segunda-feira, 9 de julho de 2012

O visionário da província


RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE; INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA; DIRETOR-, PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE - O Estado de S.Paulo
RENATO LESSA
Há cerca de seis anos, em 2006, o então prefeito de São Paulo, José Serra, renunciou ao mandato, conquistado nas eleições de 2004, para ingressar na corrida eleitoral ao governo paulista. Salto bem-sucedido, posto que lograria derrotar Marta Suplicy, qualificando-se, assim, à condição que, como sabemos, propiciaria mais à frente a reedição do ato de renúncia. Com José Serra, pela compulsão à repetição, aprendemos que renunciar é humano.
Por unilaterais e caprichosas, renúncias são ocasiões ímpares para pensar a respeito do peso dos contrafactuais na história humana. Não tivesse José Serra renunciado, e se reeleito fosse à Prefeitura de São Paulo em 2008, estaríamos hoje a falar de Gilberto Kassab, com a magnitude que o desagradável princípio de realidade nos impõe?
É certo que as ações humanas, se procurarmos estabelecer suas causas, podem ser submetidas ao abismo das regressões ao infinito. Detectada o que julgamos ser a causa de algo, sempre é possível indagar sobre causas dessa causa, e assim por diante - ou melhor, para trás -, até retrocedermos a um momento inaugural, seja ele o da moldagem de Adão ou da eclosão do bóson de Higgs. De todo o modo, ainda que isso seja verdadeiro, é inegável que na genealogia do animal político Kassab o efeito de causalidade exercido pela primeira renúncia de José Serra tem forte relevância.
Vá lá que o ato procriador praticado pelos pais do atual prefeito de São Paulo tenha sido uma condição necessária para que viesse a ter existência biológica. Contudo, parece ser indisputável o fato de que o ato de renúncia de Serra produziu um efeito político preciso, qual seja o da entronização de Kassab ao, digamos, primeiro time da elite política nacional. Suponho que não seja exagero imaginar que o ocupante do posto de prefeito da cidade de São Paulo, a mais importante cidade do hemisfério sul, não possa ser descrito de maneira diferente.
Determinar a causa eficiente do fenômeno não traz consigo a suposição de que havia intencionalidade na coisa: os efeitos procedem das causas, mas só adquirem fisionomia própria pelo que a elas acrescentam. Se a entronização de Kassab no campo político nacional derivou de um ato inicial, movido por considerações de oportunidade política de curto prazo, é importante não desvalorizar, para fins de interpretação, o que o personagem acrescentou de si ao presente que recebeu.
O personagem eminentemente local transformou-se em pouco tempo em um operador relevante no cenário nacional. Já não conta mais como prefeito: o que faz e o que se diz do que faz em São Paulo está aquém de seu peso específico no plano nacional. Para avaliar tal peso, as medidas são outras: um partido com mais de meia centena de deputados federais - o que representa 10% da Câmara de Deputados - e dois senadores.
A importância do kassabismo extrapola, contudo, a contabilidade parlamentar. O empreendimento do prefeito de São Paulo exibe de modo aberto a lógica do presidencialismo de coalizão, por meio de um truque de rara destreza: transformar meia centena de deputados obscuros, condenados às agruras das legendas de oposição, às quais em sua maioria pertenciam, em um conjunto disponível para trocas generalizadas. A sigla partidária, marca fantasia da organização, afirma-se negativamente, no que diz respeito a ideologias: não é de esquerda, de direita ou de centro. Quer isso dizer que se sente à vontade em qualquer ambiente. Ao modelo, em si mesmo generoso, do presidencialismo de coalizão, o partido do dr. Kassab propicia o acréscimo de potenciais 50 novos clientes, manobra extensiva aos municipalismos e aos "estadualismos" de coalizão.
Curiosamente, o dr. Kassab é o que vai de mais genuíno e autoevidente pela vida política nacional. Com ele não há riscos de decepção: qualquer domicílio o receberá de portas abertas, sem possibilidade de dano a seus, digamos, valores e princípios. O partido kassabista é sobretudo um experimento aberto de hiper-realismo político, em um grau que talvez nenhum dos partidos "relevantes" brasileiros esteja disposto a assumir. Mesmo o PMDB, mãe de todos os realismos, não dispensa, una y otra vez, menções a seus heróis e mitos de origem. Com os kassabistas, nada disso: eles expõem com clareza ofuscante os fundamentos correntes da política brasileira. É, pois, um empreendimento que elimina toda suspeita a respeito da opacidade das palavras. Para o kassabismo, as palavras são o que elas são, não escondem, iludem, parafraseiam ou aludem. Pretendem dizer o que a coisa é. Enfim, temos a tão desejada instalação da verdade na política.
Kassab indica o vice na chapa de Serra, arqui-inimigo do petismo, e apoia Patrus Ananias, herói petista, em Belo Horizonte. A senadora Kátia Abreu (PSD-PA), livre dos ares moribundos do ex-PFL, manifesta simpatia pela reeleição de Dilma Rousseff. E por aí vamos: tudo é permitido, tudo é divino e maravilhoso. Pensando bem, Kassab é mesmo um herói do presidencialismo de coalizão. Na verdade, um pequeno prestidigitador, a exibir o fato grave de que a existência de partidos "relevantes" e "coesos", bem como sua criação, nada tem a ver com o que se passa no plano da vida social. Política sem princípios e sem lastro social: há quem diga que se trata de uma "democracia consolidada".

ONGs se dedicam a fechar negócios


Rio+20 se tornou fórum de fomento a projetos, acordos de cooperação e negócios

24 de junho de 2012 | 3h 05
ANTONIO PITA, HELOISA ARUTH STURM / RIO - O Estado de S.Paulo
Longe das discussões políticas e da retórica anticapitalista de alguns, a Rio+20 pode ser considerada um sucesso para ONGs e empresas que apostaram no evento como oportunidade de concretizar parcerias e projetos.
No último dia da conferência, o secretário-geral da ONU para a Rio+20, Sha Zukang, anunciou que durante os eventos oficiais foram firmados cerca de 700 compromissos voluntários entre ONGs, empresas, governos e universidades. Isso significa um investimento de US$ 513 bilhões para ações de desenvolvimento sustentável nos próximos dez anos.
Mais que partilhar experiências e discutir práticas sustentáveis, para muitas instituições a Rio+20 se transformou em fórum de fomento a projetos, acordos de cooperação e negócios.
É o caso do Instituto Terra de Preservação Ambiental (ITPA), atuante no interior do Rio, que aproveitou a Cúpula dos Povos para firmar parceria com a União Internacional para a Conservação da Natureza (IUCN) e se tornar parte de um ambicioso projeto que pretende restaurar 1,5 milhão de km² de florestas no mundo até 2020. Somente no Brasil, pretende-se recuperar 10 mil km², quase o dobro do desmatamento registrado na Amazônia em 2011. Ao ITPA ficará a responsabilidade de recuperar mil hectares de Mata Atlântica - 0,1% da meta brasileira.
"Vamos fazer parte dessa aliança mundial e estamos levantando áreas e dimensionando a equipe", diz o cofundador do Itpa, Maurício Ruiz, que dobrará seu quadro de funcionários, atualmente de 130 pessoas. De acordo com a IUCN, essa meta mundial possibilita injetar mais de US$ 80 bilhões nas economias nacionais e globais.
Na outra ponta, empreendedores também vislumbram o mercado verde, oferecendo consultoria para empresas que buscam reduzir a ineficiência em seus processos. "Mostramos que a redução dos custos passa pela redução do impacto ambiental", afirma Krishnamurti Evaristo, da empresa de consultoria Vaporenge.
Novo perfil. A transformação dos eventos da Rio+20 em espaço de interação e negócios também revela a mudança no perfil de atuação das ONGs nos últimos20 anos. Se em 1992 as instituições do terceiro setor se caracterizavam pela informalidade, forte apelo ideológico e pouca estrutura, hoje muitas contam com organização profissional e modelos empresariais de prestação de contas e financiamento.
A avaliação é de Reinaldo Bugarelli, coordenador do curso de gestão do terceiro setor da FGV. Para ele, que participou da conferência em 1992, as parcerias e contatos feitos na conferência são um efeito colateral positivo em função da tecnologia de gestão e agendas entre ONGs mais estruturadas e as pequenas associações. Bugarelli indica que a busca de financiamento nas empresas acabou por influenciar a estrutura das instituições.
Gestão. "As organizações adotaram à imagem e semelhança o modelo de gestão dessas empresas, para ser mais efetivas, demonstrar resultados. Isso acaba por tirar um pouco da criatividade e da energia transformadora das instituições, da sua inovação no pensamento da sociedade", avalia.
É com esse pragmatismo que pretende atuar o Grupo de Trabalho Novas Fronteiras para Cooperação do Estado do Maranhão, que desde 2004 funciona como rede de articulação entre ONGs de 84 municípios que desenvolvem atividades de agricultura familiar, gestão de resíduos, preservação das matas ciliares e extrativismo - especialmente do babaçu, uma das principais atividades econômicas de pequenas comunidades da região.
"Nosso foco é inserir o processo econômico dentro da preservação do meio ambiente", afirma Edval Oliveira, diretor de articulação institucional do grupo. Oliveira veio à Rio+20 com 13 conselheiros e aproveitou a visita para selar cinco parcerias com pequenas empresas no espaço SebraeTec, no Aterro do Flamengo. Elas prestarão consultoria à ONG, com apoio do Sebrae, em qualificação profissional, eficiência energética, medição de carbono e tecnologias sustentáveis. O próximo passo, segundo Oliveira, é difundir esse conhecimento nas cooperativas e associações de produtores, fechar parcerias institucionais com governos e desenvolver estratégias de captação de recursos para viabilizar todas essas medidas.
Apoio. E para que a falta de dinheiro não seja um obstáculo à concretização dessas iniciativas, há entidades que atuam exclusivamente como apoio financeiro, como a Sitawi - Finanças do Bem, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (Oscip) que oferece empréstimos abaixo do mercado e gestão de fundos sociais, para que ONGs não dependam apenas de doações.
No Brasil, as doações movimentam cerca de R$ 10 bilhões por ano. É pouco comparado ao volume de empréstimo a pessoas jurídicas, que chega a R$ 1 trilhão por ano, segundo Leonardo Letelier, presidente da Sitawi. "Isso não quer dizer que crédito resolve todos os problemas nem que todas as organizações sociais deveriam fazer empréstimo. Quer dizer que esse recurso deveria estar disponível para quando fizer sentido", diz Letelier.

Fantasmas no caminho


Fernando Gabeira
A imprensa vê nuvens cinzentas e o governo, céu azul. O que vejo eu, com tão precários instrumentos de observação?
Num intervalo de meus compromissos visitei um shopping center em São Paulo. As lojas estavam vazias. Eram 14 horas. Os compradores já se foram ou ainda não chegaram, pensei. Nos restaurantes os garçons perfilavam-se à espera do primeiro visitante para cercá-lo de todo o excedente de atenção que as circunstâncias permitiam. Alguma coisa estava acontecendo com o consumo. Li que o índice de inadimplência atingira o nível mais alto dos últimos tempos e as famílias brasileiras comprometem um quinto de sua renda com dívidas. Um articulista do Financial Times vê uma bolha de crédito e alerta para o perigo de estourar. Será que havia relação entre alguns dados e o que eu via nas lojas desertas?
O olho pode enganar. O governo reduziu impostos de carros, lançou um pacote de compras, continua apostando no estímulo ao consumo, como em 2008. Os limites vão sendo empurrados para a frente. Podem ser mais elásticos do que parecem. O governo não estaria, como costumam fazer alguns generais, travando hoje a batalha da guerra passada?
Vejo nuvens cinzentas no céu azul. Será que vai chover? O otimismo político traz-me insegurança em certos momentos.
A Petrobrás, por intermédio de Graça Foster, admitiu a necessidade de tornar mais realistas os seus planos estratégicos. Com isso reconheceu ser preciso pôr os pés na terra. Alguns observadores acham que nem na terra ainda ela pôs os pés, só se aproximou dela. O ex-presidente José Sérgio Gabrielli já se prepara para disputar eleições. Na nova profissão vai poder sonhar à vontade: construir uma nova Bahia, meu rei. O bilionário Eike Batista também sentiu o frio na barriga com a queda de sua empresa da área do petróleo. Só que Eike é o dono da empresa e tem de segurar a onda.
Saí de São Paulo com medo do fantasma da bolha e encontrei em Goiás o fantasma da casa - a casa do governador Marconi Perillo, que teria sido comprada por Carlinhos Cachoeira. Nos quatro dias em que convivi com os goianos na bela cidade de Cora Coralina duvidei, de novo, dos meus olhos. É que levava de São Paulo a impressão que me passou um editor de jornais de TV: quando entra a CPI do Cachoeira, cai a audiência. Achava natural. A maioria da CPI joga como um time que não quer jogar, dando chutões para cima e muita bola para a lateral. São aqueles jogadores que parecem nos dizer: "Olha, o jogo já acabou, é melhor ir saindo porque você não vai perder nada, não corre o risco de ouvir um grito de gol já no ponto do ônibus".
Em Goiás, quando entra a CPI do Cachoeira, quase todos se aproximam da TV. Isso diz respeito à vida de um dos Estados mais importantes do Brasil. Nas telas há um fantasma da casa, povoada de inúmeros fantasminhas vestidos de cheque bancário. Eles passam e voltam, mas os espectadores estão atentos. A casa e os cheques envolvem o governador do Estado.
O impacto do escândalo Cachoeira pegou Goiás em cheio. Quem conheceu o senador Demóstenes Torres ou votou nele ficou chocado, até mesmo com o tom subalterno com que tratava Cachoeira. Goiás merecia um bom trabalho do Congresso. Como merece o País, sobretudo após a divulgação de que sete empresas fantasmas receberam R$ 93 milhões da Delta.
Nesse mundo povoado de fantasmas a realidade vai penetrar, como o fez na economia. Num jogo de futebol é possível retardar a partida, truncá-la até o apito final. Mas na CPI do Cachoeira não haverá apito final. Uma parte da audiência pode ter-se perdido, porque o jogo é muito feio. Goiás, Tocantins, Brasília tendem a ficar de olho, mesmo se os congressistas continuarem jogando a bola para a lateral, mesmo que caia a audiência da CPI nos jornais noturnos.
É simples assim: muita gente no País sabe que está sendo roubada, gostaria de saber quanto roubaram, quem será punido e como devolver o dinheiro aos cofres públicos. Se isso for negado, viveremos numa bolha de outra natureza, que só um movimento popular pode estourar. O limite de endividamento foi atingido, por que não o seria o da paciência? A estrutura política, além de ostensivamente dispendiosa, recebe milhões de reais em propinas. E, ainda por cima, retorna muitos milhões de dinheiro público para retribuir a quem a suborna. Esse mecanismo perverso não pode durar. É uma ilusão esperar que seja um fato natural, aceito como a sucessão das estações do ano.
Talvez eu me tenha iludido com o que vejo ou mesmo sido levado a pensar assim por causa do percurso São Paulo-Brasil Central, do centro econômico às bases de operação de Cachoeira. Nuvens cinzentas ou apenas um relâmpago no céu azul? País fantástico ou fantasmagórico? Chega um momento em que é preciso contar com os próprios olhos: a decadência política e o aparente esgotamento de um modelo econômico são muito volumosos para passarem despercebidos. O enlace dos dois e os filhos que vão gerar são apenas a intuição da viagem.
Em 2014 o golpe militar fará meio século. Será o ano da sétima eleição direta para presidente. Melhorou muito a situação do nosso povo mais pobre. Mas a realidade eleitoral aprisionou o processo político e o levou a amplo descrédito. A maioria dos políticos seguirá vendo a história como uma eleição depois da outra. Um expoente como Lula, que conheço desde o meio da década de 1980, não elabora sobre os caminhos nacionais, dispõe-se a morder a canela dos adversários na eleição paulistana.
Às vezes, no exílio, julgava estar delirando. O amigo Francisco Nelson me confortava: "Você está lúcido". Chico Nelson, infelizmente, morreu há alguns anos. Será que estou vendo mesmo o homem reputado internacionalmente como um estadista mordendo canelas numa eleição municipal? Saudades do Chico Nelson. Chegamos juntos do exílio, em 1979. Nesses momentos aparece para mim, confirmando a frase de um escritor francês: não visitamos os mortos, eles é que nos visitam.
* JORNALISTA