segunda-feira, 9 de julho de 2012

rendição ao realismo


Renato Lessa - O Estado de S.Paulo
O lendário deputado norte-americano Tip O'Neill, presidente da Casa dos Representantes - a Câmara de Deputados dos EUA - de 1977 a 1987, certa feita pontificou que "toda política é local". Democrata da velha e boa cepa rooseveltiana, hoje, para os padrões da política praticada ao norte do Rio Grande, O'Neill seria considerado um esquerdista ferrenho. Sua frase célebre admite distintas interpretações. Em comentário a uma biografia recente de O'Neill, o ex-governador de Nova York Mario Cuomo definiu a frase "all politics is local" como um motto do velho prócer democrata, falecido em 1994. A frase seria portadora da ideia forte de que o exercício da representação política exige vínculo com os representados e escuta para suas expectativas e apreensões. Em outros termos, o sistema representativo, fundado na necessária distinção entre representantes e representados, só faz sentido se houver vínculos entre ambos, não limitados aos jogos de captura de sufrágio.
Não é, contudo, essa a única maneira possível de entender a sentença de O'Neill. Em registro um tanto cínico, localismo pode significar tão somente precipitação e dissolução da política na pequena guerrilha, na esperteza da pequena área, na adoção de uma subespécie de maquiavelismo de fancaria. Precipitação que acaba por implicar uma continuada ressignificação da política, pela qual a lógica de curto prazo e o apetite infrene apresentam-se como devoradoras de patrimônios políticos e simbólicos duramente construídos. Localismo, nessa chave, não indica apenas escala de intervenção. Tomado em termos geográficos, o localismo é inevitável e não constitui, em si mesmo, um problema. Afinal, há problemas e conflitos que são locais.
Há, contudo, outra dimensão aqui envolvida, que pode ou não coincidir com o localismo geográfico. Trata-se da prática de uma cultura política fundada em um ativismo personalizado, pela qual voluntarismo e genialidade autoatribuída aparecem como o ápice da virtude política. Claro está que a vigência de tal padrão exige a crença na existência de sujeitos extraordinários, com recursos pessoais incomuns de clarividência e senso de oportunidade.
Duas intervenções políticas recentes, ambas sob a forma de visita, do ex-presidente Lula podem ser associadas ao predomínio da pior versão possível do axioma de O'Neill: as visitas ao escritório do ex-ministro Jobim, da qual quase não mais lembramos, e à residência de Paulo Maluf. Em ambas, o caráter de intervenção personalizada e caprichosa, ao contrário de esgotar seus efeitos locais, produz consequências de ordem mais geral.
Na visita ao ex-ministro Jobim, e na semana seguinte à introdução do tema da verdade, em chave maior, no debate público brasileiro - pela implantação da Comissão da Verdade -, o mesmo tema escorre pelo ralo, com a diversidade de versões a respeito do que ali se disse e das motivações dos dois interlocutores envolvidos (o ex-presidente e o ministro Gilmar Mendes). Diante da indeterminação da verdade, recomenda-se a incredulidade e a despresunção generalizada de inocência. Desconfio, contudo, que o ministro Gilmar não tenha se sentido infeliz com os efeitos públicos do evento.
Na visita ao deputado Paulo Maluf, independentemente do resultado líquido do encontro, sua marca, digamos, doutrinária é da lavra do ex-prócer arenista: foi sua doutrina - um tanto surrada, é claro - que parece ter dado sentido doutrinário à coisa, fixada no límpido enunciado: "Não existe mais direita e esquerda". Temo que o efeito da sentença sobre as mentes dos observadores comuns - ressalvo aqui os áulicos e os técnicos - seja semelhante ao da apresentação a estudantes de geometria do conceito de triângulo equilátero. Dir-se-á, tanto diante da sentença malufista, quanto do conceito geométrico, a mesma coisa: "Isso é evidente"; "Assim como um triângulo equilátero possui três lados iguais, não há diferença alguma entre direita e esquerda." Em outros termos, a frase malufista, tal como a demonstração do triângulo, traz consigo, com toda força, seu próprio efeito de verdade.
O que é grave em tudo isso é que não há passagem possível da geometria para a política; na geometria demonstra-se, na política usam-se argumentos. Quando um argumento político ganha foros de evidência geométrica, para além da inautenticidade aí implicada, é de vitória sobre formulações rivais que se trata. Em termos mais diretos, a teoria malufista passa por verdadeira, dada a supressão de alguma possível teoria rival.
A natureza dessa supressão merece atenção. Suspeito de que se trate de um esforço consistente e cumulativo de autossupressão do possíveis versões alternativas ao cinismo da indistinção. Por autossupressão entendo a adoção de um padrão político típico de um estado de natureza, ou, se quisermos, de um grau zero da política, no qual todos se igualam no pior e de modo necessário. A rendição a tal realismo é devoradora, no campo da cultura política, de expectativas e de patrimônios de difícil construção e consolidação, mas de facílima dissipação. Disso sabe bem Paulo Maluf, com razões de sobra para estar feliz.  
RENATO LESSA É PROFESSOR TITULAR DE TEORIA POLÍTICA DA UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE; INVESTIGADOR ASSOCIADO DO INSTITUTO DE CIÊNCIAS SOCIAIS DA UNIVERSIDADE DE LISBOA; DIRETOR PRESIDENTE DO INSTITUTO CIÊNCIA HOJE

Doenças podem ir de problemas de pele até hepatite A


O Estado de S.Paulo
Na Favela do Porto de Areia, caminhões de lixo dificilmente passam para recolher sujeira. Geralmente deixam um rastro pelas ruas, forradas de restos trazidos de toda a cidade. Próximo dali, fica o terreno de um lixão desativado que em 2000 foi classificado como o pior do Estado e desativado quatro anos depois. Apesar disso, chinelo é o calçado mais usado por moradores. A dona de casa Isabel Borges, de 46 anos, afirma que pisou no chão com o pé machucado e teve infecção grave. "Quase morri", há quatro anos vivendo às margens da Lagoa de Carapicuíba.
Segundo o médico infectologista Ricardo Diaz, da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), as consequências de se morar em locais contaminados são imprevisíveis. "O esgoto pode causar de infecções intestinais a hepatite A", afirma. Além disso, o chorume pode causar problemas de pele e respiratórios, entre outros.
A cidade diz que desenvolve projetos de saúde para tentar minimizar os problemas da população da favela. "A prefeitura de Carapicuíba realiza regularmente ação em saúde para atender famílias que vivem ali, com visitas feitas pela equipe médica (enfermeiros, médicos, dentista, assistentes sociais entre outros), para verificação das condições de saúde da população", afirmou, em nota.
Segundo o município, a maioria das famílias do local foi desapropriada para construção do Rodoanel. "Na época, não houve assistência adequada por parte de Dersa e Prefeitura."
Apesar do atraso na solução habitacional, o projeto da construção de um parque na área já começou. Trata-se de mais uma contrapartida que o governo estadual vai realizar por causa do despejo de lama na área. Depois de pronto, o espaço deve ser administrado pelas mineradoras donas do terreno, com o dinheiro de um centro de logística que será construído na área. / A.R.

Famílias têm de conviver com lodo retirado do Tietê


Cerca de mil moradores de Carapicuíba estão espremidos entre lagoa com detritos do rio, antigo lixão e estação de transbordo

08 de julho de 2012 | 3h 02
ARTUR RODRIGUES - O Estado de S.Paulo
Uma favela tóxica. Assim pode ser definida a comunidade do Porto de Areia, na Grande São Paulo. Os cerca de mil moradores estão espremidos entre a Lagoa de Carapicuíba, que recebe os detritos retirados no desassoreamento do Rio Tietê, um antigo lixão e uma estação de transbordo de lixo.
Descalças, crianças fazem do solo contaminado seu quintal. O chorume brota do chão dos barracos. A água da lagoa, que também recebe esgoto da cidade, avança sobre as moradias próximas das margens. Doenças respiratórias, de pele e intestinais já fazem parte da rotina dos moradores, assim como a convivência com ratos e baratas.
A lagoa, feita artificialmente após décadas de escavações para retirada de areia por mineradoras, voltou a receber o lodo do Tietê no ano passado. A ideia do governo é que, com o desassoreamento, o rio passe a ter a mesma vazão de 2005, diminuindo as chances de enchentes.
O Departamento de Águas e Energia Elétrica (Daee) afirma que fez testes que provam que os resíduos não estão contaminados. "Depois da peneiragem, é retirado todo o material estranho", garante o chefe de gabinete do Daee, Giuliano Savioli Deliberador. Após muita polêmica e proibição da Justiça, o Daee conseguiu licença da Companhia Ambiental do Estado de São Paulo (Cetesb) para o descarte no local, resultado de um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com o Ministério Público, envolvendo o poder público e as mineradoras donas do terreno.
Deliberador admite que ninguém deveria estar vivendo ali. E, apesar da garantia de que a lodo não é tóxico, a população afirma que a vida piorou com o despejo. "Depois dessa obra, o cheiro ficou muito pior. E agora a água avança para as nossas casas", reclama a manicure Gleide Maria, de 40 anos, sem saber de onde vinha a terra que era despejada perto de sua casa.
O despejo no local está atrelado a uma série de contrapartidas previstas no TAC, que incluem resolver a situação das pessoas que vivem nos arredores. "Eu acompanho a execução do acordo, que prevê a remoção das famílias para um conjunto habitacional", afirma o promotor Marcos Lira. No entanto, a resolução do problema não parece estar nem perto de acontecer.
A Secretaria de Estado da Habitação informou que tem parceria com o programa Minha Casa, Minha Vida, do governo federal, mas que precisa que a prefeitura de Carapicuíba apresente um projeto habitacional antes. A administração municipal, no entanto, nem sequer localizou um terreno disponível para onde as pessoas possam ser transferidas. Mãe de quatro crianças, a dona de casa Iranildes da Silva, de 34 anos, conta que já havia sido retirada de outra favela da cidade havia cinco meses. "Me deram só R$ 3 mil. Não tinha nenhum lugar melhor para ir."