O monstro amazônico
Em 1980 a Companhia Vale do Rio Doce ainda era estatal (foi privatizada por FHC em 1997). Seu patrão era o governo federal, controlado pelo último general do ciclo de presidentes do regime militar, iniciado em 1964, com a deposição do presidente constitucional, João Goulart.
A CVRD estava a meio caminho de colocar em produção a melhor jazida de minério de ferro do planeta, na serra dos Carajás, 550 quilômetros ao sul de Belém, no Pará. A entrada desse excepcionalmente rico minério – o mais usado pela indústria – no mercado, em 1984, revolucionou a siderurgia mundial.
Dentre outros motivos, por desbancar alguns gigantes industriais, como a americana United States Steel (que foi dona exclusiva de Carajás de 1967 a 1969, quando os militares a obrigaram a se associar à CVRD), a 1ª do ranking nessa época; e favorecer a ascensão das empresas japonesas, chinesas e coreanas. Uma história ainda inédita, como quase tudo na Amazônia recente.
Com Carajás, a Vale consolidou sua posição de maior produtora de minério de ferro do mundo, abriu para si o mercado asiático, galopou para o topo das mineradoras, tornou-se a maior empresa brasileira e a maior exportadora do país. Não era pouco poder. Mas a Vale queria mais. Em 1980 ela entregou ao governo um estudo que encomendara. O título estava em inglês: Metal Amazon. O texto, também. O documento nunca precisou ser traduzido para atingir seus objetivos: ampliar ainda mais o domínio da mineradora sobre um território muito maior.
A província mineral de Carajás, a mais importante que existe na Terra, ocupa 1,5 milhão de hectares. Mas a Vale queria controlar um território 10 vezes maior, de 15 milhões de hectares, equivalente ao tamanho do Estado da Paraíba.
Para não provocar as previsíveis reações, um órgão oficial foi criado para exercer sua jurisdição sobre esse quase-Estado (que coincide com a proposta do estado de Carajás, que irá a julgamento plebiscitário no dia 11 de dezembro). Nesse espaço executaria um vasto programa de infraestrutura e de indução a investimentos produtivos, de US$ 62 bilhões (valor da época), que passou a ser conhecido superlativamente por “Carajazão”, ou Grande Carajás, para poder distingui-lo (nem sempre com sucesso) do Carajás “apenas” mineral.
Recursos públicos iriam subsidiar tanto ferrovias, portos, estradas e hidrovias quanto siderúrgicas, metalúrgicas e reflorestamentos, em escala ciclópica e com energia explosiva. Era preciso acelerar o ritmo da ocupação, alargar-lhe o horizonte e colocar os produtos gerados a caminho dos mercados internacionais, especialmente da Ásia.
Na base ideológica e técnica dessa empreitada, o tal Metal Amazon, a Amazônia era comparada ao monstro de Loch Ness (ou Lago Ness, localizado na Escócia). Os engenhosos ideólogos, que continuam a movimentar as engrenagens da formação das fronteiras econômicas, recorreram à figura mitológica do monstro para explicar o “fator amazônico”, um elemento complicador próprio da região (tão selvagem quanto as brumosas paragens escocesas), a onerar os investimentos públicos e privados.
Mesmo sendo constituída pela maior floresta tropical do mundo (com um terço da mata remanescente), a maior de todas as bacias hidrográficas e a presença humana remontando a mais de 10 mil anos, a Amazônia, nessa bitola colonial, seria um “espaço vazio”.
Árvores, águas e nativos são invisíveis por essa ótica, que tem sido a matriz da política de dominação da região. Mais do que isso: são um estorvo para o desenvolvimento e o progresso, estes, sim, conceitos estranhos ao bioma amazônico e a toda sua história anterior à chegada dos europeus. Mas impositivos nos tempos atuais. Ferramentas dos colonizadores vitoriosos. Daí ter-se desencadeado a maior destruição de florestas de toda história humana (mais de 700 mil quilômetros quadrados em menos de meio século), pondo-se abaixo um recurso muito mais nobre, como a madeira e toda diversidade biológica, e substituindo-o por outro de valor incomparavelmente inferior.
É o que explica um município rico em florestas, como São Félix do Xingu, também no sul do Pará, abrigar agora o maior rebanho bovino do país. Milhares e milhares de exuberantes árvores multicentenárias foram abatidas – e continuam a ser derrubadas – para dar lugar a pastos. Sobre essa vegetação rasteira se multiplicaram os animais, com rebanho de 2 milhões de cabeças, sem, no entanto, adquirir qualidade bastante para lhes conferir maior valor agregado minimamente satisfatório. Maior município pecuário brasileiro é apenas um título de pobreza quantitativa.
É também por isso que o orçamento de uma grande hidrelétrica, como Belo Monte, no rio Xingu, antes mesmo de começar a ser construída, no intervalo de apenas dois anos, passa de R$ 19 bilhões para R$ 28 bilhões (movimento acompanhado pelas grandes empreiteiras nacionais, que pularam da posição de concessionárias de energia para o posto que lhes cabe, de construtoras de grandes obras, em geral superfaturadas).
O exemplo mais recente é o da ponte sobre o rio Negro, ligando Manaus a Iranduba, no estado do Amazonas, inaugurada no dia 24 do mês passado pela presidente Dilma Roussef e o ex-presidente Lula. Com 3.600 metros de extensão, é a maior já construída sobre águas fluviais no Brasil. Devido aos “fatores amazônicos” engendrados pelo monstro de Loch Ness, o custo da obra cresceu 90% além do limite previsto, indo a mais de R$ 1 bilhão, nos quatro anos em que foi construída.
Justificativas, números e planilhas sempre são apresentados para dar endosso à obra ou carimbar seu custo extraordinário. Mas quando nenhum argumento é convincente, o desconhecido e inexplicável é chamado à ribalta para assustar os céticos ou iludir os crentes. E assim, sob a face do monstro, a Amazônia desaparece.
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