domingo, 7 de dezembro de 2014

A Petrobrás é deles - MIGUEL REALE JÚNIOR


O ESTADO DE S.PAULO - 06/12


O petróleo era nosso, agora a Petrobrás é deles. Diante do volume de recursos desviados passou-se a usar a expressão lacerdista mar de lama, adjetivação dada pela UDN aos fatos ocorridos no final do governo Vargas, em 1953-54. Quais foram, há 60 anos, os acontecimentos que geraram expressão tão forte?

Na biografia de Getúlio Vargas (terceiro volume) Lira Neto conta que as acusações se prendiam à importação de dois veículos Rolls Royce para a Presidência da República, livre de imposto de importação. A importadora em vez de dois veículos importou quatro, livres de impostos, destinando dois a particulares - um à importadora Santa Teresinha, da família Maluf, e outro ao magnata Peixoto de Castro. Outras irregularidades denunciadas diziam respeito à concessão de loterias federais e à compra de locomotivas para a Central do Brasil sem licitação. A oposição dizia-se estarrecida, comenta o biógrafo, e daí apodar-se o governo de mar de lama.

Outro presidente acusado de corrupção, mas afastado do cargo por impeachment foi Fernando Collor. Márcio Thomaz Bastos, recém-falecido, e eu fomos chamados pela CPI do PC Farias para ajudar na elaboração do relatório final. Detidamente analisei as provas, especialmente as relações entre a Casa da Dinda, residência do presidente, e PC Farias. Constatei, então, ter PC Farias irrigado, com parte do dinheiro arrecadado com exigências praticadas em conjunto com autoridades federais, contas fantasmas movimentadas pela secretária particular de Collor, por via das quais se pagavam gastos da Casa da Dinda.

Pouco depois, José Carlos Dias telefonou-me convidando para reunião em sua casa, na qual se discutiria o impeachment de Collor. Estavam presentes o anfitrião, Dalmo Dallari, René Dotti, Flávio Bierrenbach e Fábio Comparato. René foi incumbido de elaborar um plano geral. Coube, posteriormente, a Comparato escrever a parte relativa à quebra do decoro e a mim, que tinha cópia dos elementos essenciais da CPI do PC Farias, redigir a acusação acerca do fato de o presidente ter deixado de zelar pela probidade da administração pública, sem apurar a responsabilidade de subordinados e recebendo benefícios na conta gerenciada por sua secretária.

O grupo de advogados teve mais duas reuniões para exame do texto, em minha casa e depois na casa de Márcio Thomaz Bastos, com a presença de Evandro Lins e Silva, na qual se aprovou a versão final, submetida aos presidentes da OAB-Conselho Federal e da ABI, subscritores iniciais do pedido de impeachment, fundado no descumprimento do dever constitucional de zelar pela probidade administrativa.

Em 2005 surgiu o mensalão, comprometendo a estrutura da República pela compra de votos de inúmeros parlamentares de diversos partidos às vésperas de votações importantes com recursos obtidos com a contratação falsa de publicidade e depois entrega de envelopes recheados em hotéis de Brasília, envolvendo ministro da Casa Civil e presidentes de partidos políticos na cooptação da vontade parlamentar. O presidente Lula de início se disse traído, depois vem tergiversando. A fragilidade da oposição permitiu que o presidente passasse incólume.

Mas são do seu governo as falcatruas na Petrobrás, sendo então a atual presidente, primeiramente, ministra de Minas e Energia e depois chefe da Casa Civil, mas sempre presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, conselho ao qual, pelo estatuto, coube a nomeação dos diretores, esses mesmos agora presos e acusados de locupletamento de milhões.

Denunciado o mensalão, que garantia a "fidelidade" da base governista, instituiu-se o petrolão, nova fonte de recursos a não serem contabilizados. O Tribunal de Contas da União (TCU) apontou em 2007 haver graves distorções em obras da Petrobrás, recomendando a paralisação da sempre lembrada refinaria de Abreu e Lima. O Congresso não acompanhou a recomendação do TCU e o Executivo nada fez. Em 2009 novamente o TCU recomendou e o Congresso acolheu, na Lei Orçamentária, a suspensão das obras da refinaria.

Alertadas a Presidência e a ministra Dilma, presidente do Conselho de Administração da Petrobrás, resolveu Lula vetar o artigo do projeto de lei orçamentária que suspendia a obra suspeita, com argumento do prejuízo social dessa paralisação, dando livre curso às irregularidades. Limitou-se a Presidência a recomendar à Corregedoria a apuração de eventuais desvios, sem se dar o devido relevo ao TCU e ao próprio Congresso, tanto que a Corregedoria, displicentemente, três anos depois, em 2012, afirmou não ter sido possível verificar nenhuma irregularidade por falta de conhecimento dos parâmetros utilizados pelo TCU na constatação dos desvios.

Hoje está estampado em cores gritantes o tamanho do desmando, a fonte contínua de montanhas de dinheiro desviado em obras e aquisições pelas diretorias da Petrobrás na gestão de Dilma e Lula, a ponto de um só gerente, agora em delação premiada, comprometer-se a devolver R$ 250 milhões de que se apropriara.

Segundo consta, havia um diretor responsável por gerir as vantagens ilícitas de cada um dos três partidos da base: PT, PMDB e PP. Assim, os parlamentares da base, formada por esses partidos, continuavam "fiéis" ao governo, que fechava os olhos aos desmandos de toda ordem na estatal, antes considerada a pérola da República, mas que ora amarga prejuízos e descrédito incomensuráveis no Brasil e no exterior. A peso de ouro o governo manteve uma maioria parlamentar sempre pronta a fazer naufragar CPIs no Congresso.

Cabe ao leitor comparar o sucedido à época de Getúlio e com Collor em 1992 ao que ocorre hoje para avaliar o que vem a ser um mar de lama, se há ou não omissão dolosa ou culposa no devido zelo da probidade administrativa e na apuração de responsabilidade de subordinados.

O ponto de não-retorno Por Luciano Martins Costa em 04/12/2014 na edição 827 OI

O noticiário de quinta-feira (4/12) sobre o escândalo da Petrobras alcança o ponto perseguido desde o início pela imprensa nos vazamentos seletivos de declarações colhidas da investigação: demonstrar que o dinheiro desviado da estatal alimentou o sistema oficial de doações para partidos políticos. Pelo que tem sido publicado aqui e ali, a relação de beneficiários alcança quase todas as siglas, mas o foco do noticiário é a aliança governista.
O fato de as manchetes se referirem apenas ao Partido dos Trabalhadores e seus aliados mais próximos é apenas uma das características do correligionarismo da imprensa. Em páginas internas há reportagens citando pelo menos 19 governadores que foram eleitos com dinheiro das empreiteiras acusadas de pagar propina para obter contratos no setor de petróleo e gás. O governador eleito da Bahia, Rui Costa (PT), e o paulista Geraldo Alckmin (PSDB) receberam as maiores fatias.
As doações feitas pela Camargo Corrêa, Engevix, Galvão Engenharia, OAS, Odebrecht e UTC, segundo os jornais, também alimentaram as campanhas dos candidatos à Presidência da República Dilma Rousseff e Aécio Neves. No entanto, há uma grosseira confusão no noticiário, entre as denúncias de pagamento de propina para a divisão fraterna de obras e serviços para a Petrobras e o sistema de financiamento de campanhas eleitorais.
Entre os dados divulgados até aqui, há muita declaração, mas o julgamento vai exigir provas de conexão direta entre as comissões pagas pelas empreiteiras para obter negócios com a estatal e o dinheiro que alimentou os caixas de praticamente todos os partidos. Evidentemente, essa conexão brota no senso comum, e certamente nove entre dez brasileiros estão convencidos de que todo sobrepreço fixado sobre qualquer contrato tinha como contrapartida uma contribuição para as eleições.
Acontece que nem tudo que sai no noticiário vai se reproduzir como peça judicial. O que a imprensa produz é uma predisposição ao julgamento, que pode vir a ser alterada ou descartada no processo. Entretanto, o que fica no imaginário é a impressão de que o sistema democrático é essencialmente corrupto.
Doações suspeitas
No final da linha de montagem dos vazamentos, esse será o sentido da decisão que deverá ser tomada, provavelmente no plenário do Supremo Tribunal Federal. As frases dos delatores, selecionadas criteriosamente pelos investigadores e reproduzidas pela imprensa com o cuidado de preservar alguns partidos e criminalizar outros, vão compondo um quadro onde já se pode observar a absoluta insustentabilidade do sistema de financiamento das instituições que são a base do sistema representativo.
Então, por que os jornais não vão direto ao ponto, levantando o debate sobre o modelo de doações paralelamente ao conta-gotas das denúncias?
A falta de esclarecimento sobre as alternativas que poderiam defender o sistema dos constantes ataques da corrupção estimula as manifestações dos adeptos da ditadura, que, embora em número reduzido, se apresentam para tumultuar as sessões do Congresso e tentar impor pela truculência seus slogans obscurantistas.
Há qualquer coisa estranha no ar. Os editores sabem que não poderão manter acobertado por muito mais tempo o fato de que a corrupção afeta todos o sistema partidário. O recorte que se faz no noticiário vai se desvanecer durante o julgamento, e não há eleições presidenciais no horizonte.
Qual seria, então, o projeto por trás desse movimento?
A análise das contas da campanha presidencial de Dilma Rousseff está nas mãos de um notório desafeto do Partido dos Trabalhadores, o ministro do STF Gilmar Mendes. O candidato derrotado à Presidência, Aécio Neves (PSDB), e seus principais aliados, estimulam sem disfarces os manifestantes que imaginam poder realizar um terceiro turno por vias tortas. A imprensa começa a dar ressonância à hipótese de um pedido de impeachment. 
O processo é o mesmo que foi tentado contra o então presidente Lula da Silva em 2006: sem coragem para verbalizar o impronunciável em seus editoriais, os donos da mídia liberam seus pitbulls, articulistas pagos para corromper o discurso jornalístico à base do achincalhe; depois, racionalizam a indecência com declarações encomendadas.
Se todas as doações a partidos são produto de corrupção, chegamos ao ponto de não-retorno. O que virá em seguida?

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

OS SENTIMENTOS DE AMOR E ÓDIO NA CAMPANHA ELEITORAL



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Leonardo Boff
Dizer que o brasileiro é um “homem cordial” vem do escritor Ribeiro Couto, expressão generalizada por Sérgio Buarque de Holanda em seu conhecido livro “Raízes do Brasil”. Ele entendia a cordialidade no sentido estritamente etimológico: vem de “coração”. O brasileiro se orienta muito mais pelo coração do que pela razão. Do coração podem provir o amor e o ódio.
Escrevo isso para entender os sentimentos cordiais que irromperam na campanha presidencial de 2014. Houve declarações de entusiasmo e de amor para os dois candidatos do segundo turno e de ódio profundo de ambas as partes do eleitorado.
Talvez em nenhuma campanha anterior tenham-se expressado os gestos cordiais dos brasileiros no sentido de amor e ódio contidos nessa palavra. Quem seguiu as redes sociais se deu conta dos níveis baixíssimos de polidez, de desrespeito mútuo e até falta de sentido democrático como convivência com as diferenças. Essa falta de respeito repercutiu também nos debates entre os candidatos, transmitidos pela TV.
Para entender melhor essa nossa cordialidade, cabe referir duas heranças que oneram nossa cidadania: a colonização e a escravidão. A colonização produziu em nós o sentimento de submissão. Em consequência, criaram-se a casa-grande e a senzala. Elas foram internalizadas na forma de um dualismo perverso: de um lado, os senhores que tudo possuem, e, do outro, o servo que pouco tem. Essa estrutura subsiste na cabeça das pessoas e se tornou um código de interpretação da realidade.
ESCRAVIDÃO
Outra tradição muito perversa foi a escravidão. Houve uma época em que mais da metade do Brasil era composta de escravos. Hoje, cerca de 60% da população possui algo em seu sangue de escravos afrodescendentes. A escravidão foi internalizada na forma de discriminação e preconceito contra o negro.
As consequências dessas duas tradições estão no inconsciente coletivo brasileiro em termos de status social. Diz-se que o negro é preguiçoso, quando sabemos que foi ele quem construiu quase tudo que temos em nossas cidades. O nordestino é ignorante porque vive no semiárido sob pesados constrangimentos ambientais, quando é um povo altamente criativo, desperto e trabalhador. Do Nordeste nos vêm grandes escritores, poetas e atores. No Brasil de hoje, é a região que mais cresce economicamente, acima da média nacional. Mas os preconceitos os castigam à inferioridade.
Todas essas contradições de nossa cordialidade apareceram nas redes sociais. Somos seres contraditórios em demasia.
AMBIGUIDADE
Acrescento ainda um argumento de ordem antropológica para compreender a irrupção dos amores e ódios nessa campanha eleitoral. Trata-se da ambiguidade frontal da condição humana. Cada um possui a sua dimensão de luz e de sombra, de simbólica (que une) e de diabólica (que divide). Cada um deve saber equilibrar essas duas forças.
Esses meses de campanha eleitoral mostraram quem somos por dentro, cordiais no duplo sentido: cheios de raiva e de indignação e, ao mesmo tempo, de exaltação positiva e de militância séria.
Devemos procurar entender e buscar formas civilizadas de cordialidade nas quais predomine a vontade de cooperação em vista do bem comum, se respeite o legítimo espaço de uma oposição inteligente e se acolham as diferentes opções políticas. O Brasil precisa se unir para que todos juntos enfrentemos os graves problemas internos e externos, num projeto por todos assumido, para que se transforme o país na “terra da boa esperança” (Ignacy Sachs).