sábado, 5 de maio de 2012

Verdade desabafada


Flávia Piovesan
Em livro lançado essa semana, o ex-delegado de polícia Cláudio Guerra assume a autoria de crimes contra militantes políticos, revelando que corpos foram incinerados em uma usina de cana em Campos dos Goytacazes, nos anos 70 e 80. Em outros depoimentos identifica mandantes de crimes contra militantes políticos, tecendo um relato inédito da repressão.
No depoimento, Guerra afirma também que militares executaram o delegado do Dops Sérgio Fleury - Reprodução
Reprodução
No depoimento, Guerra afirma também que militares executaram o delegado do Dops Sérgio Fleury
As impactantes revelações do ex-delegado intensificam o debate público a respeito da criação da Comissão Nacional da Verdade, tendo a força catalisadora de fomentar outros depoimentos e informações sobre as graves violações perpetradas ao longo do regime militar. Ineditamente, em 18 de novembro de 2011, foi adotada a Lei n. 12.528, que institui a Comissão, com a finalidade de examinar e esclarecer crimes praticados durante o regime militar, efetivar o “direito à memória e à verdade e promover a reconciliação nacional”. O Programa Nacional de Direitos Humanos III, lançado em 21 de dezembro de 2009, já previa a Comissão de Verdade, com o objetivo de resgatar informações relativas ao período da repressão militar.
Contudo, tal proposta foi alvo de acirradas polêmicas, controvérsias e tensões políticas entre o Ministério da Defesa (que a acusava de “revanchista”) e a Secretaria Especial de Direitos Humanos e o Ministério da Justiça (que a defendiam em nome do direito à memória e à verdade), culminando, inclusive, com a exoneração do general chefe do departamento do Exército, por ter se referido à “comissão da calúnia”.
Qual é o sentido do direito à verdade? Qual é seu alcance e propósito? Em que medida pode contribuir para a consolidação democrática? Para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, “toda sociedade tem o direito irrenunciável de conhecer a verdade do ocorrido, assim como as razões e circunstâncias em que aberrantes delitos foram cometidos, a fim de evitar que esses atos voltem a ocorrer no futuro”. O direito à verdade apresenta uma dupla dimensão: individual e coletiva.
Individual ao conferir aos familiares de vítimas de graves violações o direito à informação sobre o ocorrido, permitindo-lhes o direito a honrar seus entes queridos, celebrando o direito ao luto. Coletivo ao assegurar à sociedade em geral o direito à construção da memória e identidade coletivas, cumprindo um papel preventivo, ao confiar às gerações futuras a responsabilidade de prevenir a ocorrência de tais práticas. Como sustenta um parlamentar chileno: “A consciência moral de uma nação demanda a verdade porque apenas com base na verdade é possível satisfazer demandas essenciais de justiça e criar condições necessárias para alcançar a efetiva reconciliação nacional”.
No mesmo dia 18 de novembro de 2011, foi também adotada a lei que garante o acesso à informação, sob o lema de que a publicidade é a regra, sendo o sigilo a exceção. Com efeito, no regime democrático a regra é assegurar a disponibilidade das informações. As limitações ao direito de acesso à informação devem se mostrar necessárias em uma sociedade democrática para satisfazer um interesse público imperativo. No atual contexto brasileiro, o interesse público imperativo não é o sigilo eterno de documentos públicos, mas, ao contrário, o amplo e livre acesso aos arquivos. Para Norberto Bobbio, a opacidade do poder é a negação da democracia, que é idealmente o governo do poder visível, ou o governo cujos atos se desenvolvem em público, sob o controle democrático da opinião pública.
Diversamente dos demais países da região, como conclui o pesquisador americano Anthony Pereira, “a justiça de transição no Brasil foi mínima. Nenhuma Comissão de Verdade foi (ainda) instalada, nenhum dirigente do regime militar foi levado a julgamento e não houve reformas significativas nas Forças Armadas ou no Poder Judiciário”. No Brasil tão somente foi contemplado o direito à reparação, com o pagamento de indenização aos familiares dos desaparecidos políticos, nos termos da Lei n.9140/95.
Direito à verdade e direito à informação simbolizam um avanço extraordinário ao fortalecimento do Estado de Direito, da democracia e dos direitos humanos no Brasil. São instrumentos capazes de transformar a dinâmica de poder dos atores sociais, revelando o sentido do presente e sua relação com o passado. A luta pelo dever de lembrar merece prevalecer em detrimento daqueles que insistem em esquecer. Afinal, como observa o filósofo Charles Taylor, “para termos um sentido de quem somos, temos que dispor de uma noção de como viemos a ser e para onde estamos indo. Isso requer uma compreensão narrativa da vida. O que sou tem que ser entendido como aquilo em que me tornei, pela história de como ali cheguei”.
FLÁVIA PIOVESAN É PROFESSORA DE DIREITOS HUMANOS DA PUC/SP E PUC/PR, PROCURADORA DO ESTADO DE SP E FELLOW DA HUMBOLDT FOUNDATION NO MAX-PLANCK-INSTITUTE (HEIDELBERG)

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Mudou


Celso Ming - O Estado de S.Paulo
Depois de alguma hesitação, o governo Dilma decidiu antecipar a mudança de regras da caderneta. Entendeu que não poderia correr o risco de se expor aos ataques da oposição como confiscador da poupança do povão às vésperas das eleições. (O País continua traumatizado com o bloqueio da poupança do Plano Collor em 1990 e, ainda que sejam situações diferentes, as comparações são quase inevitáveis.)
Desde logo, confirmam-se duas suposições - ou quase suspeitas, digamos assim. A primeira delas é a de que o Banco Central deixou de administrar a política monetária como pede o regime de metas de inflação. Passou a operar com meta de juros. Os juros têm de cair porque assim o determinou o governo Dilma. Depois se vai ver o que fazer com eventuais efeitos colaterais.
Em princípio, nada de errado na troca de metas. O problema está em que o Banco Central não a admite. Toda sua comunicação e, principalmente, os textos oficiais mantêm o teatro de que continua a observar estritamente os critérios do sistema de metas.
A segunda quase suspeita é a de que vem aí um corte mais alentado dos juros básicos. A proposta inicial era apenas atingir um dígito (juros abaixo de 10,0% ao ano). Mas, de lá para cá, a atividade econômica baqueou, conforme ficou confirmado ontem com baixo desempenho da indústria (veja o Confira). Como não se viram ainda sinais de nova safra de inflação, a decisão foi derrubar ainda mais os juros. E aí passou a ser necessária a alteração das regras das cadernetas. Elas pagam rendimento anual entre 6,5% e 7,5% - juros anuais de 6,17% mais a Taxa Referencial de Juros (TR) - e não estão sujeitas nem ao Imposto de Renda nem a taxas de administração. Isso significa que, a partir de juros básicos (Selic) de 8,5% ao ano (hoje estão em 9,0%), as cadernetas começarão a tirar fatia de mercado dos títulos do Tesouro e dos fundos de renda fixa.
A nova remuneração da caderneta corresponderá a 70% da Selic mais a TR quando os juros básicos ao ano estiverem em 8,5% ou abaixo disso. Isso quer dizer que juros a 8,5% ao ano estarão pagando algo em torno dos 6,0%. Como ficou definido que os juros cairão, logo chegará o dia em que a nova caderneta pagará remuneração bem mais baixa do que a que começa a valer agora.
Muitas são as questões que terão de ser avaliadas nas próximas semanas a respeito das novas regras. Uma delas é o nível de risco que deverão trazer para o Sistema de Poupança e Empréstimo. Fácil entender por quê. Os depósitos em poupança são usados pelos bancos para financiar a compra de casa própria a juros proporcionais aos pagos ao aplicador na caderneta. Se a Selic tiver de voltar a subir - como já teve tantas vezes no passado -, a remuneração da caderneta também terá e, com ela, os juros cobrados do mutuário do sistema. Se os juros na ponta do tomador do financiamento habitacional forem fixos, haverá o risco de ficarem descasados com a remuneração paga na nova caderneta - embora o ministro da Fazenda, Guido Mantega, desconsidere essa possibilidade. E, se forem flutuantes, para que acompanhem a remuneração da caderneta, o risco será o descasamento entre o valor da prestação (mais os juros nela embutidos) e a renda familiar do mutuário.
Até agora, o governo apenas revelou preocupação com o impacto político da mudança. Vai ser preciso saber como vai equacionar essas variáveis técnicas.

quinta-feira, 3 de maio de 2012

País rico é país com saneamento adequado


03 de maio de 2012 | 3h 03
Roberto Macedo - O Estado de S.Paulo
País rico é país sem pobreza, diz o lema do governo Dilma Rousseff. Mas cabe perguntar: que pobreza o governo tem em mente e quer eliminar? Se for medida pelo critério de renda, mesmo com o avanço da chamada classe C - a tal "nova classe média" -, boa parte desta é ainda pobre tanto no valor absoluto de sua renda como em termos de comparações internacionais. E há ainda as classes D e E.
Pode ser que o governo defina um nível conveniente de renda mínima ao medir o seu esforço de eliminar a pobreza. Mas nem assim esconderia o fato de que o País não seria rico se somente isso ocorresse. Esse nível de renda seria baixo e a pobreza não se limita aos rendimentos. Há outros aspectos fundamentais, como o nível e a qualidade do ensino e do atendimento à saúde recebidos em termos médios pela população, sabidamente muito baixos no Brasil. São carências seculares que não serão resolvidas em um ou dois mandatos presidenciais. E há mais aspectos da pobreza também carentes de atenção. Entre eles, a falta de saneamento adequado, que se desdobra em água tratada, esgotamento sanitário, coleta de lixo e drenagem de águas pluviais - esta para evitar as enchentes e os seus repetidos desastres. Quanto a isso o Brasil também está longe de chegar ao que se passa em países ricos.
Sabia que as carências de saneamento são sérias no Brasil, mas recentemente percebi que são ainda bem mais graves do que imaginava. Isso aconteceu ao assistir a uma palestra do economista Gesner Oliveira em reunião recente do Conselho de Economia da Associação Comercial de São Paulo. Além de sólida formação acadêmica e de sua condição de professor da Fundação Getúlio Vargas de São Paulo, ele tem hoje uma importante credencial para falar sobre o assunto: a experiência em lidar com ele como presidente da Companhia de Saneamento Básico do Estado de São Paulo (Sabesp) no governo José Serra.
O palestrante pintou um quadro dramático da precariedade do saneamento básico brasileiro, em particular nas áreas urbanas, o foco de sua análise. Assim, dados de 2010 ou próximos desse ano - como outros que são citados abaixo - mostram que apenas 25% das capitais tinham mais de 80% dos seus domicílios ligados a redes de esgoto. E há casos gravíssimos. Assim, numa reportagem de jornal mostrada na ocasião algumas foram chamadas de "capitais da porcaria", entre elas Porto Velho (apenas 2% de domicílios ligados), Belém (6%), Macapá (7%) e Manaus (11%), numa lista que inclui também quatro capitais nordestinas com taxas entre 30% e 37%.
Dados sobre o Brasil mostram ainda 40 milhões de pessoas sem rede de água tratada, 107 milhões (!) sem rede de esgoto, 134 milhões sem esgoto tratado e 8,2 milhões (!) sem banheiros em seus domicílios.
A situação de alguns países ricos foi apresentada e os dados confirmam o título deste artigo. Assim, na Alemanha 100% dos municípios têm água tratada, 100% têm coleta de esgoto e em 99% deles há tratamento do coletado. Na Itália os índices são de 98%, 90% e 94%; em Portugal, 97%, 95% e 84%; na França, 99%, 95% e 84%, respectivamente.
Numa breve referência ao saneamento rural, uma avaliação da ONU mostrou que a situação brasileira é pior do que a de países como Sudão, Timor Leste e Afeganistão. Quanto ao lixo, 42% dos resíduos sólidos coletados no País têm destinação imprópria, pois vão para lixões e aterros inadequados. E apenas 6% dos municípios têm algum sistema de drenagem.
É óbvia a correlação entre a disponibilidade de saneamento básico e melhores condições de saúde no entorno dos domicílios atendidos, mas foi interessante conhecer uma estimativa de que cada real gasto com saneamento representa a economia de quatro com tratamentos de saúde.
Dado esse triste quadro, o que se faz em contrário é claramente insuficiente para limpar toda a sujeira que revela. Há carência de investimentos e dificuldades de planejamento e de gestão. O Brasil tem seu Plano Nacional de Saneamento Básico, que prevê a universalização desse serviço até 2030 mediante investimentos totais de R$ 263 bilhões, e no valor médio anual, de R$ 13 bilhões, o que significaria dobrar a média dos últimos cinco anos, que, se mantida, deixaria essa universalização para 2060 (!).
Toda vez que ouço falar de planos governamentais ponho um pé atrás, pois muitos ficam só no plano das hipóteses. E não vejo de onde vai sair todo esse dinheiro de fontes governamentais. Por isso vi com simpatia algumas propostas apresentadas pelo palestrante, entre elas o recurso a parcerias público-privadas, pois sozinhos os governos federal, estaduais e municipais não dão conta dos problemas nessa área. E a busca de aumentos da produtividade de sistemas já instalados, inclusive ampliações e novos que virão.
No abastecimento de água, aumentos substanciais de produtividade seriam alcançados se reduzidas fortemente as perdas nas redes de abastecimento, que alcançam perto de 40% (!). Isso geraria receita adicional e liberaria recursos para mais investimentos. No esgotamento sanitário, que exige muito bombeamento, também há perspectivas de ganhos de produtividade com equipamentos mais eficientes no uso da energia.
Concluo com outro dado particularmente chocante, que evidencia os efeitos danosos da carga tributária elevadíssima, tão alta como nunca antes neste país. De impostos federais a Sabesp pagou em 2009 o total de R$ 1,26 bilhão, perto da metade a título de contribuições que se dizem sociais (uma tem explicitamente esse nome e outra é a Cofins, também com seu quê de social). No mesmo ano a Sabesp investiu um total não longe disso, R$1,8 bilhão, o qual poderia ser substancialmente ampliado se o governo federal promovesse uma forte desoneração tributária desse setor tão importante para aliviar as condições de pobreza em que vive grande parte da população brasileira.