domingo, 23 de fevereiro de 2014

Pequena diplomacia - EDITORIAL FOLHA DE SP


FOLHA DE SP - 23/02

Na terça-feira, a estudante brasileira Emiliane Coimbra, 21, foi detida em Puerto Ayacucho, Venezuela. Passou a noite num quartel, foi indiciada e não pode deixar o município até ser julgada. Seu crime: portar um cartaz com os dizeres "Abaixo Maduro; abaixo a escassez e abaixo a violência".

A crer no comunicado oficial do Mercosul, divulgado no domingo passado, ela e milhares de outros manifestantes naquele país realizam "ações criminais" e "querem disseminar a intolerância e o ódio".

O texto não faz mais que ecoar palavras usadas pelo presidente da Venezuela, Nicolás Maduro, contra seus opositores. Apesar disso, o governo brasileiro o subscreveu, como se fosse um abaixo-assinado, e não um documento diplomático.

Há grande contraste com declarações de outros organismos regionais, como a Celac (Comunidade dos Estados Latino-Americanos e Caribenhos). Formada por 33 países, a entidade não demoniza os protestos e defende os direitos humanos, a "institucionalidade democrática, o respeito à lei e à informação fidedigna e veraz".

Logo se vê que o governo Dilma Rousseff não está interessado em se destacar como facilitador do diálogo no país vizinho, e menos ainda como freio à escalada autoritária de Maduro. Contenta-se com o apoio incondicional ao aliado.

Seria o caso de lembrar à diplomacia brasileira que vigora, no Mercosul, uma cláusula estabelecendo a plena vigência das instituições democráticas como condição para integração entre as partes.

Na Venezuela, contudo, Leopoldo López, um líder da oposição, é acusado de golpismo por fomentar atos contra Maduro; a sede de seu partido, Voluntad Popular, foi invadida pela polícia, e grupos paramilitares perseguem manifestantes e jornalistas nas ruas.

Tais abusos se desenrolam em meio a um blecaute informativo imposto pelo governo, que proibiu a transmissão de protestos e até expulsou o canal de TV CNN.

Anteontem, o International Crisis Group, que assessora entidades como ONU e União Europeia, exortou o Brasil a "ser mais ativo em insistir numa solução política".

Além da afinidade ideológica do PT com o chavismo, há um motivo pragmático para a cumplicidade do Planalto. A Venezuela tornou-se importante parceiro comercial do Brasil --o saldo com o vizinho caribenho em 2013, US$ 3,7 bilhões, foi maior do que o alcançado com a Argentina, US$ 3,2 bilhões.

Interesses dessa natureza, entretanto, não escondem as crescentes arbitrariedades de Nicolás Maduro. Ao manter alinhamento automático com a Venezuela, a diplomacia brasileira se apequena.

Justiça precisa de agilidade - EDITORIAL CORREIO BRAZILIENSE


CORREIO BRAZILIENSE - 23/02
As pessoas obedecem aos mandamentos do Senhor não porque querem ir para o céu. Mas por temer o inferno. Essa é a conclusão da pesquisa sobre a motivação de alguém fazer o bem em detrimento do mal. O medo funciona como freio que leva homens e mulheres a escolher um caminho em vez de outro. O estudo se aplica para a Justiça.
É o temor da cadeia que controla o ímpeto raivoso de avançar sobre o inimigo, dar socos, pontapés, ferir e matar. É a certeza da punição que impede a mão de desferir facadas, de puxar o gatilho ou de levar avante plano para usufruir vantagens indevidas e roubar, premeditadamente, a vida de crianças e adultos.

Dados divulgados pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) preocupam e causam justa indignação de quem chora a morte de familiares ou teme ser a próxima vítima. Segundo o levantamento da instituição, os tribunais estaduais só julgaram 10,6% dos processos de homicídios dolosos recebidos até 2009. Falta ainda a conclusão de 58,5 mil processos. São crimes em que houve intenção clara de assassinar.

Não se deve ao acaso, assim, a vexatória posição do Brasil no confronto internacional. De acordo com o Mapa da Violência de 2013, aqui acontecem 27,1 homicídios por 100 mil habitantes - índice bem superior ao aceito pela Organização das Nações Unidas (ONU), de 10 mortes pelo mesmo grupo de pessoas.

A demora de chegar ao fim do processo acarreta consequências que talvez respondam por parte da desenvoltura com que bandidos agem Brasil afora. De um lado, transmite a sensação de impunidade, que estimula a violência e a crescente desobediência à lei. De outro, aumenta a sensação de insegurança, que desestimula a população a sair de casa, restringe o direito de ir e vir e condena a todos a se aprisionar atrás de altos muros.

Entidades ligadas ao setor apresentam causas que explicam, ou tentam explicar, o quadro calamitoso em que o país se encontra. A Associação dos Magistrados Brasileiros responsabiliza a escassez de juízes. O Brasil conta com 20 mil magistrados. Precisaria do triplo para fazer frente à demanda, que cresceu geometricamente com a Constituição de 1988.
Outras falhas também contribuem para o acúmulo das ações e para a demora da sentença. Entre elas, a má gestão. Sem profissionais atuantes, prazos se ignoram impunemente. Impõe-se melhorar a atuação da Justiça. O estabelecimento de metas vem em boa hora. É importante cumpri-las. O mutirão, previsto para o próximo mês, contribuirá para reduzir a longa fila de espera.

Ações de bombeiro apagam incêndios, mas não resolvem o problema. É inadiável corrigir as falhas estruturais para encerrar, de vez, o capítulo que atravanca a tramitação rápida do processo. Aumentar o quadro de magistrados e qualificar os profissionais que atuam no setor são iniciativas urgentes. Sabe-se que juízes e servidores comprometidos não se compram em supermercado. Concurso e treinamento são processos demorados. Não há tempo a perder.

64 + 50 - BELMIRO VALVERDE JOBIM CASTOR


GAZETA DO POVO - PR - 23/02

Estamos a um mês do cinquentenário do movimento militar de 1964 e, com isso, deve surgir um grande número de avaliações, revisões, críticas e desabafos sobre os 21 anos em que os militares tutelaram o Brasil. E o que aconteceu há 50 anos ainda aguarda um olhar desapaixonado de historiógrafos e de cientistas sociais, pois, embora Hegel tenha dito que a história é sempre escrita pelos vencedores, no Brasil foi diferente: a história do que aconteceu em 1964 e nas duas décadas seguintes tem sido escrita e reescrita invariavelmente pelos perdedores.

Eu mesmo, que por força da idade acompanhei de perto ou de longe o que aconteceu nos últimos 50 anos, me surpreendo com a maneira com que fatos que presenciei são narrados, com a eleição arbitrária de bandidos e mocinhos como se de um lado (o da oposição aos militares) se agrupassem todas as virtudes, o heroísmo e as intenções nobres e, do outro, se refugiassem todos os vícios e torpezas. Não foi assim; de um lado e de outro matou-se, torturou-se e “justiçou-se” adversários. A barbárie não escolheu lado nem suas vítimas.

À medida que o tempo passa, essa dificuldade em analisar objetivamente o papel dos militares na vida política recente se torna mais e mais difícil; afinal, a grande maioria dos comentaristas e estudiosos não era nascida quando a renúncia de Janio Quadros deflagrou o processo político-militar que resultou na deposição de João Goulart. Como o Brasil não é exatamente uma cornucópia de documentos e informações confiáveis para a pesquisa histórica, é inevitável a repetição de lugares-comuns e de simplismos que parece rondar as tentativas de entender o que aconteceu naquele período.

Este artigo é um checklist básico de fatos e personagens que não podem ficar fora de um trabalho de interpretação do movimento de 1964. Se as pessoas e os fatos citados não estiverem no radar dos candidatos a exegetas e escribas, está na hora de recorrer ao Google e às fontes confiáveis para produzir um relato realmente sério.

Primeiro, as perguntas fáceis: por que 500 mil pessoas em São Paulo e outras tantas no Rio marcharam com Deus e pela liberdade? Seriam todos conservadores? Ou mulheres mal amadas, como queria o cronista Antonio Maria? Ou demonstravam a opinião dominante de amplas áreas da sociedade sobre o governo de João Goulart?

Que eram as Ligas Camponesas? E os Grupos dos Onze? O que pretendiam Francisco Julião e Leonel Brizola quando criaram esses grupos paramilitares? Quem eram os “generais” e “almirantes do povo” e que papel tiveram na quebra da hierarquia dentro das Forças Armadas? E o que era o “dispositivo sindical” de Jango, chefiado por pelegos como Clodomith Riani e Dante Pelacani? Uma pista: os generais e almirantes do povo, como os almirantes Candido Aragão e Paulo Mário e o general Osvino Ferreira, brincavam de populismo com cabos e soldados, enquanto Pelacani e Riani “aparelharam” o Ministério do Trabalho, aliás de uma maneira muito mais tosca do que acontece nos nossos dias. Google neles!

Leituras obrigatórias? O Retrato, de Osvaldo Peralva, e Combate nas Trevas, de Jacob Gorender, dois relatos insuspeitos a respeito da reação da burocracia do Partido Comunista Brasileiro ao Relatório Kruschev e à denúncia dos crimes do regime stalinista, o mesmo que até hoje, meio século depois, provoca suspiros de admiração em alguns hierarcas da esquerda brasileira. E A Ditadura Envergonhada, de Elio Gaspari, uma fotografia sem retoques dos primeiros anos do governo de Castello Branco e do período que precedeu o embrutecimento do regime sob Médici. E, por fim, o artigo de Marco Antonio Villa no Estadão de 19 de fevereiro, “Golpe à brasileira”.

Se, apesar dessas cautelas, os eventuais escribas preferirem insistir nos clichês e nos simplismos maniqueístas, é sinal de que não lhes interessa produzir uma historiografia sine ira et studio, sem raiva nem emoção, como sugeriu Max Weber, e sim vocalizar suas opiniões pré-concebidas.