CARLOS MELO - O ESTADO DE S. PAULO
02 Maio 2015 | 16h 00
Quase tudo o que a senadora tem dito a respeito do PT parece fazer sentido. Mas quase tudo não é tudo
Quase tudo o que Marta Suplicy tem dito a respeito do PT e do governo parece fazer sentido. Para o bem e muito para o mal, a legenda perdeu o brilho dos valores de sua fundação. Dispensou o patrimônio ético que um dia sua estrela supôs luzir. Por sua vez, o governo Dilma, com precisão meticulosa, errou em série: triunfalismo, ideologia, pensar estreito, cavalo de pau na economia. Também é verdade - e Marta confirma - que o partido ajudou a promover transformações positivas. Sim, quase tudo o que Marta diz a esse respeito faz sentido. Só não faz sentido a avaliação que ela faz de si mesma.
A senadora não pode fugir à responsabilidade. Prefeita e ministra, contribuiu com o longo processo que se deu no PT. É oportuno lembrar que, por exemplo, Rui Falcão, hoje presidente da sigla, foi homem forte de sua administração na prefeitura de São Paulo e, mais tarde, vice em sua chapa à reeleição. Símbolo dos valores históricos do PT que hoje Marta diz representar, Hélio Bicudo, seu vice até então, foi preterido naquela disputa em favor de Rui, figura de importância exclusivamente interna. No poder, foi essa a opção de Marta.
E Rui não se fez Falcão da noite para o dia. Presidente do PT municipal, fez sangrar a gestão Erundina (1989-1992). Há décadas está a serviço do atraso e da burocratização do partido. Pois a gestão de Marta na prefeitura resgatou e fortaleceu a nomenklatura que, por fim, controlou sua administração e a protegeu de questionamentos em várias áreas. Apelidada de Martaxa, a ex-prefeita é caso raro de derrota num sistema em que a reeleição foi feita para reeleger. Irônico que, à época (2004), Marta atribuísse à política econômica de Lula, a causa de seu fracasso - a mesma política que hoje, para se opor a Dilma, ela defende com ardor.
Marta pede coerência histórica e quase está certa nisso. Mas, ministra do Turismo durante o caos dos aeroportos em meados da década passada, receitou a usuários relaxarem (ou algo mais que isto) e não gritou por reformas. Candidata ao Senado, surfou no desenvolvimentismo da política anticíclica de Dilma, Mantega e quetais. Em 2012, os erros de Dilma iam céleres e Marta nada viu, nada alertou, não reagiu. Antes, pressionou para voltar ao ministério como compensação à candidatura de Fernando Haddad em São Paulo.
Coerência pouca é empulhação: quando Marta ergueu a voz foi antes para reivindicar espaços do que para questionar e rever práticas. Dirá que nada sabia? É plausível que nunca tenha ouvido o falatório e as suspeitas dos corredores de Brasília? Alegar desconhecimento pesa contra. Sim, a senadora faz um bom juízo a seu respeito e é natural que o faça. Quem se julga mais capaz tem obrigação de lutar pelo poder. E, claro, suas pretensões são desde sempre legítimas, tanto quanto as de qualquer cidadão.
O fato é que ela se considera “liderança política” de qualidade superior. De boa-fé, é o julgamento que faz de si. Para estes tempos de baixa, talvez até se destaque na terra arrasada da liderança atual. Mas o mais provável é que Marta seja apenas o resultado da confusão que normalmente ocorre entre “celebridade” e “liderança”. A análise fria e distanciada de sua história política permite inferir que a ex-prefeita fez-se pelas circunstâncias. Foram as mãos da fortuna que a colocaram no lugar certo, na hora exata do colapso do malufismo, em 1999-2000. Mais do que isso: quando teve oportunidade de inverter o processo, não fez.
Romper padrões sociais e sexuais na TV dos anos 1980 foi importante. Mas, de lá para cá, na política formal, Marta apresentou bem menos que o necessário. No front dos costumes políticos, não foi a prefeita que supõe. No centro da cena, exerceu a presença marcante de sua forte figura, de sua personalidade altiva, mas não conduziu processos, não elaborou transformações políticas. Nem questionou a tempo procedimentos que levaram à hecatombe petista. Difere-se, nesse caso, de Luiza Erundina, desde sempre antagonista das direções do PT, advertida e suspensa até o desenlace de sua saída do partido.
A estratégia de Marta é bradar coerência e resgatar ovelhas perdidas do velho PT. Avançar - empurrada pela fúria do antipetismo - sobre os despojos da administração Haddad, desfilar críticas pelo solo vermelho das ciclovias do prefeito. Faz sentido. Mas, coerentemente, admita-se que, entre as ex-prefeitas do ex-PT, o rosto original da pureza dos valores do PT de ontem é o de Erundina, não o de Marta.
Ex-adversários, agora mais gentis, esfregam as mãos e acorrem à senadora, vítima em seu enredo de ocasião. O magnetismo das grandes damas da sociedade, ao mesmo tempo soberbas e benemerentes, volta a brilhar nos seus olhos. Marta rejuvenesceu e está mais bonita. A sua carta-desfiliação seguiu-se o ritual de beija-mão naturalmente oportunista de adversários que sentem o perfume inebriante da rosa da cizânia que desabrocha no jardim do inimigo. Novamente, o poder de Marta não está no fundamento da ação, mas no símbolo que incoerentemente ostenta. Agora, sob nova direção.
CARLOS MELO É CIENTISTA POLÍTICO E PROFESSOR DO INSPER