segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

Brasil está sendo salvo pelas qualidades de deputados e senadores, FSP

Desde a posse de Jair Bolsonaro como presidente da República do Brasil, somos um país que tem tudo para dar errado, mas está sendo salvo pelas qualidades de seus deputados e senadores. Por essa, realmente, ninguém esperava.
Mas é verdade. Tudo o que foi feito no Brasil de 2019 para resolver problemas foi feito no Congresso.
reforma da Previdência foi feita pelos presidentes da Câmara e do Senado enquanto Guedes insistia no delírio da capitalização. A reforma tributária não andou porque Guedes se recusou a abraçar a proposta que já circulava no Congresso, baseada no trabalho do respeitado economista Bernard Appy. 
A reforma do saneamento básico foi proposta do senador Tasso Jereissati (PSDB) e os deputados Tabata Amaral (PDT) e Felipe Rigoni (PSB) propuseram uma reorganização dos programas de combate à pobreza.
Enquanto isso, observe o que foi o governo Bolsonaro durante o recesso parlamentar, quando o Congresso não estava lá para trocar suas fraldas. 
O Enem foi um desastre. O secretário de Cultura Roberto Alvim divulgou um vídeo reproduzindo um discurso nazista. O secretário de Comunicação foi pego recebendo dinheiro (como consultor) das empresas para quem ele havia decidido distribuir muitos milhões em propaganda oficial (Band e Record). Bolsonaro criou uma crise com Sergio Moro que quase causou a demissão do ministro da Justiça.
O Itamaraty apoiou sem ressalvas um plano de paz de Trump para a Palestina que ninguém mais no mundo levou a sério. Um membro do governo gastou R$ 800 mil indo a Davos de avião da FAB sem que por lá fizesse qualquer coisa de útil. Não, não foi o Guedes, foi um outro. Bolsonaro continuou seus ataques à democracia e disse que deve ficar no governo por oito anos, ou, “quem sabe mais tempo, lá na frente”.
A coisa foi tão grave que os presidentes da Câmara e do Senado tiveram que interromper suas férias para intervir. Davi Alcolumbre, que é judeu, foi importante para acelerar a demissão do papagaio de Goebbels. Rodrigo Maia deu declarações fortes contra os ministros da Educação e do Meio Ambiente. 
As conclusões do experimento “recesso parlamentar de 2019-2020” são, portanto, claras: quem está tocando o Brasil e impedindo que ele desmorone de vez é o Congresso Nacional.
Paulo Guedes parece ter reconhecido esse fato e deve aceitar fazer a reforma tributária em cima do texto do Congresso. 
Mas não sabemos se o arranjo é estável. Ninguém votou na conversão do sistema em parlamentarismo, e o presidente ainda tem bastante legitimidade e poder, inclusive poder de atrapalhar. 
A guerra dos bolsonaristas contra as instituições continua. Na semana passada, os governistas lançaram a campanha #MaiaVaiSerPreso nas redes sociais e assim seguem alimentando sua bolha. As reformas dão trabalho para o Congresso, mas seus eventuais benefícios darão votos para Bolsonaro. 
E não se pode contar que o Congresso continuará trabalhando, sob ataque do bolsonarismo, para que o bolsonarismo se reeleja. Essa ponderação se torna mais relevante quando novas eleições se aproximam. 
O Maiamentarismo é o mais próximo que conseguimos produzir do governo de centro-direita que deveria ter sucedido Dilma Rousseff quando seu mandato acabasse em 2018. Mas não é a mesma coisa, e no Planalto o projeto é outro. 
Celso Rocha de Barros
Servidor federal, é doutor em sociologia pela Universidade de Oxford (Inglaterra).
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Moisés Naím Neve e corrupção - OESP

Moisés Naím, O Estado de S.Paulo
03 de fevereiro de 2020 | 05h00

Nos países onde a neve é abundante, também são abundantes as palavras para se referir a ela. E isso vale também para a corrupção. Onde há muita corrupção, também existem muitas maneiras de chamá-la.
Na língua sami, falada na Noruega, Suécia e Finlândia, existem mais de 300 palavras relacionadas à neve. Na América Latina e em países como Itália, Grécia, Nigéria ou Índia, existem centenas de palavras usadas para referir-se à corrupção. Coima, mordida, moches, ñeme-eme, guiso (ensopado), mermelada (geleia) ou cohecho são palavras usadas para se referir à corrupção em diferentes países de língua espanhola.
Mas tão interessantes quanto as palavras que restam são aquelas que estão faltando. Em espanhol, por exemplo, não temos uma palavra equivalente a whistleblower. Em inglês, esse termo (literalmente: aquele ou quem toca o apito) refere-se a uma pessoa que denuncia uma atividade ilegal ou alerta sobre comportamento antiético.
Um famoso whistleblower, por exemplo, foi Jeffrey Wigand. Esse executivo-sênior de uma empresa americana de cigarros decidiu denunciar, em um programa de televisão de grande audiência, que a empresa onde trabalhava adulterava tabaco com amônia para aumentar o efeito viciante da nicotina.
Naturalmente, sua denúncia teve imensas repercussões que, entre outras coisas, forçaram o governo a aumentar os controles e a regulamentação da indústria do tabaco. Wigand também revelou que, após sua denúncia, ele recebeu várias ameaças.
É por isso que, em vários países, agora existem leis que protegem aqueles que ousam expor condutas ilegais, tanto em empresas privadas quanto em órgãos governamentais. Também existem prêmios e reconhecimento para quem divulga os delitos de empresas e governos. Nos EUA, existe até o National Whistleblowers Center, uma ONG cuja missão é fornecer assistência jurídica, proteção e apoio àqueles que revelam atos de corrupção.
É muito revelador que as palavras equivalentes a whistleblower em espanhol, como soplón (dedo-duro), informante, chivato (traidor), sapo ou rato, sejam depreciativas. Em alguns países, aqueles que ajudam a sociedade a tomar conhecimento de más ações públicas ou privadas são celebrados e elogiados, enquanto em outros países são desprezados e denunciados.
Outra palavra que não há em espanhol, mas que é amplamente usada em inglês, é accountability (prestação de contas), o que significa assumir a responsabilidade pelas consequências das decisões que você toma.
O mais próximo em espanhol é “rendición de cuentas”, que se refere às informações que os funcionários públicos ou organizações governamentais são obrigadas a tornar públicas, dando conta assim de suas ações. Mas não é bem o mesmo: na América Latina e na Espanha, a prestação de contas é mais um ato burocrático e contábil do que um ato político ou moral de aceitar a responsabilidade pelo que foi feito. Além disso, existem muitas situações e exemplos nos quais os governos não sentem uma necessidade maior de “prestar contas” honestamente aos seus cidadãos. Opacidade, obstrução, dissimulação ou simplesmente mentiras são geralmente a norma.
Em princípio, espera-se que os regimes políticos nos quais líderes e funcionários sejam responsáveis por suas ações de maneira pública e transparente tenham melhor governabilidade. Esta última é outra palavra que perdemos e que a Real Academia Espanhola só incluiu em seu dicionário nos anos 1990. De acordo com este dicionário, “governabilidade” é a “qualidade do governável” e a palavra “governança” refere-se à “arte ou maneira de governar”.
Obviamente, a governabilidade frágil e a má governança são pragas que assolam muitos países. Frequentemente, isso se deve ao “continuísmo” daqueles que detêm o poder. Segundo a Royal Academy, “continuísmo” é uma “situação na qual o poder de um político, um regime, um sistema etc. continua sem sinais de mudança ou renovação”. A palavra continuísmo é frequentemente usada no debate político ibero-americano para denunciar a propensão dos líderes a reter o poder, mesmo após o fim do período para o qual foram eleitos, alterando regras e leis e até mudando a constituição.
Como se diz “continuísmo” em inglês? Não se diz. Em inglês, não existe uma palavra que corresponda a ela diretamente. Muito revelador, certo?
Precisamos mais do que nunca de uma cultura própria de accountability, na qual homenageamos os whistleblowers cujas reclamações contribuem para melhorar nossa governança e dar um curto-circuito no continuísmo. Grave é que não possamos sequer ter essa discussão sem usar múltiplos (e horríveis) anglicismos. É hora de começar a expandir o dicionário de palavras que se referem à decência e honestidade. / TRADUÇÃO DE CLAUDIA BOZZO