são dois craques da ciência
política brasileira, que se chama Making
Brazil Work (Fazendo o
Brasil Funcionar), que tenta entender como, ao longo de muitos anos, o
presidencialismo de coalização funcionou. Eles pediram para eu fazer um
comentário. Eu fiz, dizendo a gente tem uma coisa que é meio incomum: o PMDB. O
partido tem quatro características muito marcantes. É grande, na dupla acepção:
grande geograficamente, porque cobre todo o território nacional, e grande de
tamanho por ter muitos deputados. É ideologicamente amorfo: você não sabe
direito qual é a ideologia dele. Também se abstém de competir pela cabeça do
Executivo nacional, mas, por outro lado, participa de todas as coalizões
governamentais. Está sempre no governo. Eu disse: Carlos, Marcos, esse animal é
uma jabuticaba? Só tem aqui? A gente conversou e começou a pesquisar. Eu sou um
mero palpiteiro. Mas a gente criou um indicador de PMDB e saiu procurando PMDB
pelo mundo.
Acharam outro?
Até agora não.
Como seria esse PMDB na gestão da economia na atual crise?
Essa é a pergunta de 1 milhão de dólares. Fiz para vários
cientistas políticos. Tem opiniões para todos os gostos. Tenho a maior dúvida.
Entre alguns cientistas políticos há uma visão otimista: seria um governo que
não vai precisar concorrer para a presidência, não precisou fazer campanha, não
tem que se comprometer com nada. É um governo de salvação nacional. Tem um nome
inglês para isso: “caretaker government”, algo como governo cuidador. Seria uma
coisa Churchill (primeiro ministro do Reino Unido, Winston Churchill) durante a
segunda guerra: sangue, suor e lágrimas, vamos que vamos. Nessas
circunstâncias, o País estaria disposto a pagar um custo. Mas acho que essa
visão é, como se diz...
Relativizada?
Tem uma outra palavra melhor, mas relativizada serve. Primeiro,
a reação a favor da Dilma está sendo maior do que qualquer pessoa imaginava.
Com mortadela ou sem mortadela, com ônibus da CUT ou não, 90 mil pessoas na
Paulista é importante. E não é só isso, mas se criou um clima de não vai ter
golpe. Interessante isso. Muitas pessoas importantes, formadores de opinião,
estão olhando o impeachment como o fim do governo Jango (João Goulart,
presidente deposto). Eu confesso que tenho uma dificuldade imensa de entender
isso. Nós temos o Supremo e o Congresso funcionando. Como que isso pode ser
parecido com a quartelada de 1964? Mas tem muita gente com importância, com
visibilidade na mídia, que tem essa leitura.
E o que isso significa?
Significa que a gente tem outra questão: como um governo pode
votar coisas muito dramáticas, mexer em direitos de toda a sociedade, sem
negociar isso numa campanha eleitoral? Eu não sei se a gente consegue fazer um
ajuste fiscal a partir de uma acordo das elites, do Senado. A elite da política,
em geral, está no Senado. Esses caras entendemos problemas, se reúnem num
jantar, negociam e convencem a câmara a aprovar. Funciona assim desde o
império.
E não tem como mudar?
Mas parece que o Brasil mudou nos últimos 30 anos. Está
colocando empresário na prisão. Faz um ano que Marcelo Odebrecht está preso.
Parece um país diferente. Nessa dimensão, a minha percepção, é que a operação
Lava Jato é ruim. Mas eu adoro a Lava Jato. Tem um imenso papel civilizatório.
Porém, para essa questão específica (criar as condições para que a sociedade
tenha um bom diagnóstico de seus problemas ), a operação Lava Jato é ruim.
Porque ela vende uma ilusão.
Que ilusão?
De que os nossos problemas se resumem à corrupção. Mas nossos
problemas são maiores. Por exemplo: a gente tem o pato da Fiesp (Federação das
Indústrias de São Paulo). Bom, a Fiesp vive de imposto compulsório. O imposto
foi criado nos anos 40. Numa época em que fazia sentido. A gente não tinha
INSS, não tinha escola pública, não tinha ensino técnico, não tinha um monte de
coisa. Era um país muito mais atrasado. A gente copiou um modelo de escola
técnica que vinha da Alemanha, financiado por um imposto sobre a folha de
salário. Fazia sentido. Dos anos 40 para cá, o País mudou. Acho que não faz
sentido. Nada contra o Sistema S. Gosto do trabalho deles, mas, dado o País
hoje, suas necessidade e dificuldades, eles precisam se financiar sozinhos.
A bandeira da Fiesp é contra o aumento de impostos, contra a CPMF,
medida que os economistas dizem ser difícil de se escapar.
É assim. E põem o pato na frente do prédio, mas a gente paga o
pato para eles, e paga há muito tempo. E quando a gente fala em tirar o pato,
esperneiam.
O PMDB não toca reformas, então?
Teoricamente, a cabeça do executivo nacional está caindo no colo
do PMDB por causa da incompetência superlativa da presidente Dilma – eu acho
que ela está sendo “impichada” por pura incompetência. Mas tenho visto que os
políticos do PMDB já estão pensando lá na frente e dizendo: “meu Deus do céu,
eu vou ser presidente”. Mas aí vou ter de administrar esta economia, que não
vai melhorar. Na verdade, vai ter de piorar muito antes de melhorar. Aí, como
eu vou concorrer nas eleições municipais? Começa a ter um conflito. Porque se
você é a cabeça do Executivo nacional, não só tem que escolher quem vai
concorrer, como tem de assumir o ônus da macroeconomia. Essa é uma conta que
cai para o partido que está liderando (o País). Os outros componentes da
coalizão não têm bônus quando a economia vai bem, mas não têm ônus quando vai mal.
Como agora a macroeconomia só vai dar ônus por um bom tempo, sinto rachaduras.
Talvez não seja tão tranquilo para o PMDB desembarcar, apesar de já ter
desembarcado. O custo não é só perder os ministérios. O custo é o ônus das
políticas necessárias para colocar o País nos trilhos.